[E o que é a literatura senão o puxar mais longe as obras que nos servem de desejo para a construção das nossas? E que somos nós senão “turistas” sobre a terra, seres que, não sendo mortais, descuidam da imortalidade?]
“E como a natureza em um Ó deu ao desejo a figura da Eternidade, e a arte um outro Ó deu à Eternidade a figura do desejo; não há desejo, se é grande, que na tardança e duração não tenha muito de eterno.”
Vieira, Sermão de Nossa Senhora do Ó (1640)
Leio o romance de Inês Pedrosa como busca errática da contraditória síntese de duas culturas da mesma língua. A eternidade e o desejo (publicado em dezembro de 2007 pela Dom Quixote de Lisboa) enraíza no Brasil o habitat por excelência do seu entrecho, que parece ter sido composto como autêntico hino de amor e de ternura pela minha terra desigual e tantas vezes monstruosa que, malgrado tudo, Pedrosa dá mostras de amar para além das injustiças sociais, da falácia da autoridade, da corrupção e até da violência que, para o caso, torna cega a sua personagem principal.
Mas Clara, uma vez no meu país, começa a ver, por dentro das vozes e das palavras, uma outra existência dilatada pelo ambíguo Vieira, rastilho do seu assassinado homem brasileiro, e farol da invenção de um futuro que vai lhe doar a inteireza que, afinal, ela descobre no próprio entendimento do disparatado: dádiva da cultura brasileira e fundamento que reconhece seu.
O que significa que Clara passa a enxergar clarissimamente com o Padre e clarissamente com Érico Veríssimo: por dentro dos olhos. E pode, ao longo da sua peregrinação pelo Brasil, no encalço dos lugares e das palavras de Vieira, assimilar e dar voz aos alumbramentos que a visitam: o desejo enquanto experiência de eternidade, as obscurezas da nossa era também barroca, os jogos de poder da academia e da política, a doçura e a atrocidade da colonização portuguesa, a simbólica do candomblé, a confusão entre religião e Estado, entre identidade e nação, a distância/proximidade entre o Brasilluz e o Brasililusão, entre a Lusitânia e a Terra de Vera Cruz. E esta obra de Inês Pedrosa vai-se montando, na esteira das palavras e do cordame da voz do Padre (que ela invoca para amparar a precariedade da sua escrita), num engenho dilacerador da escuridão e dos enigmas entre ambas as culturas – a portuguesa e a brasileira.
Clara entende, então, que escorre das paredes do seu Portugal “uma mágoa de espoliados da epopeia do mundo, um sentimento que se curvou sobre si mesmo e se avinagrou” enquanto o céu do Brasil “é um espelho, água e aço, nítido e real, que cega e mata e suga e nos corrompe de azul ainda, porque o óbvio cega mais do que a cegueira” (p. 198). O Brasil de Inês Pedrosa não tem nada do idealismo ufanista, do pitoresco ou do folclore para inglês ver. Ele é roto e cruel, bojo de luzes berrantes que toldam a vista e que também alumiam; é violento e doce, um gigante espicaçado e de intermitente despertar. O Brasil se torna, assim, um paradoxo latejante de contrários que se fundem e se digladiam: é tempo lento e eternidade fortuita.
Nesse embate de culturas da mesma língua, que se trava dentro de Clara, Vieira realiza a síntese, a mixórdia entre as duas pátrias, o liame que a loucura e o desmantelo brasileiro tecem com a formalidade, com a ancestralidade e com a heróica história portuguesa. De modo que Vieira passa a ser, para Clara, “brasileiro e português”, “galo de Barcelos” e “mestre de capoeira” (p. 108).
Por meio desse olhar dilatado, Clara há de enxergar também os percalços que atingem ambas as culturas, que ela ironiza com humor e critica com veemência: a inocuidade da literatura de auto-ajuda; a atração pela deficiência; a preocupação contemporânea pelo supérfluo; os desdobramentos ou sínteses do feminino; a máquina de sedução do magistério; as questões editoriais e o capitalismo; a palavra enquanto utensílio sofisticado para tapar a voz; e, por fim, a própria função da crítica literária – hoje investida de poderes capazes de agrilhoar um autor para estendê-lo em aulas que cuidam de lhe esgotar o sopro.
