O tempo tem alma de caricaturista. Vai esculpindo no nosso corpo o que temos amplificado. Com o tempo, o nariz ou as orelhas grandes tornam-se desproporcionados, o queixo afilado afina, ou os olhos encovam. Tornamo-nos o nosso mapa físico: ele dá forma às montanhas construídas pelos sorrisos diários, e escava os vales profundos das vezes em que chorámos. O tempo sulca com rugas os caminhos para outros sorrisos e outras lágrimas: o corpo já sabe onde dobrar. Traça um roteiro para nos lermos. Linhas secas, se sempre fomos avaros. Linhas fluentes, se em nós houve generosidade. O gesto que repetimos ao longo dos anos foi ensinando aos músculos o ritmo da música que dançámos. A gravidade é o peso do dedo que nos viu barro…
Ao falarmos com António Cardoso, temos a ideia de que alguma gentileza houve sempre nele para que os seus gestos tivessem permanecido redondos e o rosto sereno. Entramos em sua casa para falarmos da obra de Amadeo de Souza-Cardoso. Sabe que viemos para o ouvir falar de Amadeo de Souza-Cardoso e responde ao nosso olhar ainda antes de formularmos as palavras. É certamente uma pessoa atenciosa, naquele sentido primeiro da palavra que é estar atento. A sua vida mistura-se há muito com a de Amadeo. Nasceu António Cardoso em Amarante, no ano de 1932, catorze anos depois da morte de Amadeo de Souza-Cardoso, mas é como se o trouxesse ainda consigo e ele fosse desde sempre uma forma de aprendizagem. Nos primeiros anos da vida, o tempo parece não ter peso. AMADEO, AMA DEO, é uma exortação ao amor que devemos ter ao sagrado. Deus é o deslumbramento que pode haver em nós:
“O Convento e sua igreja [onde viria a ser instalado o Museu Amadeo Souza-Cardoso] resumem, afinal, quase tudo: genealogias, discursos heráldicos, momentos de santidade e amor, correntes de devoção, fluxos populares de pagadores de promessas e de ‘milagres’ satisfeitos. Conhecer-lhe a teoria é compreender-se a si próprio.” [1]
Entendamos pois esta tarde com António Cardoso como um momento possível de iniciação ao tempo. Para António Cardoso, falar de Amadeo é ainda entrar de um tempo, o do espaço primordial. Das tertúlias de Teixeira de Pascoaes no café da Maria José. Da vila evocada por Amadeo na correspondência. Das personagens de Agustina. Do pátio de entrada do solar de Pascoaes, desse mesmo pátio sacralizado onde a jovem Sophia de Mello-Breyner tinha entrado a cavalo com as «Metamorfoses» de Ovídio debaixo do braço, para falar de poesia com “O Poeta” de Pascoaes: para lá Sophia mandará o filho Miguel, em tempos difíceis que ele recordará no Génesis de «Cebola crua com sal e broa»… António Cardoso recorda-se sempre dessa vila de Amarante quando escreve sobre Amadeo, e di-lo explicitamente um “espaço do sagrado”: das montanhas que guardam as águas, do convento, das casas onde nascem António Cândido, António Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Acácio Lino, Amadeo de Souza-Cardoso, Augusto Casimiro, Alexandre Pinheiro Torres, Agustina Bessa-Luís. António Cardoso usa por várias vezes a palavra “teoria” para descrever este tempo/ espaço de Amarante, talvez porque a palavra “teoria”, em grego, indica um miradouro, um espaço abrangente de observação das práticas de um cortejo ou procissão:
“Era […] a vila uma teoria e um espaço de tolerância. Aí desaguavam os senhores das velhas casas, terratenentes com ou sem brasão ou com heráldicas suspeitas, senhores dos verões de Espinho, de Vila do Conde ou da Granja, esbanjadores de casinos, de touradas e caça. Conservadores ou demo-liberais, em todos havia ora a graça saborosa de contador de histórias, ora o espírito salonard da anedota brejeira, a aventura vivida nas Áfricas insondáveis, com o Café balanceando entre o salão, o sinédrio e a alcova.” [2]
Nos anos 50, já no Porto, António Cardoso desenvolve a sua formação artística na Academia/ Galeria Alvarez, dirigida por Jaime Isidoro, de tão boa memória, e depois, entre 1965 e 66, na Escola Superior de Belas Artes. Mas a continuada ligação a Amarante e as ações de dinamização do Museu de Amarante, primeiro por Albano Sardoeira e depois por Vítor Sardoeira, confundem-se com as suas próprias memórias dos escritores, dos pintores, dos aventureiros que foram para ele gente viva. O interesse por Amadeo compreende-se mal sem esta consciência do invisível. Antes de 1952, poucos falavam da obra de Amadeo de Souza-Cardoso: quase só, em 1925, uma retrospetiva organizada por sua esposa, Lucie de Souza-Cardoso, na galeria Briant-Robert, pouco mais: “ela guardava o marido debaixo da cama”, quer dizer os quadros por todo o lado, saudosa quase doentiamente. Em 1952, o mundo parecia ter mudado muito pouco, entre António e Amadeo: era ainda difícil desenhar, pintar, criar, num mundo fechado que era Portugal, naqueles anos. Afinal o que mudou? O que poderia mudar entre Amarante e o Porto? Somente o que um grupo de pessoas faz, coletivamente. Mas sem esperar cada um que os outros o acompanhem: faz o que tem a fazer. É por isso que para criar basta haver lugares e personagens.
