Escrito por SARA AUGUSTO
A relação interartística, entre poesia e fotografia, que seria de esperar da parte de quem lida com os dois domínios como coisa própria, não se apresenta de forma continuada.
No breve livro de poesia com o vasto título de «Universália», diz-se: “Estariam secas as fontes/ destes versos/ não fora os medos/ que sobrevivem, tão perversos,/ eternos bronzes/ da estatuária dos degredos (1919, p. 34). Os versos, cortados e incisivos, apontam uma das razões mais fundas para o exercício poético de António Duarte Mil-Homens: a poesia como movimento íntimo de liberdade, sentido como urgente a partir das contingências quotidianas. Neste contexto, o sentido do “medo” atinge uma dimensão ampla, manifestando, sobretudo, a condição tão frágil, mas também tão efémera, da vida humana.
Fotógrafo, nascido em 1949, a 9 de outubro, completando 70 anos no corrente ano e cumprindo 45 anos de dedicação à fotografia, António Duarte Mil-Homens tem publicados dois livros de poesia no século XXI, apesar de uma prática poética já mais alongada no tempo. O primeiro livro, uma edição de autor, «Vida ou Morte duma Esperança» anunciada, data de 2010, e o livro mais recente, «Universália», foi publicado já em 2019, sendo que os dois livros participam de uma temática, de um fôlego e de uma construção poética semelhantes. Sobre o primeiro livro, já escreveu José Carlos Seabra Pereira, na sua história da literatura escrita em Macau, «O Delta Literário de Macau», onde observou a inventividade da poesia de Mil-Homens e o seu “desalinho”, no sentido em que rompe com esquemas estabelecidos, com a rotina e a acomodação, mostrando um sujeito poético revolto e disruptivo (2015, p. 484), fundamente envolvido com o contexto e o lugar que nele ocupa.
A relação interartística, entre poesia e fotografia, que seria de esperar da parte de quem lida com os dois domínios como coisa própria, não se apresenta de forma continuada. A sua presença mais óbvia diz respeito à fotografia que compõe a capa do primeiro livro – sendo que há mais três do mesmo contexto ao longo das páginas- e que remete para uma das alegorias de maior solidez literária e pictórica da cultura ocidental. A fotografia, captada por Mil-Homens no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, representa uma escultura em mármore de figuração antiga: um pequeno Cupido, pensativo, posto em descanso, apoiado numa caveira, tendo ainda a seu lado uma ampulheta. Adequada ao espaço, lembrando que pulvis es et in pulverem reverteris, tem como modelo a linhagem antiga de gravuras como a de H. Goltzius (1594), guardada no Metropolitan Museum of Art, legendada com o esperado “Quis evadet?”, e, ao modo emblemático, acompanhada por quatro versos onde se compara a vaidade da vida humana com as bolas de sabão que se desfazem e com as flores que murcham e perdem a sua beleza. Nos elementos compositivos da escultura fotografada por Mil-Homens, entendida como memento mori e como vanitas, fica o aviso para a falta de substância da vaidade e do amor próprio, fundados na efemeridade da vida humana e das coisas do mundo, alegoria que teve o seu máximo esplendor no tecido artístico barroco. Tendo em conta a sugestão tão direta da capa, seria de esperar que os poemas do livro desenvolvessem esta alegoria sobre a efemeridade da vida, medida pelo rigor da ampulheta? Desenvolvem, mas não da forma barroca que a fotografia sugere.
Clara Não
Com efeito, para além da imagem fotográfica, que pode servir de mote ao título, a poesia de Mil-Homens é claramente metafórica. Os versos desenvolvem-se a partir de imagens, relacionadas com a reflexão sobre a condição humana, entendendo a vida como viagem, mas também com a construção poética e a consciência que o sujeito tem de si próprio. No seu “Auto-retrato”, primeiro poema do livro, desenha-se um sujeito poético dividido entre o ceticismo pragmático e eclético e o sonho louco, feito de espanto e de esperança nesse “futuro afiado” (2010, p. 11). Por isso, à “Morte”, que que irrompe pela rua perguntando pelos nomes da lista que leva na mão, imagem tão antiga quando o quadro compositivo da capa, mandou-a para norte e depois rumou para sul, “procurando o Sol” (2010, p. 12). Apesar da constatação da paisagem como “labirinto pálido”, feita de pranto, vigília, recusado o encanto, que não é mais que “mistificação inglória”, o sujeito poético ultrapassa essa ilusão solitária pela constante necessidade de se reinventar, “almejando atingir a meta” (2010, p. 24), sempre na “porfia duma miragem” (2010, p. 25). Entendida assim a vida, como prática diária, dela faz intrinsecamente parte o exercício poético. Eclético, o poema, como a própria vida, às “ideias vadias” que lhe “saltam às canelas”, que insistem em invadir o espaço poético, não resta ao sujeito outra solução que não seja “aceitá-las como são, / deixá-las morder a pena” (2010, p. 19). Acolhidas no poema, tornam-se expressão essencial do infinito, figuradas pela dor e pelo sabor intenso do sal (2010, p 33).
No que diz ainda respeito às imagens, um dos poemas que mais interessa ter em conta começa com o verso “Pastores de imaginários rebanhos” (2010, p. 38). O disfarce pastoril, como é entendido na literatura bucólica maneirista, impõe-se como intertexto, sendo que a alegoria é revelada desde o primeiro verso, colocando imediatamente os pastores e os rebanhos no campo da ficção. Os dois universos, o sentido literal e o sentido figurado, desenvolvem-se em contraponto – “apascentamos nossas dores”, “fazemos dos amores anhos” -, fazendo equivaler “lobos” e “sonhos”, feras que os pastores devem afugentar para defender o gado, acendendo fogueiras, onde aconchegam o serão. O sujeito poético, a partir de uma voz coletiva, sente da mesma forma que o pastor que guarda o rebanho, tendendo para uma rotina, mesmo que seja de dor. E da mesma forma que a harmonia do universo bucólico é atingida pela intensidade do sentimento amoroso, também o sujeito se afasta dos sonhos que ameaçam a mediania do quotidiano, apesar de este não ser mais do que “fogueira do nosso inferno”.
O primeiro livro de poesia de Mil-Homens termina com uma resposta à opção proposta no título do livro: nem vida nem morte. Depois de em poema anterior se ter dito que “a esperança é o que fazemos dela” (2010, p. 94), o poema “Bordejando uma iluminura” (2010, p. 106) apresenta no primeiro verso uma interpretação livre do horaciano ut pictura poesis. A escrita poética, intensa e impulsiva, é a expressão do engano e do desengano, em conjunto envolvendo o mundo e o sujeito. Essa poesia “à desgarrada”, em torrente e em desafio, é uma forma de gravar “nas almas bem fundo”, o “adiar da esperança”, figurado nesse cupido adormecido, entre a indiferença desiludida e a mais profunda inquietação sobre o tempo que se escoa pela ampulheta e o destino certo que se anuncia na caveira.
O exercício poético em António Duarte Mil-Homens surge como possibilidade de superação dos medos “tão perversos, eternos bronzes”, como escrevi no início do texto, assumindo uma atitude física que se prolongará no livro «Universália»: “degluto o medo” (2019, p. 5). Mas é, sobretudo, a expressão conjugada de uma lucidez desencantada com o encanto do poema como espaço de força e reflexão.