A voz do mar ou Da necessidade de “errar a língua ao dente”

Isabel Cristina Mateus

[Com oitocentos e um anos de existência e contando com mais de duzentos milhões de falantes em todo o mundo, espalhados por quatro continentes, a Língua Portuguesa é um capital simbólico e económico, um património cultural e memória identitária de valor inestimável que é fundamental conhecer, preservar e enriquecer. Adquire por isso uma importância especial a edição dos autores “clássicos” da língua portuguesa, numa edição cuidada e filologicamente rigorosa, acessível ao grande público, tarefa ainda por fazer entre nós. Uma edição naturalmente alargada aos autores dos países de língua portuguesa, dando conta da polifonia de vozes e de registos que constituem aquela que Vergílio Ferreira definiu um dia como “a voz do mar”.]

Em 1991, ao receber o Prémio Europália, em Bruxelas, Vergílio Ferreira prestou e inscreveu na nossa memória colectiva uma das mais expressivas homenagens à língua portuguesa enquanto capital simbólico e cultural de um povo cuja identidade é indissociável do mar:

“Uma língua é o lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade. Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor como na de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação.”[1]

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Ângela Berlinde, da série “As Primeiras Coisas”, 2006

Em palavras lapidares e rigorosas, Vergílio Ferreira define a língua (qualquer língua) como o lugar matricial a partir do qual se vê o mundo, a paisagem do mundo, mas também o lugar onde se está, se pensa e se diz essa paisagem (validando poeticamente o relativismo linguístico-antropológico da famosa hipótese de Sapir-Whorf). Em particular, a língua portuguesa é para ele a voz do mar que constitui a nossa paisagem exterior e interior, mar que sempre foi para nós inquietação, desconhecido e ao mesmo tempo comunicação, ponte de ligação, abraço líquido e azul entre povos, nações e continentes. Não me recordo de metáfora identitária mais ressonante, de imagem que melhor nos espelhe e nos diga do que esta voz do mar levada por Vergílio Ferreira ao coração de uma Europa em festa pela aventura marítima dos portugueses.

No momento em que chega ao público uma nova revista que a si mesma se concebe como ponte entre saberes, olhares e vozes distintas, ganha especial relevância esta voz do mar como ponte linguística comum. Com efeito, de acordo com os dados do Observatório da Língua Portuguesa, esta conta hoje com mais de duzentos milhões de falantes, é a primeira língua mais falada no hemisfério sul, a terceira língua europeia mais falada no mundo e a quinta língua mais falada a nível mundial, sendo língua oficial em oito países. O que demonstra bem a importância desta voz que transcendeu a exiguidade das condições geográficas do país em que nasceu e se afirmou no mundo pela sua vocação transnacional e transcontinental, ou, para utilizar um termo em voga, global. Esta foi, de resto, a representação construída nos tempos do império, veiculada e repetida com insistência pelo sistema de ensino do Estado Novo segundo o qual Portugal não seria um país pequeno, antes se alargaria, na sua extensão “ultramarina”, aos quatro cantos do mundo.

É verdade que a irradiação da língua portuguesa não pode ser dissociada dos descobrimentos portugueses e do Império, o mesmo é dizer, do prestígio político-económico alcançado por Portugal, como reconhece Duarte Nunes de Leão nas obras Ortografia da Língua Portuguesa (1576) e Origem da Língua Portuguesa (1606). Mas não é menos verdade que hoje, decorrida já mais de uma década do século XXI, essa difusão tem de ser encarada sem nostalgia, sem ressentimento, sem complexos ou fantasmas hegemónicos, numa perspectiva transnacional que não se confunde com aquilo que discutivelmente se tem chamado de “lusofonia”. Nas palavras de Vítor Aguiar e Silva, cujo contributo para a definição de uma política da língua portuguesa é amplamente reconhecido, “a língua portuguesa pertence de igual modo a todos os povos, a todos os países e a todos os Estados que a têm como língua nacional ou como língua oficial, que a falam e a escrevem, que nela se exprimem e comunicam”.[2]

