A democracia parte de uma análise social errada, uma vez que, segundo Leonardo Coimbra, tem utilizado uma sociologia não como “descoberta de realidades […] que se modificam ou desfazem”, mas como preparação para a técnica política, por meio da informação de outras ciências, nomeadamente da histórica política, do direito, da economia, etc. A sociologia na qual se baseia, por princípio, a democracia é mais uma retórica política. É esta, para o pensador, a origem do erro democrático ao pensar a liberdade. Efectivamente, a democracia, como a entende Leonardo, parece sempre enfatizar de modo despropositado as dependências materiais do humano (despropositado porque colocado em primeiro plano, não porque não tenha pertinência absoluta). E porque o erro da democracia é, na base, a origem da sua axiologia, que é o materialismo em vez da liberdade, também as suas facções – para Leonardo, estupidamente divididas entre direita e esquerda – ressoam este erro. A axiologia da democracia tem-se esquecido do “culto e insaciável coração da Justiça” onde reina não o perfeito mas o perfectível: “Ah! Se eu tivesse palavras-chama, vozes-incêndio, que queimassem o corpo incombustível do ar, eu havia de erguer a figura, que meus olhos espirituais visionaram, em puro fogo de Amor, que aquecesse as almas e fizesse o degelo desta Democracia anquilosada!”. Outra nota a respeito das inclinações políticas de Leonardo: certamente, o leitor conhecedor da obra já publicada, ou de parte dela, se dará conta que a ordem social ideal de Leonardo ecoa uma simbiose entre anarquia e cristianismo; de resto, simbiose nada surpreendente para quem entender, de facto, o que significam ambos os conceitos para o autor (conceitos que são, naturalmente em Leonardo, também práticas). Mas voltando à proximidade entre direita e esquerda, neste volume, como anteriormente, Leonardo reconhece-as apenas como “coordenadas do espaço”, e não posições políticas, descredibilizando o bipolarismo das ideologias partidárias e apontando para a sua confluência (cf. “Espíritos liberais e espíritos reaccionários”): “A vida nacional vai-se fragmentando dia a dia em grupos de iniciados, a cuja iniciação preside um baptismo de ódio e cegueira para tudo quanto fique fora dos seus interesses ou credos”, e, no limite, “é este estado de espírito que faz aí pulular os Mussolini, aptos a salvarem o país, por uma ditadura, que será benéfica sempre que por eles seja exercida”. A postura de Leonardo Coimbra é só uma: “o valor vale em qualquer campo que se encontre, embora saiba que o ponto de aplicação de um valor pode aumentar ou diminuir a sua eficiência social”.
O problema da liberdade, nomeadamente da liberdade pensada pela democracia, percorre as actas parlamentares e textos como “A personalidade espiritual de Guerra Junqueiro”, “O espírito e a guerra”, os atrás mencionados, entre outros. Muitos poderão encontrar um certo radicalismo no pensamento político de Leonardo – aliás, não só no político – mas é preciso perceber – e seria bom que isto não tivesse de ser recordado – que a polémica só é válida se se entender minimamente que o pensamento político de Leonardo Coimbra vai à raiz – é por isso que é radical! – do problema da organização social e das suas implicações espirituais; é preciso não o desbaratar como “fundamentalismo” sem aplicabilidade prática. Porque, aliás, mesmo a acusação de “fundamentalismo” possivelmente não incomodaria muito Leonardo – escreve noutro texto que “há bom e mau conservantismo, como há bom e mau revolucionismo” (“A origem e o valor da ideia de vida espiritual”), fazendo recordar outra das suas máximas: a de que não há simplicidade do bem e do mal a priori. Os conceitos puros são, para Leonardo, equívocos. Conceitos puros implicariam determinismo, e não criacionismo e experimentalismo, termos-chave da sua obra. E, isto, naturalmente, vai ter a Cristo. Para Leonardo, Cristo e a liberdade cristã que a sua Pessoa veicula não se confundem com o determinismo inabalável (de uma religião quantitativa, que submete todas as possibilidades da existência a uma só forma; o domínio absoluto, a tirania suprema), mas são antes o infinito reinventável, a partir de onde se espraiam a criação e o amor.
