Sophia de Mello Breyner Andresen: notas sobre a Poesia

Sophia de Mello Breyner Andresen: notas sobre a Poesia

29 Outubro 2019

Escrito por MIGUEL REAL

As palavras nomeadas, simplesmente nomeadas, (quase) sem adornos estilísticos, nuas, tornam-se mais do que palavras, denotando uma transcendência e um poder absolutos, definidores da humanidade do homem.

A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, iniciada em 1944 com o livro «Poesia», espelha a sensibilidade cultivadora de uma “rara exigência de essencialidade” (David Mourão-Ferreira) com a utilização do léxico comum das línguas – palavras simples –, diálogo entre uma natureza humana limpidamente ética e uma natureza auroralmente divina. A Grécia clássica guarda o segredo e o tesouro do último momento histórico em que homem e natureza teriam vivido em fusão, experimentando aquela inteireza exemplar da vida, a verticalidade solar de, transcendente e imanentemente, se sagrar filho dos deuses.

Neste sentido, a poesia de Sophia intenta resgatar esse momento auroral, anterior à consciência da clivagem entre homem e natureza, e entre homem e deuses, pecado mortal da civilização ocidental: “a civilização em que estamos é tão errada que/ Nela o pensamento se desligou da mão” (“O Rei de Ítaca”, «O Nome das Coisas»). Face a esta civilização esquecida de um sentido sagrado, resta à poesia, como consciência suprema do homem, invocar reminiscentemente os tempos aurorais, as coisas simples e principiais, anteriores à complexidade viciante da nossa civilização.

Assim, toda a poesia de Sophia é atravessada por este apelo a um retorno às sensações originárias do homem ocidental, isto é, apelo ao regresso a uma vivência pura da sabedoria vivencial, existencial, presente na Grécia clássica, remetendo ainda à origem das palavras e dos mitos instauradores de sentido civilizacional, à sensibilidade aberta ao divino e ao natural, pela composição de palavras outras que, como sinais mágicos, indiciam uma outra forma de existência – a existência poiética, onde entendimento e mão caminham juntos.

Regressar à Grécia é assim presentificar a raiz interior do homem europeu, evidenciando-lhe o antigo-novo caminho da beleza e do bem – o sentido do sagrado revelado pela palavra. Viagem do eu aos arcanos do passado europeu por via da nomeação das palavras essenciais condensadoras da experiência arcaica humana nascida do homem mediterrânico – eis a poesia de Sophia: “a arte e a experiência [humana] em si próprias”.

Neste sentido, como advertira Jorge de Sena, a poesia de Sophia não deixa de possuir um timbre metafísico: a nomeação de palavras simples (branco, flor, onda, mar, sol, luz…) condensa uma vivência humana genuína, pura, estilhaçando a rede artificial do actual léxico quotidiano, fundado no interesse e na técnica, reenviando para uma intrínseca ligação com as forças e os elementos da natureza. A poesia de Sophia busca a palavra essencial, aquela que, declarada, possui na consciência do leitor a força e a beleza do mar na rebentação ou do vento agreste causador da erosão. No seu primeiro livro, de 1944, um poema sobressai, “No alto mar”, dedicado ao pai. Aqui surgem já as palavras mágicas que constituirão conteúdo simbólico dos seus versos: “mar”, “água”, “sol”, “luz”… Seguir-se-ão livros cujos títulos evidenciam a continuidade de uma poesia que acabara de nascer: «Dia do Mar», em 1947, «Coral», em 1950, «Mar Novo», em 1958.

As palavras nomeadas, simplesmente nomeadas, (quase) sem adornos estilísticos, nuas, tornam-se mais do que palavras, denotando uma transcendência e um poder absolutos, definidores da humanidade do homem. Nomear é, assim, na poesia de Sophia, inscrever e revelar a essencialidade do ser numa produção simbólica vinculada ao ser e ao fazer: a natureza transfigura-se em palavras e estas, transcritas em poesia, figuram o ser, como o xamã primitivo manipula os corpos, harmonizando-os com e no ser.

Por isso, às palavras essenciais – vento, mar, luz, areia, sol… –, Sophia acrescenta palavras sagradas, reflectoras da unidade do ser – justo/justiça, harmonia, percepção… Em «Livro Sexto», publicado em 1962, Sophia aduz à sua poética de sempre a revolta contra o Estado politicamente perverso de Portugal através da inserção de alguns poemas de nítido prolongamento social, como “Pranto pelo Infante D. Pedro”, “O Velho [Salazar]”, “Pranto pelo dia de hoje”, “Pátria”, constituindo «Livro Sexto» um dos seus poucos livros que, pelo posicionamento social comprometido, ultrapassa a figuração intemporal da sua poesia.

Note-se este percurso, como conclusão. As palavras simbólicas ganham expressão concreta e geográfica: o Sul, o sul no Mediterrâneo, sobretudo a Grécia, para onde Sophia viaja, e, em Portugal, o Algarve, a zona de Lagos, onde passa férias. “Na luz de Lagos matinal e aberta / Na praça quadrada tão concisa e grega / Na brancura da cal tão veemente e directa / O meu país se invoca e projecta”.1

NOTA: O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.


Notas:
  1. Andresen, S. M. B. (2018). Obra Poética. Lisboa: Assírio & Alvim, p. 667. Desta edição são as restantes citações.

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