Não há dúvida de que a língua portuguesa foi “a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal”[3] e é hoje também uma das nossas mais preciosas, ainda que nem sempre reconhecidas, mais-valias. Refiro-me ao valor da língua portuguesa enquanto memória comum, património simbólico-cultural, veículo de comunicação e de criação, instrumento de cidadania e valor económico[4]; valor potenciado pelo lugar estratégico que Portugal ocupa na geolinguística e na geopolítico-economia globais enquanto porta aberta sobre o Atlântico, enquanto interface intercontinental que claramente transcende o estatuto periférico a que o tem confinado o espaço europeu. Bastará a esse respeito ter em conta os dados disponíveis relativos a empresas como a Galp[5] que mostram como a aposta em futuros investimentos ou aumento de explorações em reservas petrolíferas ou de gás natural fala português e passa por países como o Brasil ou Moçambique, ou ainda o facto de uma potência económica emergente como a China investir cada vez mais em Portugal como ponte de ligação a África, bem como a crescente procura que actualmente se verifica no ensino superior por parte de estudantes asiáticos. Sinais que não nos devem fazer esquecer, todavia, a elevada taxa de emigração dos portugueses nestes últimos anos de crise económica, em particular das gerações mais novas, e a diáspora a que vamos assistindo cujas consequências podem ser preocupantes, ao nível da língua, num futuro próximo.

Todos estes aspectos que brevemente apontei implicam a definição, desde logo por parte do governo português, de uma política nacional e internacional da língua portuguesa que necessita de olhar mais longe, muito para além do limitado horizonte dos interesses (ou constrições) de agenda política ou financeira[6]. Prosseguindo o esforço e o caminho positivo que, apesar dos percalços, tem sido dado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e pelo Instituto Camões, bem como pela rede de leitura pública e das bibliotecas escolares, nomeadamente com a criação de um plano nacional de leitura. Sem deixar de fazer uma avaliação crítica das sucessivas reformas do sistema de ensino, nomeadamente no que diz respeito aos programas de língua portuguesa onde o texto utilitário tem desalojado os textos literários, a weltliteratur os autores de língua portuguesa e o experimentalismo linguístico convertido a aprendizagem da gramática num hermético labirinto terminológico, para não mencionar sequer a miragem do Acordo Ortográfico de 1990 que está muito longe de ser isento de contestação ou de ganhar consenso entre a comunidade de países de língua portuguesa.

Ângela Berlinde, da série “As Primeiras Coisas”, 2006

Entre as várias propostas apresentadas por Vítor Aguiar e Silva no tocante à definição de uma política da língua, quer ao nível do ensino, quer da difusão, colho a urgência de levar a cabo uma edição de elevada qualidade filológica, hermenêutica e crítica, a preços acessíveis, das Obras Clássicas da Literatura Portuguesa[7], à semelhança do que acontece noutros países (Espanha ou França, por exemplo), de forma a tornar acessível ao grande público o repositório de autores canónicos da língua portuguesa, alargado, naturalmente, aos autores dos países de língua oficial portuguesa. Porque o conhecimento da língua portuguesa, exercitado no convívio, na leitura e interpretação dos seus textos literários de épocas, géneros, vozes e contextos nacionais diferentes, o desenvolvimento da competência oral e escrita, do raciocínio crítico e capacidade argumentativa, revelam-se hoje, no mundo global e da informação em que vivemos, mais do que nunca vitais para a afirmação da língua portuguesa quer como língua de comunicação, quer como língua de ciência ou de criação, quer como língua de negócios ou jurídica, quer como memória simbólica a cada momento revisitada e recriada.