Todavia, para a consecução dessa lucidez por parte da personagem principal de Pedrosa, os Sermões de Vieira não comparecem em harmonia e muito menos na sua exegese. Com o desejo de desordem substituindo o de poder, a escritora bombardeia os textos de Vieira que resultam em fragmentos descontextualizados, em “constelações órfãs” (p. 150), aos quais ela arranca a integridade e a hermenêutica, arremessando-os à atualidade, convertendo-os em bens inestimáveis ao século XXI.
Como “catapultas”, “berços” ou “fornos”, as palavras do Padre se investem, portanto, de “gestos de reconstrução do mundo” (p. 19), e Vieira, paulatinamente, há de ser devolvido a uma nova competência: a que brota do eco das palavras dele na experiência contemporânea e brasileira da Clara portuguesa. Porque é como pioneiro dos direitos humanos, como prefigurador do modelo social sem fronteiras – do que se busca construir hoje; é como “multiculturalista valente” (p. 80), como paladino da interculturalidade, e, sobretudo como escritor do “desacontecimento esplendoroso e íntimo” (que é a alma, p. 150) e daquilo que é a “matéria escaldante e enigmática” (e que é coração dos homens, p. 141) – que ele vai sendo reconhecido e apalpado pouco a pouco pela personagem cega e por nós leitores.
E a arquitetura do pensamento do Padre – que, como o “Ó” do seu citado sermão, se expande em linhas circulares, no rasto de “um barroco expansivo”, abrindo-se em “círculos em vez de os fechar” (p. 158) – passa a ser exemplo de escrita que se dilata para além do enredo de A eternidade e o desejo, contagiando a estrutura deste romance de Pedrosa. De maneira que não só a eternidade e o desejo se tornam duas coisas parecidas e retratadas na mesma figura, mas também (e especularmente) a própria obra.
Tal específico espelhamento (que também se distorce) rege ao mesmo tempo a concepção íntima deste romance. Observo que o próprio tratamento da narrativa o desenha, visto que esta anda a passos de discurso indireto livre num jogo de um contra o outro, de encontros e desencontros. Ocorre que Clara ou Sebastião ou quaisquer personagens narram sempre por meio de um discurso que se bifurca entre o que “digo” e o que “dizes”, que, desta forma, se espelham, se embatem e se disputam, sem se anularem entretanto. Quando não, diálogos diretos, isentos de mediação de narrador, põem em circulação de confronto as personagens que propagam a narrativa em imperscrutáveis circuitos que se espraiam para acolher o seu contrário, sem, todavia, neutralizá-lo. Também cartas ou emeios trocados, monólogos semaforizados entre parênteses, persistem nessa função de contraposição, confronto, reflexo e assimilação da palavra alheia a partir do mesmo centro, a partir do mesmo ponto que lhes propicia ir ampliando e dilatando as circulações. Medeiam tais recursos narrativos a presença sempre pulverizada da obra de Vieira, interseccionando e contrapontuando o curso dos acontecimentos contemporâneos da intriga, para sugerir-lhes novas desembocaduras.
Também o arcabouço do duplo se dispõe a avivar esse expansivo movimento circular, que fica exposto num desdobramento simultâneo que abarca António Vieira, António bahiano, António poeta; ao mesmo tempo, a Clara portuguesa, a Clara brasileira e as incontáveis Claras; ao mesmo tempo, o livro, o filme e a banda sonora. Também para o amante brasileiro, que tenta inutilmente captar Clara numa tela, sempre era como se ela fosse “única e semelhante a todas as mulheres, em simultâneo”, encontrando-se nela “junto o que nas outras se acha dividido.” (p. 204).
E o desdobre que cataliza as outras instâncias romanescas fica expresso no embate entre Portugal e o Brasil, refletidos, irmanados e sincronicamente mui diversos. Do entrechoque dessas duas nações, na lúcida ótica cega de Clara, sobrevêm a consciência da sua mestiçagem e a constatação da ubiqüidade, da identidade transcultural e diversa que ela reconhece em si. Pois não é verdade que, a crer em Vieira, a contraditória também cabe na esfera dos olhos? E, no caso, de uns olhos cegos?
