Maria Teresa Horta, menina

Maria Teresa Horta entrevistada maria luisa malato revista pontes de vista _ 01Maria Luísa Malato

entrevista

Maria Teresa Horta

Hesitamos em escrever uma introdução biobibliográfica a esta entrevista a Maria Teresa Horta. Que sentido tem a biografia de uma escritora para quem a conhece, e são tantos? Que sentido pode fazer uma biografia para quem não a leu? Deviam. Nascida em Lisboa, a 20 de maio de 1937, mais nos interessa a sua universalidade. Descendente por via materna e paterna, da Casa de Fronteira e da poetisa Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, sobre a qual escreveu As Luzes de Leonor (2011), o que interessa nela é uma indelével aristocracia de caráter. E as luzes de Leonor mais deviam fazer parte da nossa “educação sentimental”. Co-autora, com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno (as Três Marias), das Novas Cartas Portuguesas, obra proibida pela censura e julgada em tribunal por imoralidade em 1972, ensina-nos, em cada obra que publica, do Espelho Inicial (de 1960) a Meninas (de 2014), uma contínua naturalidade da provocação. Minha Senhora de Mim, provocação maior que a vida não existe! Jornalista de profissão (trabalhou no Diário de Lisboa, n’A Capital, no República, n’O Século, no Diário de Notícias, na revista Mulheres, no Jornal de Letras, Artes e Ideias/ JL…), sublinha bem que Cronista não é recado (1967). Acaricia por nós “as palavras do corpo” (cf. 2012), pois “Morrer de amor/ e de amar” é a morte que todos nós devíamos fazer por merecer.

– O mundo académico debruça-se amiúde sobre a distinção dos géneros. Vai opondo o discurso lírico da emotividade da primeira pessoa ao discurso narrativo da pseudo-objectividade da terceira. O discurso dramático é um tertium genus em discurso directo…  

– A distinção dos géneros literários parece interessar bem mais aos académicos e aos críticos, do que aos escritores… Discurso lírico, discurso narrativo ou dramático, são opções que não se me põem quando escrevo, senão para os misturar entre si
para os mudar, usar-ousando pelo seu próprio avesso, para os tumultuar, insubordinar. – Aliás, mudar, inverter, não cumprir as regras, é o que verdadeiramente me convoca no acto da escrita. Tenho um poema que começa assim:

Na escrita há que correr/ Todos os riscos/
derrubar fronteiras e limites () 

– Quando leio os poemas da MTH (vou-me ficar na palavra “poema”) encanta-me sempre o jogo entre o lírico que se torna narrativo, o narrativo que se torna lírico, o narrativo que se torna dramático. Em que medida é este hibridismo voluntário?

– Esse jogo (como a Luísa lhe chama) interpreto-o eu como sendo um aliciante “jogo literário, que me convoca num constante desafio entre o lírico e o narrativo, que por seu turno poderá vir a tornar-se num discurso dramático.
“Hibridismo” ou multiplicidade de linguagens que se interligam, se fundem, portanto, enquanto desafio que a literatura me impõe? – Não, a escrita nunca me impõe nada, sinto-me absolutamente livre quando escrevo, dependendo apenas de mim mesma e da minha liberdade livre.

– Será por causa desse hibridismo que nos deparamos quase sempre com uma poesia lírica que é tratada como se fosse um romance de intervenção, e mete medo às autoridades que temem todas as intervenções sociais que não controlam?

– Creio que é, sim, por causa do desafio que a vida – portanto a Literatura e particularmente a poesia – em si mesma comporta. Os defensores do poder absoluto sempre tiveram medo da cultura, da Liberdade, inclusivamente da liberdade de expressão, dos escritores, dos poetas. Por isso, durante a guerra civil espanhola, os seguidores de Franco fuzilaram o poeta Garcia Lorca. E no Portugal fascista queimaram os livros da poetisa Judith Teixeira, proibiram o meu livro de poesia “Minha Senhora de Mim”, tendo sido directamente a PIDE – a polícia política do regime de então, a ir apreendê-lo à editora Dom Quixote. Um ano mais tarde, foi a vez de “Novas Cartas Portuguesas”, de que sou autora juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa.

– Qual é a função do erotismo nesta poética de intervenção?