Voz antiga, com oitocentos e um anos de existência (pelo menos desde que o Testamento de D. Afonso II, em 1214, a consagrou como tal), a língua portuguesa viajou pelo mundo, foi-se enriquecendo nessa viagem, no diálogo que soube estabelecer com os outros povos, constituindo hoje o nosso ADN genético-cultural, um património identitário comum, simultaneamente material e imaterial, memória e criação, que temos o dever de conhecer, estudar, preservar, renovar e transformar. Sem deixar de, naturalmente, ter em conta que o espaço da língua portuguesa é hoje um espaço plural, fruto das transformações históricas e políticas ocorridas há pouco mais de quarenta anos, que só fará sentido, como sublinha Carlos Reis, “se for entendido como um lugar de con-vivência; um idioma comum – e comum sabendo incluir as vozes de outras gentes e de outras terras, que não a minha- deve continuar a ser factor de comunicação que me aproxime dessas gentes e dessas terras”[8]. Um idioma comum que funcione como um factor de coesão para lá das tensões, da diferenciação e da pluralidade que caracterizam a dinâmica da língua portuguesa hoje, evitando aquilo a que, de forma arguta, Carlos Reis chama “os perigos da imagináutica”.

Neste sentido, torna-se particularmente significativo o tributo de um poeta do outro lado do Atlântico, Manoel de Barros, desaparecido em Novembro de 2014. Poeta que como ninguém quis dizer a beleza simples do Pantanal, anterior a qualquer ordem gramatical, que como ninguém procurou uma língua rente ao respirar da terra, instintiva, táctil, idioma de árvore ou de pássaro, roçar de lesma sobre a pedra ou deslizar de rã sobre uma folha descendo o rio, Manoel de Barros celebra desta forma original a gramática portuguesa enquanto raiz, matriz de que se alimenta a sua agramática poética:

“A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente”[9]

Manoel de Barros sabia que só estudando-a por dentro, se pode errar a língua ao dente, alcançar a despalavra que, como as minhocas, areja o húmus da linguagem e “apalpa as intimidades do mundo”.[10]

Num registo diferente, porventura não menos táctil ou íntimo, um outro poeta de olhar atento sobre as coisas ínfimas ou invisíveis que são a substância dos dias e dos sonhos, afirmara a “minha pátria é a língua portuguesa”. Bernardo Soares não podia prever que a sua afirmação viria a ser mais citada do que lida por políticos de todas as cores, incluindo aqueles cujas responsabilidades governativas recomendariam uma maior atenção ao contexto em que a afirmação foi produzida. Como estava igualmente longe de adivinhar que Caetano Veloso escutaria esta frase em terras de Vera Cruz e dela haveria de fazer uma poderosa canção e interrogação sobre os poderes da língua[11].

Demarcando-se de uma leitura política, falsamente patriótica, Bernardo Soares acrescenta à frase, para que não haja dúvidas, odiar “com ódio verdadeiro (…) não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem não escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata”.[12] Tal como Manoel de Barros (cujo amigo-quase-árvore tem, curiosamente, o nome do semi-heterónimo pessoano), também Bernardo Soares defende que o conhecimento a fundo da língua, sobretudo da língua escrita e dos seus autores é condição imprescindível para poder “errá-la ao dente” e frui-la com todo o corpo.

A famosa frase do guarda-livros lisboeta que gostava de se perder nas ruas de Lisboa, de ver os barcos sairem do porto rumo ao mar largo da sua interioridade, não pode ser desligada do gosto de dizer ou de “palavrar”, do prazer físico (e mental) que a palavra provoca, desde logo do estremecimento de sentidos e de descoberta que nele provoca a escrita de autores como o Pe. António Vieira que, apesar da “fria perfeição da engenharia sintáctica, [o] faz tremer como um ramo ao vento” ou Fialho de Almeida que, em certas páginas, lhe faz “formigar toda a minha vida em todas as minhas veias, (…) raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível”.[13] Curiosamente, entre muitos outros que poderiam aqui ser evocados, dois autores cuja obra tem sido afastada do grande público por falta de uma (re)edição que, felizmente, no caso do Pe. António Vieira acaba de ser ultrapassada com a primeira edição completa da sua obra, mais de quatrocentos anos decorridos sobre o seu nascimento. O mesmo não se pode dizer de Fialho de Almeida cuja obra de há muito se encontra indisponível no mercado e bem mereceria, como se infere da leitura pessoana, uma outra atenção e divulgação.

