Há pouco mais de um ano, lia um pequeno livro de Frederico Lourenço que tem este bonito e significativo título: O Livro Aberto. Aberto naquele sentido de Umberto Eco, admitindo a infinitude de leituras. Não lhe chamou “livro aberto” ou “um livro aberto” mas “O livro aberto”. O porque a Bíblia, que aí comentava Frederico Lourenço, se não é o livro mais aberto da História (mais vezes lido e referido, mais estendido e extensível), é pelo menos o livro mais paradigmático da leitura interminável. Pouco depois de publicar essa série de comentários à Bíblia, o autor escreveu um artigo para o Expresso sobre a variação dos relatos da natividade nos evangelhos, e um outro, já na Páscoa do ano seguinte, a propósito das incompatibilidades dos evangelistas nos relatos da morte e da ressurreição de Cristo. Nestes dois artigos, O Livro continuava aberto, interminável e irresolúvel. E, neles, estavam as duas ideias-chave de O Livro Aberto: 1) que ninguém fecha esse livro; e 2) que esse livro não se fecha a ninguém. Li, nesses comentários de Frederico Lourenço, aquilo que procuro quando tento desarmar certas doutrinas inflexíveis: a convicção profunda de que a Bíblia não exclui. A esta convicção se deverão as qualidades e os defeitos que, como qualquer outra tradução, A Bíblia de Frederico Lourenço terá. O primeiro volume da tradução, agora publicado, já dispensa apresentação. Chamam-lhe o acontecimento editorial do ano. E com razão. O marketing editorial atiçou o entusiasmo – mas que todo o marketing editorial servisse para publicitar clássicos indispensáveis à literacia cultural! O recente Prémio Pessoa também ajudou. Nada disso sobrevaloriza o trabalho de Frederico Lourenço, que teria o mesmo mérito sem tudo isso. Para começar, parte desse mérito está na intenção desta tradução, a de aproximar a Bíblia daqueles que se têm sentido (erradamente) excluídos por ela.
O livro interminável talvez seja (e por esse motivo) o mais extraordinário livro da História. É-o assumidamente para Frederico Lourenço. Por isso, se não fosse por outra coisa (mas também é), já seria bem-vinda uma tradução que tem na base uma leitura crítica, demorada e sinceramente afectada. Este último ponto é determinante e parece-me que não tem sido bem compreendido. O facto de o autor ter designado a sua tradução como “não-confessional, não-doutrinária e não-apologética” tem levado alguns a comentarem, errada e injustamente, que Frederico Lourenço se arroga de ter feito uma tradução objectiva. Ora, num certo sentido (e vou exagerar propositadamente), nada podia ser tão errado, porque um dos aspectos relevantes desta tradução é o facto de se sentir uma pessoa por detrás da tradução, um sujeito-tradutor. É por isso que me parece que será mais correcto se, de futuro, falarmos de uma Bíblia de Frederico Lourenço, como falamos de uma Bíblia de Ferreira d’Almeida. Creio que o propósito do tradutor reside no contrário do que alguns estão a insinuar. Se Frederico Lourenço afirma que o seu propósito é o de dar ao leitor uma tradução neutra (embora o termo possa levantar alguns problemas), no que respeita ao sentido das palavras em grego, é porque não entende a sua tradução como incontestável, coisa que por definição pertence aos dogmas e às doutrinas, mas como não-dirigida. O que isto significa é que a escolha do tradutor não respeita uma leitura pré-determinada por um credo específico. Mas não significa, contudo, que seja imune ao trabalho de biblistas e exegetas judeus e cristãos, dos quais se socorre largamente. Aliás, é esta uma das diferenças fundamentais desta tradução em relação à grande parte das traduções confessionais: há notas explicativas que, sem serem exaustivas, contextualizam as escolhas do tradutor e as problemáticas levantadas pelos termos e passagens. A diferença entre as convicções e os dogmas é o grau de contestabilidade que admitem. Parece-me que esta diferença é bem clara para o tradutor – e ele próprio não deixa de a sugerir, por exemplo, quando refere o soberbo esforço da Igreja Católica para conciliar os relatos inconciliáveis dos evangelhos, ao ponto de até Hans Küng, possivelmente o teólogo menos ortodoxo do catolicismo, ter conseguido aceitar a ideia de que os evangelhos não se contradizem. As notas desta tradução aparecem como um sinal da disponibilidade para a objecção e o debate. Quem conhece o trabalho de Frederico Lourenço pode esperar o habitual: segurança argumentativa, integridade analítica e honestidade científica – coisas que deviam ser incontornáveis no trabalho científico mas que, de facto, nem sempre são. Esta erudição completa (fundamentada e pertinente) é o corpo de uma análise límpida e acessível. Ora, isto, uma erudição leve, é coisa rara. Frederico Lourenço escreve para se fazer entender pelo grande público. Não