Uma obra em debate

Uma obra em debate

29 Outubro 2019

Escrito por RITA BARBOSA DE OLIVEIRA

Outra discussão recente sobre a obra de Sophia consiste na atitude transgressora da mulher tanto pela reinvenção dos atos de determinadas personagens femininas da mitologia quanto pela transposição da voz que seria convencionalmente masculina para a voz feminina.

No ano em que Sophia de Mello Breyner Andresen completa cem anos de nascimento, a leitura de sua obra enriquece com os debates organizados no âmbito das instituições culturais. Entre essas realizações, as Actas do Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen (2011), publicadas em 2013, revisitam temas e acrescentam outros com valiosas discussões.

Os textos das Actas registram testemunhos de amigos intelectuais sobre a atuação de Sophia na Sociedade Portuguesa de Escritores, no Centro Nacional da Cultura, na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, na Assembleia Constituinte, espaços em que lutou “contra unicidades e dogmatismos”, a favor da relação independente e ao mesmo tempo baseada na ajuda mútua da cultura e da política, ambas entendidas como atividades dinâmicas, em constante busca de redefinir estratégias, conforme as palavras de Guilherme d’Oliveira Martins. José Manuel Mendes relata as atividades da poeta na Sociedade Portuguesa de Escritores, instituição encerrada pela ditadura de Salazar, seguida de seu empenho, junto com outros intelectuais, para a criação da Associação Portuguesa de Escritores, da qual ela foi presidente, tendo afirmado em seu discurso de posse que “a poesia é necessariamente política”. Esse envolvimento ético está completamente ligado à obra de Sophia, segundo Nuno Teotónio Pereira. A propósito, António Tabucchi descreve a firmeza da poeta contra as ações dos representantes do salazarismo e lembra que, na Grécia, Sophia não apenas reencontrou os mitos fundadores da cultura ocidental como também fortaleceu a consciência das injustiças que os portugueses sofriam.

Determinados críticos discorrem sobre a trajetória da obra de Sophia a partir de temas relativos ao caráter religioso, à necessidade de o homem se religar ao cosmos, acrescentada da crítica das situações que geram a divisão do homem com as coisas, temas indissociáveis da preocupação com o fazer poético: Ana Luísa Amaral, em “Sophia – só”; Frederico Lourenço, em “O não-vivido na obra poética de Sophia”; Fátima Freitas Morna, em “A efabulação como poética na obra de Sophia”; Manuel Gusmão, em “O ameaçado fulgor da imagem”; Maria Andresen Sousa Tavares, em “Entre a sombra e ‘a luz mais que pura’: sobre espólio e a poesia de Sophia”; Pedro Eiras, em “A face noturna. Dos deuses em Sophia de Mello Breyner Andresen”; Piero Ceccucci, em “‘Ó noite, em ti me deixo anoitecer’: encanto e sonho da Noite na poesia de Sophia”; Gustavo Rubim, em “O recorte do corpo: Sophia – Ricardo Reis – e a forma humana”; Miguel Serras Pereira, em “Poesia exemplar”; Richard Zenith, em “Uma Cruz em Creta: a salvação sophiana”; José Manuel dos Santos, em “Sophia e a Felicidade”.

Outros pesquisadores discorrem sobre a metalinguagem geradora de uma poética expressiva em sua obra: Jorge Fernandes da Silveira, em “Sophia: a escansão do exílio”; Giulia Lanciani, em “Sophia de Mello Breyner Andresen: o labirinto da palavra”; Eucanaã Ferraz, em “Sophia: cesteira e cesto”; Federico Bertolazzi, em “‘O cântico da longa e vasta praia’: eco atlântico em itinerário mediterrâneo”. A analogia de algumas imagens com os processos cinematográficos e da música são feitas nos artigos de Rosa Maria Martelo, em “Imagem e som no mundo de Sophia”; Nuno Júdice, em “Luz e desenho em Sophia”; e Gastão Cruz, em “Sophia – a palavra exacta”.