Com efeito, Fialho foi, mais do que um renovador, um dos criadores ou “obreiros da língua” moderna, também ele empenhado em errar a língua ao dente ou, como ele prefere dizer orgulhosamente, em ser um “trabalhador reputado de não querer escrever português correctamente”.[14] Feroz iconoclasta dos “escritores bichosos” que se entretêm a “rilhar a palhada clássica”,[15] Fialho mete mãos à tarefa de plasticização da língua portuguesa, de forma a torná-la dúctil e flexível às complexas necessidades de expressão da vida moderna, uma tarefa que concebe em analogia com as artes plásticas (ele que foi, entre nós, pioneiro na “crítica de arte”), misturando registos que vão do erudito ao plebeísmo e ao calão, ou dando asas à criação vocabular[16]. Para ele, despentear ou desarticular a língua portuguesa significa dotá-la de maleabilidade, de cor e de gradações de tom, sem os quais é impossível obter “efeitos de nuance”, indispensáveis para dizer o pulsar do mundo moderno, traduzir “estados, paisagens e emoções, sem recorrência às línguas paralelas”.[17] Não admira por isso que, de entre os muitos rostos de Fialho, aquele que faz estremecer Bernardo Soares seja o do paisagista cujo olhar descobre na paisagem um modo interior do exterior, um olhar atento ao respirar íntimo das coisas e dos seres. O olhar do paisagista de Manhã no Tejo para quem a paisagem fluvial descoberta ao sol da manhã é afinal uma “alucinação visual de leituras”[18], uma forma de navegar nesse mar intertextual, nocturno e profundo, cujas vagas escutamos n’Os Lusíadas de Camões ou nos relatos de Fernão Mendes Pinto (e, já agora, como música de fundo nos sermões do Pe. António Vieira, cruzando o oceano até ao Brasil ou naufragando no arquipélago dos Açores) ou ainda na poesia de Cesário, de Pessanha, de António Nobre[19], no mar e na voz dos pescadores de Raul Brandão. Mas também do que este mar intertextual anuncia da poesia de Pessoa, Sophia, David Mourão-Ferreira, Manuel Alegre, do rumor e espuma que se pressente na poesia de Ruy Belo e Herberto Helder; do que nas suas ondas ressoa das barcarolas medievais, das naus catrinetas e barcas belas que os grandes paquetes do engenheiro naval Álvaro de Campos haveriam de fazer esquecer para sempre[20].

Ângela Berlinde, da série “As Primeiras Coisas”, 2006

Aquilo que Fialho nos dá a ver, nestes e noutros fundos desgrenhados de paisagem marítima interior[21], é uma vez mais a importância de estudar a língua a fundo para poder dizer inquietações íntimas que são as nossas, dizer (ou cantar) um fado que é nossa memória comum, poder assumir uma voz que é a nossa marca identitária mas também a nossa janela sobre o mundo. “Se a vida do mar tem voz, essa voz me fale a minha língua, que nela reconheça o remember dos ancestrais de quem herdei esta angústia terrível do au-delà!”[22], resumirá Fialho no final desse inesquecível passeio pelo Tejo, sob o olhar cúmplice das Tágides, pretexto para a descoberta da língua e do gosto de “palavrar”. Celebrando já aqui, curiosamente, quase um século antes de Vergílio Ferreira, a voz do mar e nela a voz da memória que é a nossa.

Não posso terminar sem lançar uma ponte linguística com África lembrando aqui uma breve nota de Mia Couto num texto intitulado “Perguntas à Língua Portuguesa”.[23] No autorretrato que aí nos traça como escritor, Mia Couto afirma querer brincar no Português, a língua. Não naquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz, a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique.” Também aqui o escritor pretende, a partir da língua portuguesa, errar a língua ao dente, desafiá-la, despenteá-la em “brincriações” provocadoras, capazes de fazer estremecer, desengravatar ou, como ele diz, “desalisar” o pensamento:

“A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia, o que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a língua, colocando nela as quantas dimensões da vida. E quantas são? Se a vida tem idimensões?”