escreve (exclusivamente) para helenistas, nem para biblistas, nem para filólogos, mas para leitores interessados, dispostos a perguntar (activos) e a entender (humildes). Escreve assim – deixando a boa sensação de ser o professor a quem se pode fazer perguntas, sem se ser impertinente, herético ou burro – quem lê assim: activa e humildemente. De modo sinceramente afectado, como dizia antes. Creio que é por causa desta leitura afectada que merece uma atenção incomum o que é do domínio do ethos e do pathos, da persuasão de ordem afectiva, portanto. Muitos dos seus comentários e notas referem-se a para-argumentos dos relatos dos evangelistas que se servem de estratégias oratórias (léxico utilizado, disposição sintáctica, musicalidade, etc.), que ajudam a traçar o carácter dos evangelistas e dos ‘personagens’ por eles fixados, sobretudo o de Jesus, naturalmente. Por outro lado, referem-se também aos meios centrados nos sentimentos do auditório, no auditório de ontem (os discípulos) e no de hoje (leitores do séc. XXI). Merecem a atenção do tradutor as manifestações ríspidas de Jesus, as insinuações machistas ou elitistas, as provocações e os rebaixamentos, mas também os modos de persuasão pela simpatia ou amabilidade. O tactear linguístico do texto que nos oferece a análise de Frederico Lourenço tem, a meu ver, um especial interesse por assinalar a unidade radical da estética e do juízo lógico, na construção do discurso bíblico. É certo que, tratando-se de uma tradução da Septuaginta, os próximos volumes relativos ao texto massorético não poderão ligar-nos tão radicalmente às intenções e estratégias dos autores dos textos, posto que esses foram escritos em hebraico. Mas pelo menos no caso dos evangelistas é do original que Frederico Lourenço traduz, e é por isso que pode comentar a beleza dos relatos, que lhe parece não raras vezes intencional e premeditada.
Ora, esta intencionalidade e estratégia retóricas dos evangelistas leva alguns a sentirem-se intimidados, como se persuasão e sacralidade fossem incompatíveis. Como se por dizermos que os autores se servem destas e daquelas referências e desta e daquela estratégias retóricas fizéssemos desabar a qualidade sagrada dos textos (é essa a etimologia da expressão Biblia Sacra, os livros sagrados). Em abono do autor e da sua tradução, é preciso que os mais distraídos comecem por notar que a escolha do título não terá sido arbitrária, e, se se escolheu “A Bíblia” (Os Livros), não se escolheu “A Bíblia Sacra” (Os Livros Sagrados). Essa escolha, porém, não é uma negação da sacralidade. A incompatibilidade da persuasão e do sagrado é só aparente, e resulta de um antagonismo entre o que se considera premeditado, planeado, logo artificial e indirecto, e o que se considera sagrado, que tem ligação ao natural e ao directo. Convém não esquecermos, porém, que a estratégia de que se possa falar é relativa aos autores dos textos bíblicos e nunca ao próprio discurso ou acção das personagens. Naquilo que mais interessa, as palavras de Deus e de Jesus, nunca poderemos falar com rigor da sua retórica. Primeiro, porque ela nos chega indirectamente; segundo, porque mesmo esses relatos indirectos não são conciliáveis, nomeadamente no que respeita às palavras proferidas por Jesus. Também isso assinala detalhadamente Frederico Lourenço, nos comentários e notas do vol. I da sua tradução. Apesar das diferenças dos relatos, as estratégias dos evangelistas assentam num mesmo propósito: o de contar a vida de Jesus e prová-lo Messias, através da intertextualidade com passagens das Escrituras Hebraicas, que se entendem proféticas. Portanto, neste volume da tradução de Frederico Lourenço, não só está assinalada a intertextualidade dos evangelhos entre si, que é tanto mais deliciosa quanto envolve discrepâncias inultrapassáveis, como está também assinalada a intertextualidade entre os evangelhos e o texto massorético
Há ainda outra ordem da intertextualidade, e esta é talvez a mais complicada, pelo menos nas perspectivas confessionais (tanto que praticamente não as mencionam). Refiro-me à intertextualidade que faz dialogar o texto bíblico com textos da tradição clássica anterior ou contemporânea aos relatos. Quem se entusiasma com o cristianismo primitivo sabe que as origens do cristianismo têm relações profundas com o helenismo. A resistência inicial dos judeus em relação ao helenismo perdeu força entre o século I AC e o século I DC. A diáspora judaica do séc. V-IV AC fixou judeus em terras pagãs e o cruzamento com a cultura helénica (ao nível linguístico e cultural pelo menos) foi determinante para a transformação do judaísmo e para a fundação do cristianismo – nos Actos (Novo Testamento), fala-se de helenistas, certamente judeus de Jerusalém que se tinham helenizado (6:1, 9:29, 