AA.VV., L’exil et le royaume: d’Albert Camus à Vergílio Ferreira, collection “Exotopies”, Paris, Éditions Le Manuscrit, 2014.
[Pode o leitor encontrar neste livro um mundo de interpretação não monolítica da escrita literária e filosófica de ambos, antes plural de orientações e sugestões, uma proposta de viagens, visitações e revisitações da obra camusiana e vergiliana, um convívio intelectual que, indo da análise literária à filosófica, procura desvincular-se de lugares-comuns e traçar um perfil seguro dos dois autores.]
Entre os dias 15 e 23 de maio de 2013, decorreu, no Porto e em Lisboa, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e no Institut Français de Portugal, um colóquio internacional – possível pelo trabalho articulado do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, a Associação Portuguesa de Estudos Franceses (APEF), da Universidade de Coimbra, e o Institut Français de Portugal – que se propôs comemorar o centenário de nascimento de Albert Camus (1913-1960), no contexto, aliás, das iniciativas camusianas em Portugal, mas abrindo-o com originalidade ao convívio com a obra literária e ensaística de Vergílio Ferreira (1916-1996), leitor de Camus, cujo romance Manhã submersa (1954) completava, naquele ano, cinquenta e nove anos de publicação, tendo decorridas três décadas sobre o surgimento da escrita de Para sempre e do terceiro volume de Conta-corrente, ambos de 1983. Mas foi sobretudo Manhã submersa que atraiu a atenção dos organizadores, que previram no encontro a exibição de dois documentários do cineasta Lauro António sobre o escritor português e a participação que este teve no filme Manhã submersa, de 1980, ao encarnar o papel de reitor do seminário.
A memória em livro desse encontro científico conserva-se no título L’exil et le royaume: d’Albert Camus à Vergílio Ferreira, editado um ano depois do colóquio pelas Éditions Le Manuscrit, incluído na coleção “Exotopies”, que está entregue à direção da APEF nas pessoas de Ana Clara Santos, presidente daquela associação, e Maria de Jesus Cabral, vice-presidente da mesma associação, que integram o grupo de organizadores da edição, a par de Maria Celeste Natário, Maria Luísa Malato e Renato Epifânio, todos surgindo ainda na obra na condição de ensaístas. Na apresentação da coleção, desta se diz que privilegia a aproximação comparatista valorizando o diálogo entre línguas e culturas no espaço europeu (p. 7). Tratando-se de uma edição franco-portuguesa, com textos escritos em francês e em português, a obra, objeto da presente recensão, pode dizer-se que não trai as finalidades daquela aproximação comparatista, que a coleção toma por ónus, já que demanda o mundo intertextual da obra de dois significativos vultos de França e Portugal, através deles pondo em diálogo mundividências e línguas, obra e respetivas culturas pátrias.
Esse objetivo é largamente favorecido pela complementaridade interdisciplinar de áreas e perspetivas de análise, interpretação e crítica, oriundas da filosofia (Jean-Baptiste Dussert, Maria Celeste Natário, Renato Epifânio, Luís Manuel A. V. Bernardo, José Antunes de Sousa e Samuel Dimas) e da literatura (Ana Paula Coutinho Mendes, Ana Clara Santos, Maria de Jesus Cabral, Sofia de Melo Araújo, Marcelo Duarte Matias e Maria Luísa Malato), cujos diversos registos, do biográfico, social e político à metafísica, convergem para a elucidação par e passo de múltiplos aspetos da obra e da vida dos dois escritores, o que faz a riqueza deste livro, onde pode o leitor, por isso mesmo, encontrar um mundo de interpretação não monolítica da escrita literária e filosófica de ambos, antes plural de orientações e sugestões, uma proposta de viagens, visitações e revisitações da obra camusiana e vergiliana, um convívio intelectual que, indo da análise literária à filosófica, procura desvincular-se de lugares-comuns e traçar um perfil seguro dos dois autores, de per si considerados ou em relação.
Composta por doze ensaios, precedidos de uma introdução assinada pelos organizadores, a obra, que se estende por duzentas e trinta e quatro páginas, apresenta, apesar da diversidade dos ensaístas e suas origens científicas, uma unidade que é possível destacar pela persistência de certas preocupações e temas que transitam pelos ensaios e a que cada ensaio dá vida ou, a seu modo, resposta, seja de forma resolutiva, seja de forma aporética. Elencando-os, são preocupações e temas principais, com problemática que convém e envolve Albert Camus e Vergílio Ferreira, as relações entre filosofia e literatura, o sentido do enigma e do mistério das coisas, a demanda existencial do sentido, o absurdo e a luta, sempre sisifiana, pela instauração de sentido na vida humana, o problema de Deus e da sua ausência do Mundo e da História, a morte e a imortalidade.