– Exactamente a mesma função literária de tudo o mais que a minha escrita trata, conta-cria, quer enquanto poesia, quer quando a mudo em ficção. O motivo da estranheza das pessoas diante da minha escrita erótica creio advir, unicamente, do facto de em Portugal haver poucos poetas, poucos escritores do erotismo, não se encontrando entre eles nenhuma mulher. Mas não posso deixar de reconhecer que, sendo eu uma mulher dos sentidos, a minha escrita erótica é um voo de gosto e gozo, em torno das palavras do corpo.

– Em que medida as palavras têm género? Eu não digo género gramatical, mas género poético? Há palavras femininas, a começar pela palavra “palavra”?

– Sim, as palavras e tudo o mais que diga respeito à língua e à linguagem, na escrita seja ela poética ou ficcional, têm género. Sempre defendi existir uma escrita feminina e outra masculina. Claro que as palavras têm sexo. Aliás, se tudo na vida tem sexo, porque não a escrita, porque não a poesia?

– Seria talvez interessante comparar a questão com os que dizem que há “palavras literárias”. Eu não sei quais. E talvez por isso tenha reparado (mas estarei errada) que, desde sempre, mas sobretudo nos últimos livros de MTH, ganham outro protagonismo as palavras hermafroditas, misto de Hermes e Afrodite, como se a educação sentimental fosse uma forma neutra, que em todos cabem… Talvez me explique melhor, referindo-me ao conto/capítulo “Lilith”, no início de Meninas, em que me parece trabalhada a ambiguidade do sexo dos corpos que se repelem e tocam, durante o nascimento…

– Não entendo o que possam ser palavras literárias, pois escrevo com todas elas; ou seja, para mim todas as palavras são da condição da escrita. Adoro descobrir palavras novas, ir atrás das palavras perdidas, esquecidas, caídas em desuso, palavras deixadas para trás,
cobertas pela poeira do tempo; mas também adoro inventar palavras para designar sentimentos, desejos ocultos, estados de alma ou de corpo, sentimentos proibidos, “indizíveis”, que me ajudem, quer em poesia quer em ficção, a desvendar, a caracterizar, a construir determinado poema ou personagem.

Talvez por tudo isto, me pareça particularmente estranho quando me fala de palavras quase híbridas que desconheço, ou mesmo hermafroditas, como a Luísa diz, esse misto “de Hermes e Afrodite, como se a educação sentimental fosse uma forma de conhecimento neutra” … Eu que escrevi um livro intitulado, precisamente, “Educação Sentimental”, que, quanto a mim, é o meu livro mais exacto e “racional”, preciso e determinado. Mas que é, sobretudo, uma resposta feminina à masculina “Educação Sentimental” de Flaubert. – Dir-me-á que também escrevi um livro de poesia intitulado “Os Anjos”… Com poemas que abordam, igualmente, e de forma claríssima, o hermafroditismo… Exactamente, mas aí não são as palavras que surgem como hermafroditas, antes sim os próprios anjos – suas personagens – a comportarem essa dualidade.

Desafio? – Exactamente: de novo o desafio.

– E quanto a “Lilith”?

– “Lilith” é um conto que me levou meses a escrever, até conseguir alcançar aquilo que pretendia: uma história de obsessão, de criação da identidade feminina, identificação e perda, antes mesmo do nascimento. Mas, igualmente passagem de um idealizado paraíso interior, onde não há Eva e sim Lilith, para o mundo real; portanto, oposição e queda.
Ser a outra antes de si mesma?

– Qual o valor das palavras exóticas? São tantas na poesia de MTH. Fazem lembrar as “palavras peregrinas” de que falavam os antigos gregos: quase parecem estrangeiras. Não se lhes sabe bem o significado: só as conhecemos por fora. Ouvimo-las, vemo-las e elas valem bem pelo que ao ouvi-las e ao vê-las imaginamos, ainda quando sejam técnicas, demasiado técnicas: “nardo”, “azul da china”, “lápis-lazuli”, “azul-cobalto”, “miosótis”, “almíscar”, “adonis vernalis”, “ésula”, “caládio” e outras coisas que fazem demasiado elementares as “50 tonalidades do cinzento”…