Outros há que escrevem sobre a recorrência de processos artísticos de outros autores na obra sophiana como diálogo tenso de identificação ou de contestação, experimento e destaque aos diferentes modos de criação da plêiade de escritores portugueses, de Camões aos contemporâneos, a indicar parte de seu projeto e de outros intelectuais portugueses de valorização da cultura: Fernando J. B. Martinho, em “Sophia na Grécia com Pessoa”; Isabel Almeida, em “‘Se nenhum amor pode ser perdido’. Sophia e Camões”; Clara Rocha, em “Sophia e Torga”. Relacionado ao diálogo entre artistas, o artigo de Sofia de Sousa Silva, “Reparar brechas: uma possível relação entre Sophia de Mello Breyner Andresen e Adília Lopes”, apresenta a interlocução de Adília Lopes com a obra de Sophia, a quem Adília considera sua mestra.

Alguns temas apontados pelos críticos na obra sophiana entrelaçam-se com discussões mais recentes, como as traduções da obra da poeta para outras línguas e sua recepção, assim como as traduções realizadas pela poeta: Alexis Levitin, em “A tradução da transparência”; Michel Chandeigne, em “Sophia em francês”; Teresa Amado, em “Traduzir com música e paixão”.

Outra discussão recente sobre a obra de Sophia consiste na atitude transgressora da mulher tanto pela reinvenção dos atos de determinadas personagens femininas da mitologia quanto pela transposição da voz que seria convencionalmente masculina para a voz feminina. Hélder Macedo aponta poemas em que Sophia fala através da voz de uma persona masculina ou assume a voz que seria masculina. Anna M. Klobucka observa que Sophia inventa uma ética que não seja eco do discurso masculino para recolocar a mulher no domínio de seu corpo; primeiramente, ao inverter os papéis de Penélope e Eurydice; em segundo, ao instalar a anarquia dionisíaca na compostura de Reis em alguns poemas em homenagem a este heterônimo de Pessoa.

Por fim, alguns críticos relacionam a vida de Sophia com imagens recorrentes na sua obra, como a dança, o espelho e a casa. Carlos Mendes de Sousa observa que a dança ficou registrada em fotografia e filmes da poeta, assim como no movimento de seus versos gerado pela ausência de pontuação, ou pela presença dos bailados nos contos para crianças que criam uma atmosfera diáfana. Quanto ao espelho, Perfecto E. Cuadrado afirma ser essa representação duplicadora e multiplicadora das coisas decorrente das tendências clássica e romântica na obra de Sophia, verificadas na complementaridade tensa de imagens com as quais se desenha a figura do poeta e da criança. Quanto à imagem da casa, Paula Morão ressalta que a casa do Campo Alegre, no Porto, se constitui matriz fundadora da escrita de Sophia e Ruben A, seu primo, sendo aliada à ação de cismar, favorecendo o processo de descrição com adjetivação múltipla e intensa carga dramática, na qual se percebe o enfrentamento do medo na infância.

O significativo número de artigos reunidos nas mencionadas Actas e a variedade de temas aprofundados levaram Maria Andresen Sousa Tavares a destacar que nenhuma abordagem crítica da obra de Sophia dispensará a sua leitura. No mesmo ano de publicação das Actas do Colóquio, veio a lume a segunda edição de «Obra poética» de Sophia, sob a direção de Carlos Mendes de Sousa, pela Editora Caminho. E, entre 2013 e 2016, uma parte significativa da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, poesia, contos, peça de teatro e traduções, foi editada pela Assírio & Alvim, tendo cada uma das edições prefácios de pesquisadores da sua obra. Estes variados suportes da obra de Sophia, além de atualizarem a crítica poética e biográfica da poeta, são importantes formas de difusão da obra de Sophia, sendo também de destacar a doação de seu espólio à Biblioteca Nacional de Portugal e a criação no site da BNP da página Sophia de Mello Breyner Andresen. É inegável a extrema importância desses media online, pois possibilitam a abertura a mais investigadores destes e outros temas, que podem agora ser pesquisados em materiais disponíveis a mais distantes interessados. E é inegável que a discussão concentrada em cada livro de Sophia sugere caminhos para muitas outras investigações, ainda não tão aprofundadas neste amplo livro de actas.

NOTA: A autora escreve segundo a grafia vigente no Brasil.


* Imagem de capa: Clara Não
Bibliografia
Tavares, M. A. S. (org., 2013). Sophia de Mello Breyner Andresen: Actas do Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Porto Editora / Centro Nacional de Cultura.

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