Sophia ou o impulso de tudo ser

Sophia ou o impulso de tudo ser

29 Outubro 2019

Escrito por PAULO BORGES

O poema vive da tensão entre as modalidades temporais do já, do ainda não e do “um dia”, sendo que o que faz com que as duas últimas se experimentem e toda a composição não colapse e se desfaça no eterno e instante presente do , são as “pontes” que prendem o ser profundo, pleno e autêntico “à agitação do mundo do irreal”.

Há na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen um impulso para a plenitude que marca desde o início a sua obra, claramente expresso no poema “Pudesse eu não ter laços nem limites”:

Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Pra poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes1

Os “laços” e os “limites” são o que individualiza o ser, limitando-o e condicionando-o, e por isso mesmo o que o impede de corresponder às solicitações sempre novas e imprevisíveis que a cada instante vêm da “vida” ou são a própria vida na sua exuberância de possibilidades. “Mil” é uma metáfora tradicional do infinito e a vida apresenta sempre rostos, aspectos ou configurações novas, que excedem os anteriores e se excedem a si próprios, convidando a que o sujeito transcenda os seus limites imediatos ou aparentes para se conformar ou identificar com o movimento metamórfico e pletórico da própria vida e assim viver real e plenamente.

Sophia vislumbra em si outras promessas e possibilidades de ser, não ela mesma de diferentes modos, mas verdadeiramente “outros seres”. Isto “Se a vida tivesse sido outra”, ou seja, se houvesse aceite outros convites da superabundância da vida e se tivesse assim libertado pelo menos de alguns dos “laços” e “limites” que fixam o indivíduo numa dada identidade aparente. Essa é uma “fabulosa descoberta”, embora dela diga, no poema “Às vezes julgo ver nos meus olhos”, que só lhe “vem o terror e a mágoa” de se “sentir sem forma, vaga e incerta/ Como a água” («Poesia», 2015, p. 72). Apesar desta experiência pontual, não é todavia a ter forma precisa e definida que a poeta aspira, mas antes a realizar todas as possibilidades que essa ausência de forma lhe abre de se fundir e coincidir com a múltipla totalidade da vida e do mundo.

É essa na verdade, mais do que aspiração, a certeza que expressa no poema “Em todos os jardins”, onde anuncia, numa profecia da sua própria realização plena, que no seu “fim” – que não entendemos necessariamente como o da sua morte física, podendo ser o da sua culminação e perfeição em vida corporal, no sentido do télos grego – será todas as coisas e se unirá a “tudo quanto existe”, identificando-se com “jardins”, “lua cheia”, “praias”, “mar”, “areia” e “floresta”. Será então o “ritmo das paisagens”, ou seja, a vibração musical do próprio mundo, convertendo-se na “secreta abundância dessa festa” que antes via apenas “prometida nas imagens”. Sophia sabe que passará das limitadas e insatisfatórias representações culturais e psicológicas que os humanos fazem do mundo enquanto vivem ou julgam viver dele separados para a presença viva, fulgurante e festiva dos próprios fenómenos, seres e coisas. A isso tende o impulso do seu desejo, que só então, nessa fusão íntima, “como num beijo”, conhecerá “todo o fogo que habita na floresta” e em tudo, o fulgor da vida secreta que perpassa toda a aparição do real. Sophia sabe que nesse dia será tudo aquilo a que desde já e sempre mais aspira e que não mais estará então diante do mundo, como um sujeito diante de um objecto dele supostamente separado, mas que será ela mesma “o mar e a areia”. É esse “abraço” ou amplexo futuro o que já no presente intimamente a move, sendo isso que o seu “sangue arrasta em cada veia” (ibidem, p. 104).