Para Mia Couto, como para Fialho, importa acrescentar a essa realidade dinâmica, multímoda e polifónica que é a língua portuguesa novos tons, colorações ou mesmo devolver-lhe cores, já que o racionalismo desbota, “trabalha que nem lixívia”. Acrescentar-lhe as muitas idimensões da vida. Para Mia Couto “é urgente adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente”.

Nesta hora ocidental e sombria que atravessamos, esta “brincriação”, este desengravatar da língua tornam-se cada vez mais indispensáveis se queremos dar um rosto humano a um mundo dominado pela assepsia do pensamento e pela indigência das palavras, onde as pessoas se transformam cada vez mais em números, métricas, estatísticas, máquinas, onde tudo o que não serve a cupidez dos mercados é sem utilidade, desperdício, lixo. Reciclar esse lixo, transformá-lo num poderoso inutensílio, reverberante de sentidos, é matéria da poesia enquanto criação mais nobre da língua[24]. Mas é também uma forma de re-pensar a língua não apenas como língua de cultura  mas também uma desafiadora forma de re-pensar a língua como língua de ciência. Só o fulgor da palavra, diz Mia Couto, permite “devolver a estrela ao planeta dormente”.

Creio que um escritor e poeta como Ondjaki estará certamente de acordo com Mia Couto. Há prendisajens com o xão que só a língua torna possíveis. Aprendizagens que nos deixam mais próximos do respirar da terra e dos bichos, mais próximos do sonho e da cintilação dos astros. Porque o chão “despe distâncias/está mais próximo de estrelas”. E pisar um chão de estrelas, como ensina Ondjaki, é simples: basta descalçar os sapatos e usar a alma. Ou escutar o canto de um grilo “ganha[ndo] abraço com estrelas de tanta chãotoria” [25].

Ondjaki aprendeu com Manoel de Barros a estar entre bichos, a falar a linguagem das lesmas, das árvores e das pedras. Talvez por isso tenha feito questão de agradecer a Manoel o ter aprendido com ele a errar a língua ao dente e nessa errância da palavra descoberto, comovido, no poeta do Pantanal “um bicho muito humano mesmo”[26]. Mas esta linguagem do universo (e esta ciência do mundo) só a conhecem e falam aqueles que, como Manoel de Barros, estudaram a língua tão a fundo, dela estiveram tão próximos, que puderam “apalpar-[lhe] as intimidades”.

Bibliografia

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__________________, Os Gatos. Publicação Mensal de Inquérito à Vida Portuguesa, vol. 4, Lisboa, Clássica Editora, 1992b.

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SOARES, Bernardo / Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (org. de Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.

REIS, Carlos, “Espaços da Língua Portuguesa ou os Perigos da Imagináutica”. In:Pelos Mares da Língua Portuguesa (org. de António M. Ferreira e Maria Fernanda Brasete), Universidade de Aveiro, 2015.

[1] Vergílio Ferreira, “A voz do mar” (discurso Prémio Europália). Publicado postumamente em 1998, em Espaço do Invisível V.

[2] Ao mesmo tempo que defende o conceito de “crioulização” da língua, Aguiar e Silva invoca Antonio Houaiss quando afirma não haver “proprietários de uma língua, pois todos os que a falam são co-proprietários, não podendo nenhum invocar privilégios ou superioridades absolutas sobre ela”. In “Contributos para uma política da língua portuguesa”, 2010, p. 299.

[3] “Pequena apologia das Humanidades: contra os cépticos e contra os dogmáticos”, Idem, p. 9.

