Leonardo Coimbra, Obras completas, volume VIII,
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2014.
[Este volume tem um outro particular interesse: além de nos dar o drama teorizado, dá-nos também o drama pessoalizado, através das cartas pessoais, que são um contributo para traçar o perfil de Leonardo Coimbra.]
Há um busto, em frente ao liceu D. Manuel, no Porto, de Leonardo Coimbra (deu lá aulas Leonardo). Está lá o busto mas a pedra que o sustenta e que tinha escrito o seu nome perdeu já algumas letras – agora é uma homenagem ao “LEON DO COIMBRA”. É possível que caiam as restantes letras, e é possível que caia o busto. As homenagens, por vezes, são tremendas desconsiderações. A verdade é que, nem um século depois da sua morte, Leonardo Coimbra começa já a ser esquecido – de resto, a época é propícia: só sobrevive o instante. Uma das grandes figuras da República, uma das figuras superiores da cultura nacional…
Contra isto (directamente ou não), dez anos após a publicação do vol. I, a Imprensa Nacional – Casa da Moeda publicou o último volume, o oitavo, da colecção das obras completas de Leonardo Coimbra. A organização da edição esteve a cargo de Afonso Rocha, de quem é também o envolvente prefácio, e a coordenação científica a cargo de Ângelo Alves. O volume inclui as intervenções parlamentares do ministro da Instrução Pública, os escritos publicados postumamente e alguns inéditos (onde se incluem as cartas pessoais). São escritos de natureza e tópicos heterogéneos, maioritariamente desconhecidos, mas que nem por isso criam dissonância face àqueles já conhecidos e incluídos nos volumes anteriores. É este, aliás, um dos interesses do volume — vir confirmar e reiterar certas tendências já conhecidas, deduzidas ou extrapoladas a partir dos escritos anteriormente publicados de Leonardo Coimbra.
A este respeito, é, desde logo, muito pertinente a secção que abre o volume, relativa às intervenções parlamentares. A questão mais polémica dos dois mandatos do ministro da Instrução Pública terá sido, muito possivelmente, a questão da transferência da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra para a Faculdade de Letras do Porto ou, melhor dito, da extinção da primeira e da criação da segunda. Esta deliberação de Leonardo Coimbra, cujos motivos encontramos mais claramente neste volume, tinha por base a defesa da liberdade do ensino, deliberação, aliás, de tendências claramente republicanas, e portanto de manifesta oportunidade. Aquilo por que o ministro lutava foi, afinal, aquilo de que foi acusado de estar em falta – liberdade de ensino e espírito democrático. O que levou Leonardo a esta deliberação foi o meio histórico e a influência de uma monarquia-clerical centrada em Coimbra, que impudentemente agredia os princípios republicanos. Para quem conheça a história de Leonardo Coimbra, verá que a questão já se punha, logo em 1911, em termos semelhantes quando Leonardo esteve no Colégios dos Órfãos, em Braga, e aí atacou o tradicionalismo jesuíta em prol de um ensino mais compassivo e justo, sem intimidações de cariz religioso – o problema não era a associação da religião e do ensino, como não era uma luta cega pelo laicismo do ensino, mas sim um combate à malícia e à intemperança conservadas por certas facções religiosas. A deliberação sobre a Faculdade de Letras talvez tenha sido a mais polémica e memorável, mas parece claro que, no essencial, as motivações políticas do ministro em nada se dissociavam das preocupações do pensador, fossem elas filosóficas, de ordem social ou, de resto, espirituais – lembremos que a educação tinha de ser humana, mas (ou por isso mesmo) com o fim último de ensinar cada um a poder sozinho regressar a Cristo. Uma pequena nota a este respeito: não há qualquer imposição do cristianismo nas decisões políticas e nas considerações pedagógicas ou de outro tipo de Leonardo Coimbra. A sua conversão ao catolicismo consumará o Cristo sagrado como revelação do mistério, mas Cristo foi sempre, inegavelmente, desde o início, um ideal ético, e por isso permanece, no fim como no início, o sumo das suas reflexões.
A sua exposição sobre a liberdade na democracia, no texto incompleto “Dois humanismos – Duas liberdades”, é sintomática da centralidade de Cristo no seu pensamento. Leonardo considera, neste texto, que a liberdade que a Democracia procura não é a liberdade ontológica – para Leonardo Coimbra, a liberdade cristã – mas a liberdade democrática. Qual a liberdade democrática? A liberdade económica. O desejo da liberdade, no seio democrático, advém da contrariedade, da tentativa de correcção, de opressões económicas. A Democracia é essencialmente, para Leonardo Coimbra, uma ideologia política de ordem económica – por isso, a liberdade por ela visada tem como base a ordem económica. O problema, para o autor, põe-se do seguinte modo: a liberdade cristã pressupõe uma procura essencial da justiça, com a qual advirá o acessório; pelo contrário, a liberdade democrática pressupõe que a solução do problema acessório levará ao encontro da justiça. Na liberdade cristã, o primeiro trará o segundo; na liberdade democrática, como pode o pão trazer a justiça? Esta questão colocada pelo pensador pressupõe, naturalmente, que a justiça é algo maior do que o acesso ao pão, ao material (e, de resto, ao “acessório”, num certo sentido propositadamente radical de Leonardo). A democracia coloca a questão da liberdade como se tentasse preencher o Rossio só com a Betesga – ora, o Rossio é grande, a Betesga é pequenina: a Betesga cabe no Rossio, mas não preenche o Rossio.