– Nunca sinto as palavras com as quais escrevo como sendo palavras exóticas ou técnicas, menos ainda estrangeiras, pois pertencem todas elas à belíssima e espantosamente sábia língua portuguesa, que tanto amo, profundamente agradecida pelo desmesurado prazer que me dá trabalhá-la usando-a, utilizando-a tal como é, ou reinventando-a, moldando-a, reescrevendo-a,
colhendo-a, tomando-a e fazendo-a minha.
Partindo do meu imaginário até à minha mão que escreve, à boca da minha escrita, a reescrevê-la com um infinito gozo.
Ciente das múltiplas tonalidades diversas de que a sua cor é composta, seja ela “azul da china”, “azul-delfim”, “azul-genciana” ou “azul-cobalto”. Consciente da sua textura e condição de… quem sabe… “lápis-lazuli”? Mas existem ainda os inumeráveis odores, que o corpo da escrita sempre para si toma e transfigura… perfume de “almíscar” ou de “rosa assombrada”…
A querer significar precisamente isto.
Ou exactamente o oposto?

– Reparo por vezes também na abundância de gerúndios. Creio mesmo que têm crescido em número e graça: “resvalando”, “repetindo-se nessa urgência”, “deslizando-te na língua”, “iludindo a luz”, “distorcendo a avidez”. Muitas vezes aparecem, não só para indicar continuidade, mas, pelo contrário, a simultaneidade ou o paradoxo de muitas coisas que sucedem ao mesmo tempo… Em que medida se podem eles ler como imagem complexa do tempo?

– Sim, podem ser lidos como imagem complexa do tempo- tempos, porque não? – Separando-sublinhando, a divergir-integrar, a tomar para si a própria escrita e aquilo que dela faz parte: o corpo do texto, do poema.
Daquilo que a fala contou, mas que entretanto foi mudado em poesia ou em ficção, entre o idealizado e a escrita. Mas há ainda que ter em conta a forma daquilo que, sendo melodia e Luz, se incorpora-integra na literatura,
Fazendo já parte da arte poética; um imaginário em si mesmo mágico, diria.

– O que me faz voltar às feiticeiras sempre presentes na obra de MTH. As feiticeiras que desde logo tecem as palavras, urdem a intriga do texto. As “Meninas” são quase todas feiticeiras, ainda quando se mascaram de Branca de Neve, de espias ou de Princesas Espanholas, umas mais evidentes, outras silenciosas, outras ainda silenciadas, quando não sacrificadas por nelas se ver a incarnação do mal… E, no entanto, há algo nelas que está acima do bem e do mal. Parecem sobretudo interessadas na lucidez da verdade. Em geral poderíamos dizer sobre elas aquela frase de Stendhal: “Todo o bom raciocínio ofende”… Estamos ainda no problema que atravessa “As Luzes de Leonor”, não?

– Não sei se as minhas meninas “são quase todas feiticeiras”… ou se são anjos de asas translúcidas a aflorarem-lhes a pele muito pálida das omoplatas frágeis… Rilke afirmou num poema: “Todo o anjo é terrível” … E na verdade, muita da minha obra poética e ficcional é sobrevoada por anjos! Mas também por meninas desamadas, meninas abandonadas, deixadas à deriva em oceanos de ondas alterosas e desafectos, dentro de uma cesta mítica como se incorporassem Moisés, embora pelo seu avesso de sombras e assombrações.

– Para quem estudou a segunda metade do século XVIII, a obra de MTH é cientificamente fascinante. E eu não me refiro somente a “Luzes de Leonor” (2011) ou a “Poemas para Leonor” (2012). Reencontramos na obra de MTH lições que, do ponto de vista literário, lemos na literatura setecentista e só muito mais tarde tiveram evidente continuidade: uma atenção à retórica do corpo, uma observação precisa dos elementos conscientes e inconscientes, uma demonstração do “sentimento da razão” ou da “razão do sentimento”. Em que medida os autores do século XVIII, falo de Leonor de Almeida como de Diderot, de Bocage como de Sterne, foram importantes? Foram-no?

Foram todos eles importantes, sim, mesmo muito importantes. E embora a obra de Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, jamais tenha passado pela atenção à retórica do corpo, foi toda ela, sim, tanto uma “demonstração do sentimento da razão” como a “razão do sentimento”. Uma das coisas que mais me convoca nela é precisamente esta dualidade, ambiguidade, este eterno debate dentro de si mesma, entre a razão e o coração, que a acompanharia a vida inteira.