[4] Sobre o valor económico da língua, Guilherme d’Oliveira Martins chama a atenção para um estudo recente do ISCTE, onde nota que “as indústrias e os serviços em que a língua portuguesa é um elemento chave representam 17% do Produto Interno Bruto (PIB) de Portugal. O estudo sobre ‘O valor económico da língua’, encomendado pelo Instituto Camões a uma equipa de investigadores daquela instituição, revela que esse valor é superior ao que normalmente é referido, por exemplo para a língua castelhana (15%), ‘em resultado da maior terciarização da economia portuguesa em relação à espanhola. De qualquer modo, podemos afirmar, sem grande margem de erro, que há uma equivalência, devendo salientar-se que a língua constitui um elemento de crescente importância quando falamos de criação económica. E isto é tanto mais evidente, quanto é certo que os sectores criativos nas economias modernas têm cada vez mais em consideração a língua e a cultura. (…) Naturalmente, o que acabamos de dizer corresponde a uma crescente responsabilidade para as economias da língua portuguesa, uma vez que se exige uma maior qualidade nas aprendizagens e uma maior valorização da educação e da formação.’” In “Património, Língua e Humanidades”, 2014.

[5] Dados apresentados por J. Sequeira Nunes (Gab. da Presidência da Galp Energia) na Conferência “Perspectivas da Língua Portuguesa”, organizada pela CPLP, que teve lugar no dia 9 de Outubro de 2014, na Universidade do Minho, e disponíveis on-line no site da empresa.

[6] A este respeito, Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente do Centro Nacional de Cultura (e também Presidente do Tribunal de Contas), afirmou no passado dia 26 de Fevereiro, no encerramento do 16º Correntes d’Escrita (Póvoa do Varzim), durante uma intervenção em que fez questão de realçar o valor da língua portuguesa, que é necessário “afectar obrigatoriamente uma parte dos nossos impostos à defesa do património cultural em articulação com a educação, a ciência e a cultura de um modo responsável”, sem deixar de sublinhar que “a pobreza vocabular, a confusão nos argumentos, a desordem na exposição, a indigência nas ideias” estão directamente associadas à desatenção e indiferença que actualmente atingem as humanidades e a literatura.

[7] A editora Relógio d’água tem vindo a fazer nos últimos anos um esforço notável neste sentido com a publicação das Obras Clássicas da Literatura Portuguesa de que saíram já alguns volumes mas que importa incentivar, apoiar e alargar. Refiro também o importante contributo dado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda mas que, para além dos recentes sinais de um certo desinvestimento neste domínio, não tem conseguido corporizar uma edição sistemática, rigorosa e acessível dos autores de língua portuguesa.

[8] Reis (2015: 19).

[9] Note-se que a ênfase posta no estudo da língua portuguesa surge num contexto comparativo com outras línguas importantes para a formação da voz poética de Manoel de Barros, nomeadamente as línguas dos índios Guató, Guarani e Guaná. Significativamente, o poeta afirmará “Conte[r] vocação para não saber línguas cultas// Sou capaz de entender as abelhas do que alemão”. Da mesma forma que nos deixa esta eloquente e emotiva afirmação da língua mãe: “Não sinto o mesmo gosto nas palavras oiseau e pássaro//Embora elas tenham o mesmo sentido. (…) Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux// Só tinha pássaros.//É o que me ocorre sobre língua mãe”. Cf. “Línguas” e “A língua mãe” in Ensaios fotográficos e O fazedor de amanhecer, 2010, pp. 389, 485.

[10] “Uma didática da invenção” in O livro das ignorãças, Idem, p. 307.

[11] Caetano Veloso deixa-nos, no poema “Língua”, esta paródia da frase de Bernardo Soares: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de// Camões. Gosto de ser e de estar// E quero me dedicar a criar confusões de prosódia// E uma profusão de paródias// Que encurtem dores// E furtem cores como camaleões// Gosto do Pessoa na pessoa// Da rosa no Rosa // (…) Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó// O que quer //O que pode esta língua?// A língua é minha pátria// E eu não tenho pátria, tenho mátria// E quero frátria”.

[12] Bernardo Soares, 2007, p. 247.

[13] Idem, p. 246.

