Embora nem todos tenham dado por isso, comemoraram-se no ano passado oito séculos de língua portuguesa, contados a partir do testamento de D. Afonso II. A efeméride é evidentemente importante (há línguas bem mais antigas, mas poucas delas têm a expansão do português) e faz sentido sublinhar os aspetos positivos com ela relacionados: o número dos seus falantes (há quem refira 300 milhões, ainda que o número pareça pouco rigoroso), o seu valor económico e o seu peso no PIB nacional, a par de outros elementos igualmente subjetivos, como o seu caráter alegadamente único e a sua dimensão congregadora de povos e de culturas. Na impossibilidade de discutir com rigor essas alegações, farei algumas observações de sentido menos eufórico que momentos como este também justificam.
A primeira tem a ver com a feliz possibilidade, de que raras vezes nos damos conta, de continuar a ler hoje, sem grande dificuldade, os textos escritos há oito séculos ou um pouco menos. Apesar do que os historiadores da língua nos dizem sobre as fases do português, a verdade é que um cidadão nacional apenas razoavelmente escolarizado consegue ler ou escutar hoje uma cantiga trovadoresca, percebendo-a e sentindo-a como sua, numa confirmação empírica de uma identidade linguística que está consolidada há muitos séculos. Continuar a ler um poema de D. Dinis (Proençais soen mui bem trobar) ou de Meendinho (Sedia-m’eu na ermida de Sam Simion) e perceber que há neles tudo o que de essencial continuamos a buscar na poesia deve ser valorizado como um privilégio inestimável. Acontece porém que este privilégio é exclusivo do nosso país, não sendo portanto comum ao universo de falantes do português; além disso, mesmo em Portugal, parece estar em retrocesso. Ambos os pontos deveriam ser objeto de preocupação e de reflexão. Se a lírica trovadoresca é apenas património de Portugal e da Galiza, não podemos dizer que a comunidade de língua portuguesa esteja consolidada; se Machado de Assis ou Guimarães Rosa, Luandino Vieira ou Mia Couto, João Vário ou Alda do Espírito Santo pertencem apenas aos seus países, a língua portuguesa como comunidade está ainda muito longe de deixar de ser um projeto de boas intenções. Quanto ao segundo ponto, a questão é do domínio sociocultural, mas também educativo: reduzida à sua vertente funcional, a língua – e os seus falantes – fica inequivocamente mais pobre.
A segunda observação diz respeito à falácia do número de falantes do português. Quase sempre nos esquecemos de que o caráter impressionante do número se deve ao Brasil e aos seus 200 milhões de habitantes e de que a intercompreensão com essa comunidade está longe de estar garantida. Não são apenas os filmes portugueses que têm de passar legendados no Brasil; no recente campeonato do mundo de futebol, as declarações da equipa portuguesa eram emitidas pelas televisões brasileiras acompanhadas de legendas. Quem quer que tenha ido ao Brasil terá verificado que, fora de certos meios, não é fácil a compreensão entre falantes de português brasileiro e de português europeu. Olhando para o outro lado e atentando no caso do catalão e do valenciano, faz portanto sentido que encaremos a questão a sério antes que a política se sobreponha à linguística e venhamos a ter de aceitar a existência de (pelo menos) duas línguas, o português e o brasileiro. Em vez de hostilizar – sem razão ou com ela – o Brasil e os brasileiros, seria mais prudente e mais eficiente que trabalhássemos em conjunto em favor da aproximação entre as variantes e da afirmação internacional da língua comum, com medidas concretas no domínio da educação, da cultura e da investigação, deixando que o Brasil lidere o processo, até para evitar os condicionalismos do nosso passado colonizador.
A terceira questão, associada à anterior, está relacionada com a falta de cooperação a nível linguístico entre Portugal, os PALOP e outros países ou regiões em que o português ainda é falado. Em lugar de uma política coerente e constante, assistimos a um conjunto de ações erráticas e descontínuas, que prolongam da pior maneira a falta de trabalho nesta matéria que caracterizou o período colonial. A insuficiência dos meios financeiros não justifica tudo, tanto mais que parte da tarefa de consolidação do português poderia ser feita – em articulação com os governos e autoridades locais – através dos meios de comunicação tradicionais, como a televisão e a rádio. Um tal esforço deveria ser acompanhado do apoio ao estudo – e à difusão – de outras línguas nacionais ou locais faladas nesses países e regiões: num país com a nossa tradição, é um erro colossal persistir no desinteresse e no abandono dos estudos linguísticos africanos e asiáticos que incidiam sobre os espaços do nosso passado colonial.
Uma quarta observação tem que ver com a falta de uma entidade com autoridade linguística e com a ausência de instrumentos básicos para o conhecimento e o uso da língua, como dicionários, vocabulários ortográficos e gramáticas. Não se trata, obviamente, da criação de uma polícia da língua, mas da atribuição de funções consultivas a uma entidade credível que possa ajudar a pôr em prática uma política da língua e que não esteja refém de interesses pessoais nem padeça dos defeitos daquilo a que poderíamos chamar o linguistiquês. Custa a crer que até hoje a nossa Academia das Ciências não tenha sido capaz de produzir um dicionário digno desse nome e que os três melhores exemplares não contem nenhum português como autor: refiro-me ao Vocabulário de Bluteau (século XVIII) e aos dicionários dos brasileiros António de Morais Silva (século XIX) e Antônio Houaiss (século XX). Custa a crer que, trinta anos depois da Nova Gramática do Português Contemporâneo, uma realização luso-brasileira de Celso Cunha e Lindley Cintra, não tenha sido possível à nossa comunidade de linguistas a elaboração de uma outra gramática, eventualmente mais atualizada, com o mesmo grau de rigor e de capacidade de comunicação. Custa ainda a crer que, num país com tantas universidades, estas se mantenham tão alheadas das questões da língua, entretidas que andam numa ilusória internacionalização, geralmente em mau inglês.
Uma última observação diz respeito à forma de dar sentido a esta data: mais importante do que olhar para os 800 anos que passaram será olhar para os próximos 800. Se o fizermos, teremos de admitir como provável que chegará o dia em que estaremos a falar, não de uma, mas de várias línguas: o português, o brasileiro e, provavelmente, o angolano. No caso de Portugal, as perdas serão com toda a certeza maiores que os ganhos, o que sublinha a necessidade de encararmos o problema de forma sistemática e consequente.