É este mesmo “impulso”, holotrópico, de coincidir com tudo, de que fala o poema “As imagens transbordam fugitivas”:

As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?
(Dia do Mar, Andresen, 2015, p. 173)

As “imagens” podem ser as representações – palavras, conceitos, imagens propriamente ditas – que “transbordam” dos seus limites e se desvanecem deixando a experiência despojada ou despida ante o real, ante os fenómenos não filtrados pelas formas e categorias da percepção humana do mundo, condicionada pelo aparato histórico-cultural. Isso acontece por haver nos humanos um “impulso” sem fim que leva a experiência, e a consciência que lhe é inerente, a transcender os moldes das representações e a procurar ser tudo o que experiencia, jamais se podendo por isso deter em qualquer objectivação e sua inerente representação. É assim que aqui entendemos a “presença”, não como a presença do que é tal como é, mas a presença representativa que nunca pode “cumprir” o veemente “impulso” de superar a separação sujeito-objecto. Não é todavia isso que plenamente acontece quando ainda “estamos nus em frente às coisas vivas”, pois aí porventura ainda não estamos plenamente nus, uma vez que quedamos revestidos dos conceitos de haver alguém que está “em frente” de alguma coisa. A imagem do estar “em frente” pode ser ainda uma “presença” que há que diluir nesse “tudo ser e em cada flor florir” de que fala este poema, equivalente ao florir “Em todos os jardins” do poema assim intitulado, na mesma passagem da mera promessa das “imagens” representativas para a “secreta abundância dessa festa” de com tudo coincidir («Poesia», op. cit., p. 104).

Joana Antunes

Todavia, esta plenitude por osmose com a vida e o mundo, que “Em todos os jardins” surge como certa mas ainda futura, como se a separação e a parcialidade da vida individuada fossem por enquanto a sua realidade incontornável, é porventura ao mesmo tempo algo já consumado, numa outra dimensão de si, como o sugere o poema “As Fontes”. Se o poema ainda é escrito na perspectiva do futuro, expressando igualmente a certeza de que “um dia” a poeta realizará aquilo a que mais aspira, ao proclamar que então quebrará “todas as pontes” que ligam o seu ser, “vivo e total,/ À agitação do mundo do irreal”, para serena subir “até às fontes onde mora/ A plenitude, o límpido esplendor” que lhe foi “prometido em cada hora e na face incompleta do amor”, ele expressa no mesmo lance que essa sua totalidade já é consumada, estando apenas por enquanto ligada ao que parece obscurecê-la e restringir a sua fruição. O ser real e profundo de Sophia já é “vivo e total”, mas os vínculos que ainda mantém com o “mundo” agitado e “irreal” – cuja função negativa é afim aos “laços” e “limites” do primeiro poema comentado – condicionam-lhe porventura o acesso a si mesmo, ou o seu próprio reconhecimento, o que é equivalente. O ser “vivo e total” pode na verdade não ser distinto das “fontes”, ou seja, da Origem onde residem a “plenitude” e o “esplendor” que surgem como a maior “promessa” de cada instante da vida e se entreviram, ao que parece de modo limitado ou fugaz, “na face incompleta” da experiência amorosa. A “plenitude” e o “esplendor” podem ser precisamente os mais preciosos convites que a cada instante provêm da “vida de mil faces transbordantes”, referida no primeiro poema. Por isso, quando Sophia manifesta a certeza de que “um dia” acederá a “beber” directamente – numa experiência equivalente ao “beijo” no poema “Em todos os jardins” – a “luz”, o “amanhecer” e a “voz dessa promessa”, nela se cumprindo integralmente, não nos fala de uma experiência absolutamente nova, mas sim da irreversível consumação de algo que por vezes já experimentou, sempre que essa mesma “voz” “como um voo” a trespassa.