Outro tópico-mestre, em Leonardo, e neste volume com particular destaque, é o dos dualismos que confluem, nomeadamente os dualismos acção/ pensamento, experiência/ razão, corpo/ espírito, matéria/ ideia. Na verdade, o problema social e político é, para Leonardo Coimbra, essencialmente o problema das relações entre a acção e o pensamento. Um texto particularmente relevante sobre o assunto, “Acção e Pensamento”, encontra-se agora publicado, neste volume. De facto, este texto importantíssimo torna claro o lugar-tempo em que a cisão entre a acção e o pensamento se estabeleceu, para durar até hoje: a Idade Média. Textos anteriores indiciavam já um certo “equilíbrio medieval” percepcionado por Leonardo, mas este texto parece torná-lo mais evidente, sobretudo no que respeita às motivações para tal concepção (sempre mais de modo negativo, isto é, mostrando os defeitos das outras épocas e cosmovisões). De modo simplificado, a destruição do equilíbrio medieval dá-se quando a mecânica se sobrepõe à criação, quando a beleza real fica encoberta por uma beleza formal, quando o “Logos do quarto Evangelho” se subordina ao “Logos da proporção e da harmonia mecânica e geométrica”. É isto: “O amor da verdade vai dominando a verdade do amor”. Evidentemente, está-se a distinguir o Logos de João, que fundamenta uma cristologia da Revelação (a verdade pelo amor), do Logos racional, absoluto e irrevogável como a verdade matemática (o amor à verdade). A separação entre acção e pensamento é, de resto, a separação entre amor e conhecimento. Claro que a obsessão pela verdade formal dissociada da verdade existencial não é, para Leonardo, sequer uma verdade: para o filósofo, a verdade verdadeira é a que reúne pensamento e acção, corpo e espírito – por alguma razão Leonardo quis pensar, teorizar, viver e contagiar uma “Razão experimental”. A verdade do Logos geométrico é uma verdade paródica, uma paródia da verdadeira verdade. E isso o provará, crê Leonardo, a Teoria da Relatividade, nova onda de esperança de uma “concepção espiritual do Universo” (ao ponto de podermos talvez fazer confluir os resultados de Einstein na ciência com o que se propunha alcançar Leonardo no campo filosófico-humanístico). A relatividade não é acaso mas dependência: os corpos movem-se em relação uns aos outros. É esta relação, esta dependência, que permite uma “nova concepção espiritualista do Universo”. Esta concepção que rejeita o estaticismo do (tempo) absoluto e recupera a dinâmica da combinação – o espaço ligado ao tempo (espaço-tempo), a matéria ligada à energia (matéria-energia) – significa, para Leonardo, a abertura à hipótese da centralidade de uma energia suma, a do amor (a relação que une, distinguindo), de onde corre a criação.
Mais uma nota para aqueles que continuam a julgar a adesão de Leonardo Coimbra ao catolicismo uma incoerência com o seu pensamento e um ímpeto súbito de desespero perante a doença do segundo filho: Leonardo diz explicitamente, no texto a que me referi anteriormente, que o esforço para “ligar no mesmo amplexo o amor da verdade e a verdade do amor” vem por parte da “Igreja histórica”. Voltando ao texto, o que se segue é uma exposição pelos caminhos da ciência e da filosofia, no sentido de tornar claros os motivos desta cisão que percorre a História, indiciando a solução que, naturalmente, em Leonardo, aponta (mais directa ou indirectamente) para Cristo. A confluência dos dualismos pensamento/ acção, palavra/ obra, espírito/ corpo, etc (aparentes opostos), remeterá recorrentemente para a figura de Cristo: Cristo é o conciliador dos contrários. Como disse Santo Agostinho (que é, por alguma razão, uma influência que Leonardo não gosta de admitir), ao falar da natureza paradoxal de Cristo, Ele é “o bebé silencioso que nasceu num silêncio que se tornou grito; que nos ensinou a ser ricos, quando se fez pobre; que nos fez procurar a liberdade, sendo ele servo por nós; que nos fez desejar o céu, tendo Ele surgido da terra”. Como escreve Leonardo, embora Cristo carregasse “o peso do seu destino e dos futuros destinos dos homens”, tinha nas “suas palavras a tranquilidade e a profundeza duma noite calma de verão”. Em Leonardo, a palavra tranquila e pacificadora, simples e, por vezes, parca procura Cristo, mas o palavroso e o verbalista são declaradamente o traiçoeiro e o feroz, como volta a comprovar o título de um inédito, “Os truculentos, os malévolos e os acácios”, colocando-os todos em sintonia.