O título do livro, mais do que ser simples glosa, memora a obra de Albert Camus, L’exil et le royaume, um conjunto de novelas formado por “La femme adultère”, “Le renégat ou un esprit confus”, “Les muets”, “L’hôte”, “Jonas ou l’artiste au travail” e “La pierre qui pousse”, de cuja importância estão cientes os ensaístas (cf. Ana Paula Coutinho Mendes, pp. 73-89, e Maria Luísa Malato, p. 229). Em cada uma destas histórias os personagens, que se movem em tempos e espaços diferentes, da Argélia a França e ao Brasil, incarnam a insatisfação permanente, a busca perene de sentido, a demanda de algo que os liberte da asfixia existencial no absurdo de ser e de viver, ao mesmo tempo que vivem o próprio fracasso em encontrar “o Reino”, isto é, um sentido para a existência e o encontro com a felicidade.
Quais os motivos por que os organizadores preferiram a apropriação do título de Camus para o seu livro de ensaios? Apesar de ser a obra menos estudada e a mais desconhecida de Camus, ela não é menos importante no panorama da sua produção literária. Os próprios organizadores, ao elegerem o título de Camus, por certo concordam em que há que distingui-lo como significativo do estilo literário e da mundividência do autor, já que na sua escrita estão aspetos substantes da autobiografia intelectual de Camus, os que habitualmente retemos do problema do sentido e do absurdo, mas com a originalidade de introduzir na concetologia filosófica e literária existencial os conceitos de “exílio” e de “reino”.
São tais conceitos os que mais convocam, no ponto de vista do conteúdo, o que há de metafisicamente permanente no desejo insaciado de arrimo da consciência humana no sentido, que em Camus e igualmente em Vergílio Ferreira é desejo impossível de satisfazer-se por os dois terem despedido o princípio fontal da transcendência (anulação do reino) e instaurado no seu lugar ontológico o absurdo (donde o mundo como exílio).
A visão do mundo e das coisas, consagrada pela imanência, habita a horizontalidade das relações com o próprio mundo e as coisas, também com os outros, nulamente superando o vazio das coisas que nenhuma transcendência imanente verdadeiramente preenche, por encontrar-se a verdadeira transcendência na relação de verticalidade, e não de horizontalidade, com as coisas.
Essa é, aliás, na conspícua forma de pensar da fenomenologia, no trânsito de Husserl aos existencialistas, como Sartre, e a Heidegger, o estreitamento do sentido na evidência do que aparece, bem patente na fórmula husserliana da transcendência imanente de um outro que se desvela pela intencionalidade de um ego cogito que o apreende. Ainda quando Heidegger propõe a interrogação ontológica pelo que vale a pena pensar (o ser), a gestação da pergunta pelo sentido vem de uma zona marcada pela imanência e de um impulso intencional do próprio Heidegger para a destruição da transcendência, pelo que, no contexto, dificilmente se poderá manter o tema da transcendência na relação com o ser, impossibilitada que logo fica a adunação ontológica da transcendência do próprio ser com o excesso, que é o que faz com que o ser não se acrisole ou prenda nas fórmulas da cognição e supere infinitamente qualquer ideia que dele façamos ou conceito que a ele apliquemos.
A rota do sentido em Albert Camus e Vergílio Ferreira faz-se no interior de uma visão de imanência, mas para viver dilematicamente no pantragismo de um conceito de transcendência que é eficazmente nulo. Da contrapolaridade entre a imanência e a transcendência do sentido nasce cognitivamente o absurdo, por ter sido introduzido no segundo termo o vazio do significado pela ascensão poderosa e anuladora do primeiro.
De um modo geral, os autores de L’exil et le royaume: d’Albert Camus à Vergílio Ferreira reconhecem a dificuldade camusiana e vergiliana, tão cognitiva como ontológica, do poder da consciência em encontrar-se com o sentido do mundo e das coisas, sendo para a ascensão dramática do esforço, do desejo, da vontade e da ação humanas que ambos transferem o sentido, que opera então única e exclusivamente a partir do cogito ou sujeito que interroga o mundo e se interroga. Aqui, a consciência habita intensamente o dramatismo da sua própria causa, contra o suicídio e contra a morte, no protesto da consciência pela vida ou na assunção da revolta, que em Camus tem um perfil cósmico, pois que essa revolta atinge a situação humana do homem no cosmos, visto como exílio.
A aproximação dos escritores francês e português a partir da antinomia do “exílio” e do “reino” é assaz significativa para a conjugação do diálogo que a hermenêutica queira operar entre ambos, pois permite ver na filosofia e na literatura deles uma filosofia e uma literatura do exílio cósmico do homem, ao mesmo tempo que ambos, na forma diferenciada com que desenvolveram e viveram o tópico do absurdo, vivem o sentido enquanto ele é o reino para sempre eternamente perdido.
O absurdo tem a sua lógica cognitiva e esta só permite que o sentido aflore nos interstícios do não sentido; mas o absurdo é um oceano voraz aniquilando, até pela insurgência da morte, as pequenas vitórias que a consciência toma de assalto e ganha fugaz ou temporariamente ao absurdo. É uma batalha sem quartel como fazem sentir Camus e Vergílio. A única saída para a batalha onde constantemente soçobra a consciência como o guerreiro que no fragor do combate soubesse que nunca a batalha terá fim e que continuará sempre o sacrifício de gladiar interminamente até que seja rendido pela morte; a única saída está ainda em fazer do exílio passagem para o reino.