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Maria Luísa Malato

Este número da Pontes de Vista é dedicado a Amadeo e a todos os insolentes.

Deve ser efetivamente “insolência” o pecado maior dessa gente que não segue os caminhos habituais. Que mais se lhe há de chamar? “Há gente que chama ao meu estado uma pretensão para sair fora do vulgar – […] Eu sei o que agrada em geral – eu na generalidade desagrado”: isto constata Amadeo.

Insolente Amadeo devia ser. Na sua raiz matricial, o INSOLENTE nega: não é (IN-). A que “não é” ele afeito? O “in-SOLENTE” não é afeito ao que se declina “por costume”: soleo, soles, solere, solitus sum, “eu tenho por costume, tu tens por costume, ter por costume, o que está acostumado a”, “o que segue o costume, os costumes”… Não, eles, os insolentes, são os que não são os do costume. Desconhece-os quem os confunde com os “presumidos”, porque não os domina a ideia de que têm uma identidade fixa. Ou quem os confunde com os “arrogantes”, só porque não rogam favores aos seus semelhantes: rogam antes favores à vida. O nosso insolente assume-se como peregrino, viajante, nómada, CAMINHEIRO… É o que se move pela necessidade de saber ver. Segue a disciplina da EDUCAÇÃO VISUAL, e só a ela lhe obedece: olha para si como se olhasse um estranho, olhando os outros como se se reconhecesse neles. Caminha à feição do terreno, sem culpa do que é ou do que faz. Como se o MAPA lhe indicasse os caminhos por onde ele não foi ainda. Trabalha-se noite fora e dia adentro. Pega no bordão e levanta-se, sem ter por certa a fortuna. Crendo mesmo perdê-la…

E vai.

CAMINHEIRO”, assim se apresentará AMADEO DE SOUZA-CARDOSO a sua mãe, numa carta que lhe envia mal chega a Paris. “Eu tenho mais fases do que a lua”, escreve ele de Manhufe, numa carta à mulher, quando ela ficou em Paris e ele veio a Portugal. Tem de andar entre cá e lá: é esse o seu território.

Em Paris, escreve à irmã: “Aqui respira-se, em Portugal abafa-se”. Em MANHUFE, escreve para um saturado PARIS, que o aborrece igualmente: Maravilha-se em todo o caso com a ruralidade cíclica: “a cada passo parávamos maravilhados com a beleza grandiosa deste país gigante”. De que “país gigante” fala Amadeo? Do Marão, sim, certamente, talvez mais do que de Portugal. E, todavia, podia também assim falar de Paris, da hiperbólica urbanidade da mudança: “Que belo quadro seria se eu conseguisse projetar sobre um écran, ao mesmo tempo, toda a iluminação elétrica, todos os anúncios luminosos, todos os automóveis que passam com uma enorme garrafa de champanhe ou um anúncio do Chat Noir numa grande capital do mundo”! O seu PAÍS é ainda o território do “paisano”, o homem que abrange um espaço reconhecível pelo seu olhar, mas esse olhar pode ser mais ou menos abrangente.

Amadeo nunca renega o ambiente de província em que foi dado à luz, Manhufe, ou Portugal, donde tem de fugir para respirar. Da mesma forma que nunca renega Paris, para onde voltaria não fosse a morte apressada. Contradiz-se? Se CONTRADIÇÃO há é a CONTRADIREÇÃO do “caminheiro”, que nunca para e que não segue ninguém: “Eu, por exemplo, nem a mim mesmo me sigo, nem na fratura, nem na visão artística… tudo o que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito”. Trabalha-se somente. Noite fora, dia adentro. Em muitas telas ao mesmo tempo. Tantas que depois da sua morte serão algumas destruídas, por serem insólitas, insolentes, ilegíveis, estapafúrdias, imorais. E todavia elas registavam uma certa forma de religiosidade, a da ALMA FÍSICA que se aperfeiçoa no MOVIMENTO, aproximando-se do Deus que existe em si e no que o rodeia. Coisas pequenas, porque Deus está em tudo: na mosca sobre o prato, nas montanhas que parecem dorsos de mulher, no salto de um coelho sobre a erva, no voo descompassado de dois gansos, numa cozinha cubista, nas formas geométricas das sombras, num jarro com pincéis, nos grafemas dos anúncios, nas partes de um violino que ganha vida, nas velas dos barcos que iluminam o mar… Amadeo poderia dizer ainda: “Não sabiam que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”… AMA A DEUS.

Umas palavras de Agustina Bessa-Luís sobre Amadeo de Souza-Cardoso resumem talvez esse Amadeo coletivo que nos interessa aqui VER, e sobre o qual nos interessa ESCREVER. Continua Agustina no seu «Dicionário Imperfeito»: “O que Souza-Cardoso pintou tem menos significado esteticamente do que o movimento que transcendeu uma educação, a tradição, em suma”. Cremos que somos o que fizeram de nós. Mas não seremos nós o que de nós fizermos? O que interessará talvez, tudo pesado, talvez sejam ambas as coisas: a capacidade de nos superarmos. E todavia, alheamo-nos de nós. Por comodidade, por conformidade, por apatia, “somos o que somos”.

O Amadeo que ecoa em Agustina é o que lhe lembra o caminho comum e solitário, talvez um pouco menos solitário só por nele terem passado outros caminheiros. Agustina imagina Amadeo: “Penso nele com emoção, sobretudo se o vejo nesses lugares de nascimento onde eu própria nasci. Tão eventuais e sossegados, onde não parece mexer uma folha sem o precedente de uma folha que mexe”. Eis o país em que todos nós vivemos, independentemente do país em que nascemos, Manhufe, Portugal, ou Paris… O Marão, Portugal ou Paris são um invisível “país gigante”. Nesse país, mal o caminho está feito, logo a urze o cobre, logo a multidão o silencia ou a onda o varre. Se um caminho é a repetição dos passos de quem o frequenta, quem o verá mal a urze o cobre, mal a multidão o ignora, mal a onda o varre? INVISÍVEL. E de repente, AMADEO: “o salto compacto e desmesurado, aquele olhar para o interior de si mesmo como para o estranho mais consumado”.

Assegura, todavia, Agustina que é da força desse salto INSÓLITO, que sai uma estranha trilogia: “a revolução dos COSTUMES, a obra de ARTE e o delgado fio que nos liga à FELICIDADE”. Nisso acreditamos também. Por isso é este número da PONTES DE VISTA dedicado a AMADEO DE SOUZA-CARDOSO, exemplo maior de todos os caminheiros insolentes que existiram, existem e persistem.