– Seria interessante estudar “Meninas” como uma reinvenção da autobiografia: é uma biografia mítica. Uma espécie de Bíblia escrita pelo Deus que habita em nós. Exige uma leitura eufórica, como se fosse necessário ao leitor sair do que ele é, como leitor. E também exigindo que o leitor deixe de imaginar o que é a MTH, escritora nascida a 20 de Maio de 1937. Semelhante a “Meninas”, com aquela lucidez, só li “O Primeiro Homem”, de Albert Camus. Autor que de resto a MTH conheceu…

– Confesso, que considero aliciante a sua proposta de se estudar “Meninas” “como uma reinvenção da autobiografia”. E sinto como desafiadora, em relação a mim mesma enquanto autora, a sua afirmação acerca deste meu livro: “é biografia mítica. Aliás eu tenho vindo a assumir frontalmente que a primeira parte deste meu livro de contos é autobiográfica. Tal como alguns dos contos da segunda parte do volume, e também algumas das suas personagens, ou somente partes delas.
Quanto a Albert Camus… Conheci-o, sim, em Paris, era muito nova e fiquei maravilhada. Pareceu-me um ser muito frágil, com uma nuvem de tristeza no olhar. Inteligente, mesmo brilhante, por vezes o seu rosto ganhava uma expressão
de pressa errante.

– O que gostaria MTH que dissessem da sua obra? Ou se for mais fácil: qual a observação crítica que lhe deu até hoje mais prazer ouvir ou ler?

– Na verdade, não foi nenhuma crítica, artigo ou estudo, o que até hoje me deu maior prazer ouvir sobre a minha obra, a propósito dos livros que escrevi. Foram, sim, histórias de vida a misturarem-se com a literatura…
Passo a contar uma delas: na altura da publicação de “As Luzes de Leonor”, uma médica minha conhecida, tendo passado por uma gravíssima operação, à qual se seguiram tratamentos difíceis, trancou-se em casa, fechou as janelas, deixou de falar com os amigos, de ler, de ir ao cinema e de ver televisão…
Cerca de meio ano mais tarde é publicado o meu romance “As Luzes de Leonor”, e ela, vendo-o na montra da livraria que ficava no trajecto entre a sua casa e o hospital, acabou por entrar e comprá-lo, por uma questão de amizade. Mesmo assim abriu-o e leu a primeira página, nunca mais parando, e à medida que o lia, a sua atitude perante a vida e a sua doença foi imperceptivelmente mudando… No início sem dar por isso, mas quando começou a subir as persianas e a deixar entrar de novo a luz na sua casa, compreendeu que, segundo palavras suas, “o teu livro me enchera de claridade, de força”, de esperança e telefonou-me para me agradecer.
Feliz é o escritor que escuta uma coisa destas.

Como eu repito tantas vezes: a literatura salva!

Obra literária

Poesia: Espelho Inicial (1960), Tatuagem (1961), Cidadelas Submersas (1961), Verão Coincidente (1962), Amor Habitado (1963), Candelabro (1964), Jardim de Inverno (1966), Cronista Não é Recado (1967), Minha Senhora de Mim (1967), Educação Sentimental (1975), As Mulheres de Abril (1976), Poesia Completa I e II (1960-1982) (1982), Os Anjos (1983), Minha Mãe, Meu Amor (1984), Rosa Sangrenta (1987), Antologia Poética (1994), Destino (1998), Só de Amor (1999), Antologia Pessoal – 100 Poemas (2003), Inquietude (2006), Les Sorcières – Feiticeiras (2006), Cem Poemas + 21 inéditos (2007), Palavras Secretas (Antologia) (2007), Poemas do Brasil (2009), Poesia Reunida (1960-2006) (2009), As Palavras do Corpo (Antologia de poesia erótica) (2012), Poemas para Leonor (2012), A Dama e o Unicórnio (2013).

Ficção: Ambas as Mãos sobre o Corpo (1970), Novas Cartas Portuguesas (1971), Ana (1974), O Transfer (1984), Ema (1984), A Paixão Segundo Constança H. (1994), A Mãe na Literatura Portuguesa (1999), As Luzes de Leonor (2011), Meninas (2014).