E daí que esta obra, como objeto de linguagem, de articulação de diferenças e semelhanças, asile o centro da sua própria circunferência na língua portuguesa comum. Se na fábula alemã em que se esquarteja pelo universo o corpo do Diabo, dele cabe aos lusitanos, como o quer Vieira, a língua, não é à toa que o eixo semântico e nervoso de A eternidade e o desejo se situe justo no poema “A minha língua”. Também não é por acaso que Clara o crie e o envie a um Sebastião que, muito embora tocado tanto quanto ela pela tragédia, acaba preferindo perseverar como “guardador de valores perdidos e de amanhãs desvirtuados” (p. 29). Diferente do seu homônimo, este Sebastião retorna à “metrópole”, mas agora para ser emblemático do Portugal arcaico, das frases consensuais, da “língua náufraga” que, não por acaso, flutua “no casco das palavras”: trata-se da “língua salgada e sôfrega,/talhada pela raiva dos sobreviventes.”
A língua de Clara, sendo a mesma, é, no entanto, outra: ela se abre para as ligaduras, para tracejar arcos, para fundir-se. É uma “língua combativa e ardilosa como uma ponte levadiça” (p. 173), língua portuguesa morosa e lúbrica, “baile de gerúndios”, desafiando o empedernido infinitivo, num “banquete de verbos irregulares” que atropelam a “língua lenta” do “conversar corrido”.
Língua
com uma navalha em cada vírgula
e uma gargalhada negra
vibrando nas cordas da noite. (p. 174)
Num outro livro também dedicado a Vieira, No coração do Brasil (Seis cartas de viagem ao Padre António Vieira), publicado no mesmo ano, na mesma editora e na mesma data, Pedrosa, como se experimentasse para si, como escritora, esse espelhamento circular distorcido que pratica no romance, há de afirmar em diálogo direto com o Padre:
“Contigo descobri o voluptuoso júbilo da língua portuguesa, esse cordão umbilical feito de sangue e luz que une, no mesmo coração, Portugal e o Brasil.” (p. 91)
Assim, ter perseguido Vieira é ter “atravessado o forro da terra, um planeta sincrético, descosido do tempo e das estrelas” (p. 90).
Como se constata, o espelhamento vislumbrado na intimidade do romance transborda, pois, em círculos do sermão do “Ó”, para fora desta obra e alcança até mesmo uma outra, sua igual e diferente, ambas revolvendo em desenhos concêntricos a água fundeada pelo marco da pedra inaugural de Vieira.
Assim, se no Sermão de Nossa Senhora do Ó, “o gozo último supõe a outridade do bem, a contemplação do desejado como alguém diferente de si” (como me confessa pessoalmente Alcir Pécora), em A eternidade e o desejo, o desejado e a presença sensível se desdobram (de Pedrosa) em personagens, em obras, e até mesmo em incontáveis Vieiras. As obras, afinal, são filhas do pensamento e da idéia com que cada um se concebe e conhece a si mesmo, tal como o Padre nos ensina.
E o que é a literatura senão o puxar mais longe as obras que nos servem de desejo para a construção das nossas? E que somos nós (para regressar à epígrafe vieirense do romance) senão “turistas” sobre a terra, seres que, não sendo mortais, descuidam da imortalidade? O que somos nós senão “um bando de gente condenada à mortalidade, em busca de motivos de atordoamento”? (p. 38)
De uma linguagem que procura, por tais meios, alcançar o outro, abrindo-se para mais longe ainda, pode-se assegurar aquilo que Vieira especula sobre a imensidade e a extensão sem limites: que seu centro estará em toda a parte e a circunferência em lugar nenhum. E a escrita de Pedrosa, praticando tal largueza e multiplicando seus “Ós”, desloca o nosso entendimento para mais adiante, e nos fala a partir de um lugar movediço sempre surpreendente, para o qual nunca tínhamos atentado. E de tal modo que, de repente, tudo começa a pipocar de luz e a explodir surdamente, e se torna, então, imperativo saber: que palavra é essa que vem tão possuída e mal se diz? Que vislumbre de coisa é esse que nos arrasa e nos alça para um encanto flutuante num incerto roteiro? E corrói e atiça e relampeja e deleita e dói?
Meus senhores: é a língua portuguesa, com certeza! Exercida na sua plenitude de língua mestiça expandida por culturas que se atraem e se repelem, que se espelham e se recusam, incorporando e fundindo, afinal, as felizes infelicidades, as bem e as más aventuranças recíprocas – e, mais que tudo, propagando o gozo da sua escrita, para que ele seja perpétuo.