O poema vive da tensão entre as modalidades temporais do já, do ainda não e do “um dia”, sendo que o que faz com que as duas últimas se experimentem e toda a composição não colapse e se desfaça no eterno e instante presente do , são as “pontes” que prendem o ser profundo, pleno e autêntico “à agitação do mundo do irreal”. Este mundo pode designar tudo o que aparenta ser tão ou mais real, valioso e interessante do que esse “ser, vivo e total”, e as “pontes” podem ser as ilusões da consciência, as fixações e os apegos que geram essas aparências, distraem desse ser pleno e o levam a ignorar-se, trocar-se ou fazer-se acompanhar por todo o tipo de envolvimentos com o que na verdade nem sequer existe ou alguma vez existiu. O “mundo do irreal” pode designar o fluxo de todos os fenómenos que prendem e desviam a atenção do ser “vivo e total”, como os objectos, entidades, experiências, actividades, percepções, pensamentos, volições e emoções que povoam externa e internamente a consciência e a levam a envolver-se freneticamente com eles, dominada pelo medo e expectativa a seu respeito ou pela identificação com os seus instáveis remoinhos. É essa a “agitação” que turva a consciência, lhe impede reconhecer o ser pleno que é a sua natureza verdadeira e a distrai e diverte com o que a não vale. É por isso que só desfazendo o que a vincula a isso – as “pontes”, que assumem aqui o sentido negativo do vínculo ao que é ilusório e da própria ilusão que lhe subjaz ‒ pode ter a “calma” ou serenidade que lhe possibilite ascender às “fontes” onde reside o “límpido esplendor” da própria e íntima “plenitude”. Só fazendo ou deixando ruir, por não mais as percorrer e alimentar, todas as “pontes” da alienação pode aceder enfim irreversivelmente a si, colhendo tudo o que já vislumbrou e fugazmente pressentiu nas ocasionais mas fulgurantes epifanias e promessas de vida plena que a visitaram pelas frestas ou brechas da vida inautêntica. Tudo depende do que foi “como um voo” ‒ como o rapto ou arroubo, como o êxtase ou visitação, de uma experiência fugaz de trespasse e abertura ao “ser, vivo e total” ‒ se converter num cumprimento, ou seja, numa realização e consumação, desse mesmo ser, por uma consciência que o reconhece, nele se reconhece e nele, ou seja, em si, enfim e sem fim repousa. Repousando na quietude do ser pleno, livre dos “laços” e “limites” do primeiro poema, que equivalem às “pontes” para a “agitação do mundo do irreal”, desaparece a frustrante sensação de impossibilidade de responder a todos os súbitos “convites” da “vida de mil faces transbordantes”, pois agora já não se está perante essa vida, agora é-se essa mesma vida. O ser cumpre-se reconhecendo e desfrutando a sua própria e primordial superabundância. Aquela para a qual no fundo desde o início se convidava e era convidado, pois agora se sabe que quem convida, os convites e o convidado são apenas diferentes aspectos da mesma “vida de mil faces transbordantes”.

A experiência de pleno cumprimento narrada neste poema pode equivaler à realização que expressa o poema “Promessa”, que acolhe vários níveis de sentido, complementares, desde o de um encontro amoroso ao de um encontro consigo e com o real ou a vida plena, vivido como um renascimento primaveril:

És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante
(Dia do Mar, op. cit., p. 137)

Esta plena “Primavera” pode ser a morte do Inverno do “eu” e do “tu” e o renascer no fulgor dessa vida pletórica, metamórfica e múltipla que o primeiro poema evoca como “vida de mil faces transbordantes”. Aqui se compreende enfim o pleno sentido de cada um dos seus “convites / Suspensos na surpresa dos instantes” («Poesia», op. cit., p. 81): o convite a reconhecer e viver a plenitude e perfeição de “cada instante” dessa eterna e plena coincidência com a aparição do mundo e de cada coisa. A eterna Primavera de um si cósmico. Ou caósmico.

NOTA: O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.


Notas:
  1. Andresen, S. M. B. (2015). Poesia, in Obra Poética. Lisboa: Assírio & Alvim, p. 81. Esta citação e as seguintes intratexto terão por base a Obra Poética de Sophia de Mello Breyner Andresen, com prefácio de Maria Andresen Sousa Tavares.

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