Dignidade na palavra e na sabedoria

Dignidade na palavra e na sabedoria

29 Outubro 2019

Escrito por GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS

Sophia de Mello Breyner é um sinal muito português e universal de talento, sensibilidade e sabedoria. Cada palavra da sua obra apela à reflexão, à exigência e à liberdade, para além do efémero das ideias feitas para contentarem o “espírito do tempo”.

“Nasci no Porto” – dizia Sophia de Mello Breyner Andresen (*1919-†2004).

A cidade, os seus arredores, as praias próximas, descendo para Sul, permanecem para mim a pátria dentro da pátria, a Terra materna, o lugar primordial que me funda. Ali estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as Primaveras botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias…

Sophia foi, podemos dizê-lo com segurança, um caso maior da poesia europeia do nosso tempo, ombreando com Rainer Maria Rilke. É um valor inequívoco e sereno, que procura de modo muito exigente os valores indivisíveis da liberdade, da dignidade e da igualdade. E a partir deste reconhecimento, é justo lembrar a cidade onde nasceu. E não é indiferente a ligação à cidade que invoca a nobreza dos princípios, a aristocracia do comportamento e atitude liberal, aberta e inconformista, de antes quebrar que torcer. “Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência, mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser” (“Arte Poética”). D. António Ferreira Gomes, o grande Bispo do Porto do século XX, disse no seu “Hino” à cidade, que o Porto era “terra de liberdade, de lealdade, de cultura e de trabalho”. E de Sophia, D. António invocou o sentido telúrico e “a sua estética do aquático, do mar, do nevoeiro e do ‘cheiro nu da maresia’, como igualmente a sua fusão sensorial no ar, no vento e nos longes do horizonte” (cf. Pórtico a Contos Exemplares, Porto, 1970).

Carlos Magno

Educou e mobilizou vontades. “No Centro Nacional de Cultura fiz de tudo” – era a própria que o confessava, com orgulho e alegria. Então “discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era”. Com a aparente fragilidade que todos lhe conhecemos, foi um exemplo de coragem e determinação. “Às vezes a polícia política (PIDE) aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico”. Afinal, não passava despercebido que “em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardina abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido: ‘poker faced’”. No entanto, Sophia nunca se deixou intimidar pelos agentes da PIDE. Só tinha medo de fantasmas…

Sophia de Mello Breyner é um sinal muito português e universal de talento, sensibilidade e sabedoria. Cada palavra da sua obra apela à reflexão, à exigência e à liberdade, para além do efémero das ideias feitas para contentarem o “espírito do tempo”: “odiei o que era fácil/ procurei-me na luz no mar no vento”, escreveu em «Mar Novo» (1958). “Não tenho explicações/ olho e confronto/ e por método é nu/ meu pensamento”. O que importa é interrogarmo-nos sobre a ligação entre o destino e a criação artística e literária ‒ contra o fatalismo, para que a esperança se encontre com a vontade. A obra da poeta portuguesa, nascida numa família aristocrática portuguesa de raízes liberais, neta do Conde de Mafra, que lhe incutiu o amor pela poesia portuguesa de Camões a Antero de Quental, representa o rigor na palavra e nas ideias – o equilíbrio sereno na procura do tempo exato, da aventura essencial que busca o horizonte inatingível da liberdade e da verdade. “Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade/ medindo o equilíbrio dos meus passos” («Coral», 1950).

Estamos perante uma voz inconfundível que cultivou a limpidez, num mundo que se deixa demasiado fascinar pela treva. A cidadã nunca renunciou a dizer de sua justiça, como voz incómoda de lutadora pela liberdade e pela democracia, contra a ditadura, a repetir-nos em todos os momentos que “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. E assim encontramos uma coerência irrepreensível entre a serenidade da atitude e a firmeza da convicção ‒ quando tudo pareceria apelar à distância e à comodidade. Francisco Sousa Tavares, seu marido, disse que “tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens”. E Eduardo Lourenço viu bem quando diagnosticou “uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio” que deve “ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional”. Os seus amigos, e todos quantos se cruzaram com Sophia, são unânimes em reconhecer que a capacidade criadora e a sensibilidade artística excecionais se aliaram sempre a uma inteligência política muito arguta. Os seus discursos políticos eram certeiros. Os seus combates recusavam sempre qualquer ambiguidade. Teve papel destacado na Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos (e ainda temos na retina as imagens depois da Revolução portuguesa de Abril de 1974, à saída dos presos políticos da Prisão de Caxias, com a sua presença inesquecível). No episódio do encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), aquando da atribuição em 1965 do Prémio de novelística a Luandino Vieira (escritor angolano proibido pela censura e perseguido pela polícia política portuguesa), Sophia colocou o Centro Nacional de Cultura, de que era Presidente, ao serviço da causa da liberdade do pensamento e da cultura. Isto, sem esquecer o apoio dado ao Manifesto dos 101, de 25 de Outubro de 1965, onde, sobre a guerra colonial, um grupo de cristãos (para quem Emmanuel Mounier e a sua obra «L’Éveil de l’Afrique Noire» eram referências fundamentais) dizia sentir “imperiosamente a responsabilidade de afirmar que se a solução vier a ser um trágico extremismo radicalmente antiportuguês, ela terá sido a lógica consequência de um outro extremismo anterior, de ódio gerador de outros ódios”.