[14] Fialho de Almeida, 1992a, p. 195.

[15] Idem, p. 193.

[16] Ao mesmo tempo que analisa as diversas formas da criatividade linguística de Fialho, António Cândido Franco nota que este “revolveu tanto a matéria verbal, remexeu tão fundo nas raízes das palavras, que se tornou o mais importante renovador da língua do seu tempo” (2002, p. 64). Seguindo a lição de Camilo, Fialho foi mais longe na amplitude de registos e na representatividade social do que Eça a quem se deve sobretudo a criação de uma língua urbana, burguesa, entre nós.

[17] Fialho de Almeida, Op. cit., p. 194.

[18] Fialho de Almeida, 1992b, p. 112.

[19] Sobre o tratamento da paisagem em “Manhã no Tejo”, cf. Isabel Cristina Mateus, 2008, pp. 204-12.

[20] Numa nota autobiográfica, Manuel Alegre dá-nos conta como o mar domina a nossa aprendizagem da língua e o nosso imaginário: “Aprendi os primeiros versos antes das primeiras letras. Não sabia ler, mas subia para uma cadeira e recitava, emproado. ‘Lá vão elas/as caravelas’. Não sei quem escreveu esses versos. Sei que nunca mais deixei de andar embarcado nelas, as caravelas. Ou na Barca Bela, de Almeida Garrett, que me foi ensinada por minha tia-avó Maria do Carmo Sampaio.(…) Eram as caravelas e a Barca Bela da língua. Estavam por dentro das vogais e das consoantes embora eu não soubesse o que isso era. Quando aprendi a ler foi uma desilusão. (…) Mais tarde, andaria talvez no primeiro ano do liceu, durante umas férias na minha casa de Águeda, abri um daqueles armários proibidos e perigosos de onde nunca se sabe o que pode sair. Saiu uma velha revista chamada Orfeu, com a assinatura do meu avô paterno Mário Duarte (…). Comecei a ler: ‘Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão/ Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido/ Olho e contenta-me ver/Pequeno, negro e claro um paquete entrando’. Fui por ali fora. Era de certo modo, outra vez, o ‘Lá vão elas, as caravelas’, mas como se fosse escrito do avesso. Fiquei muito nervoso, entre o fascínio e o horror, queria parar e não podia, apetecia-me rasgar mas ao mesmo tempo sentia-me levado por uma irresistível tentação, estava a cair para um abismo, como se as palavras de súbito não tivessem sentido ou estivessem cheias de segredos misteriosos.

Era como se estivesse a descobrir uma língua nova. Era a minha e era outra.” (2002, pp. 15-6).

[21] Vergílio Ferreira vê no sentimento da paisagem em Fialho, e em particular, no sentimento da paisagem alentejana, uma das raízes da sua própria identidade como escritor: “O meu país reparte-se por três zonas distintas -o mar, a planície e a montanha. O mar ocupa o núcleo central da nossa História e ouve-se em toda a nossa literatura, desde as ‘ondas do mar de Vigo’ às obras dos descobrimentos e à poesia de Nobre e de Pessoa. A planície arde em certas páginas de Fialho (…). E a montanha mitifica-se em Pascoaes. Dessa tríplice raiz eu sou.” (2001, p. 153).

[22] Fialho de Almeida, 1992b, p. 96.

[23] Texto especialmente escrito para o site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, em 1997. Cf. http://www.ciberduvidas.com/antologia.php?rid=118

[24] Manoel de Barros, num poema dedicado a A. Houaiss, atribui à poesia a missão de reciclar o lixo do quotidiano: “Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma// e que você não pode vender no mercado// como, por exemplo, o coração verde// dos pássaros//serve para poesia. ////Tudo aquilo que a nossa//civilização rejeita, pisa e mija em cima// serve para poesia” (2010, p. 154).

[25] “Pastor de Estrelas”, “Outros convidados ou descoisas”, 2008, pp. 12, 13, 63.

[26] “Nota do autor”, Idem, p. 68.