As reflexões sobre a palavra, o discurso, a imagem e o signo voltam a estar presentes, neste volume, sobretudo nos escritos publicados postumamente e nas prelecções de filosofia, que reúnem considerações sobre epistemologia mas também sobre semiologia e hermenêutica (embora Leonardo identifique os seus tópicos como estudos sobre a “filosofia das ciências” e sobre “teorias e natureza dos conceitos”). A este respeito, são relevantes, entre outros, os textos “Acção e Pensamento”, já referido, “O homem às mãos com o Destino” e “A alma”, além das prelecções. O segundo texto referido tem um particular interesse: vem esclarecer questões que se podiam já extrapolar a partir de textos anteriores, nomeadamente no que respeita a uma língua política, à estagnação dos costumes (que Leonardo relaciona com os conceitos de Magia, Mito e Tabu) – os hábitos que o autor quis, desde o início, anular com o seu criacionismo –, e às noções de drama e de tragédia. A ideia de uma língua política pressupõe que a língua é mimada, tendo em si uma dinâmica social – mimar a língua é pôr nela, na sua estrutura, sentidos partilhados. A língua demarca, quando lhe é transmitida, a posição do indivíduo na ordem social (por isso é que é política): a “psicologia e a lógica da linguagem obriga o indivíduo às primeiras interpretações de toda a realidade”. O problema, para Leonardo, está no modo como o mimado se torna facilmente minado, e o inicial desejo vital da partilha se torna inerte, alheio a novas relações humanas. É próximo disto que anda o mito, de acordo com Leonardo. Contrariando a ideia da actualidade do mito, Leonardo deixa claro que este é antes o ritualismo apático que precisa recuperar o seu coração originário. Recuperar a inocência do mito (a sua essência vital) é o que a arte deve fazer. Ora, considera Leonardo, o que ela tem feito o mais das vezes é reiterar o mito. O que o autor pretende da arte é que esta revisite as relações ontológicas do humano com a vida, que revisite a essência da tragédia, oferecendo ao público a vivificação do mito. O mito não deve perpetuar o absolutismo de uma imagem mas ressoar antes como arquétipo, de onde se deve emergir para recuperar a liberdade. O mito é aquilo que se combate mas também aquilo porque se luta – combate-se a sua forma inerte, luta-se pelo seu potencial de vida. Pela libertação do mito se trará ao público o drama, porque “o Drama é essencialmente a vivificação do mito”. O drama, neste texto como em outros anteriormente publicados, é a dinâmica vital, o percurso de uma hierarquia rítmica a penetrar o universo e os seus corpos; é, enfim, a trama de um corpo-energia no cruzamento com os seus pares. O drama tem um sentido abrangente, em Leonardo Coimbra, e é, essencialmente, o percurso de uma “razão experimental”, aliás, talvez mais de um “espírito experimental”, porque a razão, numa fase mais tardia, já é o paradoxo de uma razão irracional ou invertida (à semelhança de uma razão franciscana). Até porque a razão, a lógica, é um álibi que nos liberta do crime (“A lógica foi conquistada pelo assassinato. É uma invenção para o evitar”), por isso, quando seguros do amor, nos libertarmos do mal, poderemos abandoná-la. O grande esforço do drama deve ser procurar a “altura do espírito”, que é a “unificação dinâmica de todo o seu esforço”. É este, para Leonardo, o caminho da conciliação dos contrários, daqueles dualismos acção/ pensamento, experiência/ razão, corpo/ espírito, matéria/ ideia, que nos reunirão em Cristo. O caminho é delicado, tangencial, misterioso: “Deus revela-se por tangência”.
Este volume tem um outro particular interesse: além de nos dar o drama teorizado, dá-nos também o drama pessoalizado, através das cartas pessoais, que são um contributo para traçar o perfil de Leonardo Coimbra. Entre outras coisas, elas dão-nos um homem humilde, com singulares laivos de prazer pela injúria, abalável mas incessante, mas acima de tudo um homem que procura ser tão santo quanto Deus o deixe ser. Um excerto que me parece sintetizar isto está presente numa carta a Teixeira de Pascoaes, a respeito de um processo judicial: “Eu nada posso desses senhores juízes, que no alto da sua nobilíssima posição social nunca ouviram falar deste humilde sonhador, que sem talento mas cheio de fé, esperança e amor vai vivendo cá em baixo senão briosamente com certeza com mais bondade, com maior ânsia de bem, com mais aspirações de anjo que Suas Excelências”.
O volume reúne ainda reflexões várias sobre as ciências físicas e as matemáticas (aritmética, geometria, álgebra, etc), sobre as quais não me vou estender — nem este é o espaço, nem eu a pessoa certa —, posto que ultrapassam, regra geral, (excepção feita ao próprio Leonardo) o âmbito daqueles que se movem pelas Humanidades. Nestes tópicos, tenho a humilde sensação de ficar no limiar da profundidade do seu pensamento. Mas, enfim, estas reflexões de Leonardo sempre são um estímulo para os estudiosos das Humanidades que se puserem à prova, e certamente uma mais-valia para os estudiosos das ciências exactas, alguns dos quais já terão dado conta da relevância dessas reflexões, a partir de outros textos (a este respeito, vale lembrar a formação altamente densa do pensador, que inclui o curso de Ciências Físicas e Matemáticas, na Universidade de Coimbra; o da Escola Naval, onde se tornou guarda-marinha; o magistério, em Coimbra; o curso de Matemáticas, na Escola Politécnica do Porto, a formação para a docência do Curso Superior de Letras, em Lisboa; além dos estudos incessantes que fará ao longo da sua vida e que ressoam nos seus discursos e escritos, abrangendo, genericamente, as ciências e a metafísica, a medicina e os fenómenos metapsíquicos, a teologia, o direito e a ética, os estudos literários (poética e teatro clássico) e a filosofia, a História e disciplinas, à época, em desenvolvimento acentuado como a psicologia, a sociologia e a antropologia).
A multidisciplinariedade de Leonardo Coimbra deve, por último, ensinar-nos isto: “não devemos prender-nos tanto à severidade dum só cuidado que o egoísmo nos encerre às grandes maravilhas que nos cercam. Não é o descanso bruto dum ano que precisamos, mas a largueza de vistas que nos não feche o horizonte e sobretudo o egoísmo duma só preocupação que nos cerre os olhos ao amor das crianças e do que nos cerca”. De resto, a especialização não recebe muitos elogios pela parte de Leonardo. Aliás, há até um particular desprezo por ela, porque ela disfarça, muitas vezes, o mero verbalismo — por exemplo, ao comentar sobre a solução para a ruína financeira nacional, aproxima, pejorativamente para os segundos, a sua cozinheira (decerto só surgida para a ocasião) aos economistas: “Encurtar as despesas e aumentar as receitas diz a minha cozinheira de acordo com quase todos os economistas. […] Eis tudo o que pude aprender de finanças com as sábias lições dos sábios mestres redentores”. Fundamentalmente, o que Leonardo quer dizer, relativamente à especialização, é que o importante é não acreditar que as limitações do nosso método e da nossa ciência são as limitações da realidade.