11:20). Era, então, indispensável a tradução da Bíblia Hebraica para o grego comum, para instruir os judeus que, em terras pagãs, já não falavam nem entendiam o hebraico e queriam seguir a Lei. Mas, se por um lado a tradução interessava aos judeus, por outro lado, não é de excluir a hipótese dos gregos quererem conhecer a religiosidade hebraica. É neste contexto que surge a tradução dos LXX. Como afirma Werner Jaeger, a Versão dos LXX talvez nunca chegasse a existir se não fosse a expectativa dos Gregos de Alexandria de encontrar o segredo do que respeitosamente chamavam ‘a filosofia dos bárbaros’. Tratando-se de uma tradução que ‘ajusta’ a religiosidade hebraica à língua grega, parece-me inegável que a análise filológica da Septuaginta é determinante para a compreensão do cristianismo. É o grego comum da Septuaginta que traz para o seio do cristianismo todo um mundo conceptual, analógico e metafórico helénico. Além do mais, esta versão, como Frederico Lourenço explica na introdução deste vol., contém mais livros do que o texto massorético. Foi ainda esta versão que foi utilizada pelos autores do Novo Testamento, mas também pela Escola Catequética de Alexandria, de onde nos chegou a exegese bíblica alegórica de Clemente, Orígenes, São Jerónimo, Basílio de Cesareia e outros, que moldaram para sempre a face do cristianismo. Não será por isso prescindível a atenção ao diálogo helenismo-cristianismo. É esta necessidade ainda actual de estudar a Septuaginta que continua a dar razão ao aforismo romano que, referindo-se à grande importância da língua grega, diz que “a Grécia vencida venceu os vencedores”.
As notas que estabelecem paralelismos entre a tradição grega clássica e passagens do texto bíblico são, a meu ver, um dos aspectos mais meritórios desta tradução. Não apenas porque são pertinentes para a compreensão dos textos bíblicos, mas porque chegam ao leitor comum (em cuja existência eu continuo a acreditar), em princípio desconhecedor da hermenêutica bíblica (filológica ou teológica). As notas que nos remetem para as obras e os heróis de Eurípedes, Homero, Platão e outros são também importantes para clarificar as relações entre a Essência do cristianismo e a sua História. Porque, como disse atrás, o cristianismo não seria o mesmo sem a versão dos LXX. Os acrescentos e paráfrases do texto massorético, o acréscimo dos Deuterocanónicos (ou Pseudo-Epígrafos, para os protestantes) e de outros textos apócrifos fazem da Bíblia dos LXX um marco das relações entre a História e a Essência – as escolhas dos LXX são, em certo sentido, uma criação. E o Homem criou a Bíblia, como diz o título do teólogo André Paul. Para conhecer o que há de mais puro (aquela noção de neutralidade, que levanta alguns problemas) é preciso caminhar dentro da História. Nada se faz fora dela, embora se possa admitir que a Essência é maior do que a História. Porque tudo o que fizerem de Deus (e em nome de Deus) será inferior a Ele. Talvez a tradução de Frederico Lourenço contribua para popularizar a lúcida (e muito útil) ideia de que os cristãos também fazem o cristianismo. E também fazem Cristo (embora Cristo seja maior e melhor do que tudo o que façam Dele). Num dos artigos publicados no Expresso, Frederico Lourenço notava como é muito mais significativa a frase que aparece apenas em alguns manuscritos de Lucas – e, por isso, considerada inautêntica – “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lucas 23:34) do que aquela, considerada autêntica, de Mateus e Marcos (27:46 e 15:34, respectivamente) que põe o Filho a perguntar ao Pai porque o abandonou, possível sinal de naufrágio da fé, na distância entre o Pai e o Filho. O Cristo da maior parte dos cristãos prefere a inautêntica mas preciosa frase de Lucas à autêntica mas desalentada de Marcos e Mateus.
As críticas (mas que são contrabalançadas com muitas salvas) que se têm feito ao esforço de Frederico Lourenço não podiam, a meu ver, ser mais imprecisas. Todo o seu esforço me parece consciente destas relações intrincadas entre a Essência e a História – do texto, de Cristo e do cristianismo. A neutralidade de que se possa falar tem somente a ver com o aspecto confessional, não com a ingénua pretensão de chegar à coisa pura, porque o que é claro (e as notas e comentários desta tradução parecem dar conta disso) é que a coisa pura, a Essência, é centrífuga, como os braços de Cristo na cruz – abertos. Como O Livro e a sua leitura.
Se o louvável esforço das traduções confessionais nos tem lembrado que escutar atentamente a palavra de Deus é o dever de todo aquele que escolhe ser cristão, esta tradução de Frederico Lourenço lembra-nos que escutá-la, antes de ser um dever cristão, é uma graça para todo e qualquer ser humano. Deus não se impõe (a fé é uma escolha), mas tampouco exclui.