Tratou-se de ilustrar com factos o que dizia Sophia em palavras belíssimas:

sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem.

Logo após a “revolução dos cravos” (1974) foi deputada à Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista, ao lado de Mário Soares. Foi então marcante o discurso que fez sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar (perante as tentativas de “frentismo revolucionário”) – tendo invocado o seu amigo Jean-Marie Domenach, então diretor da revista Esprit (que anos antes a polícia política impedira de entrar em Portugal). “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2 de Setembro de 1975). A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. E, a propósito, invocava, num gesto de exorcismo, a terrível frase de Milan Astray no paraninfo da Universidade de Salamanca: “Morra a Inteligência!”, para que nunca mais fosse possível ouvi-la. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política” – insistia a deputada. “Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti-cultura e toda a anti-cultura é reacionária”.

Carlos Magno

Num dos últimos textos que escreveu, Maria de Lourdes Pintasilgo (militante cristã, única primeira-ministra em Portugal, em 1979, amiga de Sophia, falecida inesperadamente oito dias depois da escritora) leva-nos a considerar a poesia e a cidadania como as duas faces de Janus de Sophia. Se virmos bem, sem transigências, a autora de «Dual» fez da busca exigente da liberdade e da justiça a chave da sua peregrinação interior poética. Sem que a linguagem fosse alguma vez ofuscada pelo empenhamento pessoal em busca do outro e do comum. “Um país liberto/ Uma vida limpa/ Um tempo justo”. Sophia nunca foi indiferente à cidade e ao tempo, onde procurou a eternidade. Não é só o mundo grego que exprime estas palavras. É também, e talvez até, anterior a tudo o mais, a consciência da navegação do eu: “Eu me busquei no vento e me encontrei no mar/ E nunca/ Um navio da costa se afastou/ Sem me levar”. Mas, de repente, a sua palavra faz-se denúncia e a menina do mar torna-se violenta nas palavras: “Com fúria e raiva acuso o demagogo/ E o seu capitalismo das palavras”. Em Sophia, a palavra faz a pessoa, molda o povo, traz com ela história e sonho. Não hesita em dizer que: “De longe muito longe/ O homem soube de si pelas palavras/ E nomeou a pedra, a flor, a água/ E tudo emergiu porque ele disse”. De facto, “Sophia é ao mesmo tempo o dom e a beleza absoluta” (“Mil Folhas”, Público, 10-07-04).

“O que a Sophia diz está sempre certo!”. O poeta Pedro Tamen recorda a afirmação perentória e indiscutível de um outro poeta amigo de Sophia, Ruy Cinatti. Era assim, de facto, com as palavras medidas, de lugar irrepreensível, sempre em busca dos arquétipos divinos. Estamos perante uma poesia não catalogável. Há uma procura do tempo permanente, do que dura para além do imediato, das cidades imaginárias e das fronteiras virtuais. Muitos autores, atraídos pela beleza em estado puro, tentarão imitar o inimitável. Ninguém conseguirá, porém, imitar essas palavras únicas. Sophia de Mello Breyner ficará na língua e na literatura portuguesas e na cultura europeia ao lado dos maiores de sempre. Esse lugar conquistou-o há muito, desde muito cedo – nessa convergência única entre as brumas do Atlântico e a luz do Mediterrâneo. E neste país, falsamente considerado como de poetas, Sophia foi uma das maravilhosas exceções – num tempo especialmente pródigo, como outros não foram. É a dignidade do ser, na linhagem de Camões e de Antero, que na palavra e na sabedoria de Sophia se consuma…

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