“Os anos 50 portuenses, os da receção de Amadeo, eram ricos de lugares e de personagens, numa trama de vasos e osmoses culturais que ia de algumas instituições oficiais às particulares, dos Fenianos ao Ateneu, ao Teatro Experimental, ao Cine-Clube, à S.E.N., às tertúlias da Lello, da Primus, do Rialto, Palladium e Majestic, até às revistas e jornais.” [3]
Um Porto ainda de burgueses liberais, marginalizados pelo regime do Estado Novo, resistindo ao puzzle como peça trocada.
Amadeo surge como paradigma dessa resistência muda que leva José-Augusto França a integrar Amadeo na exposição «20 Pintores Contemporâneos», em maio de 1952. Ao longo dos anos 50, vai-se consolidando a coleção de quadros adquiridos pelo Museu de Amarante. Devem-se a António Cardoso e à Galeria Alvarez as várias exposições de Arte Moderna em Amarante e a promoção continuada da obra de Amadeo, misturada ou não, com os “novos”, os “novíssimos”, os “modernistas” ou os “independentes”: Alvarez, Isidoro, Júlio Resende, Carlos Botelho, Dórdio Gomes e, no meio, um morto. As exposições em Amarante, no Porto, em 1956, mas também o museu, proporcionam leituras cruzadas de Amadeo com Portinari ou Hogan. Há artigos de críticos que vão saindo nos jornais diários: Jornal de Notícias, O Primeiro de Janeiro, Diário de Lisboa. Pouco a pouco:
“‘Gáudio dos conservadores’, escrevíamos então, certos de uma pacatez local que se espreguiçava pelo café, o bilhar, o xadrez e outros ócios” [4]
Ah, como é irónica a liberdade nas margens! António Cardoso vai-nos guiando pela casa, por entre desenhos, fotos e livros que evocam Amadeo de Souza-Cardoso, como se ele fosse um território ainda por conter, feito de rio e de serra, pessoas, objetos e bichos. Alguns quadros de António Cardoso, os mais antigos, lembram curiosamente quadros de Amadeo de Souza-Cardoso: retratos com manchas do Marão, verde-musgo, castanho-torrão, cinzento-granito, ocre-líquen… Vai-os comentando com distanciamento, alguma ironia: ama-os, mas talvez como filhos que se fizeram à vida.
António Cardoso é um pintor que tem sobre a sua própria obra o olhar distanciado de um crítico. A tal não terá sido alheio o facto de ter enveredado por formações paralelas: a de pintura (na Faculdade de Belas Artes do Porto) e a de História de Arte (na Faculdade de Letras), onde se licenciou (em 1974) e onde seguirá mais tarde (1981) a carreira académica. Também António Cardoso se sente atraído por essa arte amarantina de contar histórias (e de as ouvir), de captar um espaço (para dele fugir). As histórias e os quadros são duas formas de fazer buracos na paisagem, de criar armadilhas. Fala, escreve, desenha e pinta com o mesmo desejo de beleza. Mas se hesitou entre a autonomia da poesia e a autonomia do desenho, escolheu ambas e nunca as confundiu. O currículo é público. Doutoramento em História da Arte com uma tese sobre «O Arq.º José Marques da Silva e a arquitectura no Norte do país na primeira metade do século XX» (FBAUP, 1997). Dinamizador das Exposições do Cinquentenário da morte de Amadeo de Souza Cardoso (em 1969). Membro ativo da APOM (Associação Portuguesa de Museologia), da ARPPA (Associação Regional do Património Cultural e Natural) e da Associação Internacional dos Críticos de Arte. Diretor do Museu Amadeo de Souza Cardoso, em Amarante, a partir dos anos 90 – “desde que nasci”, responde quando lhe perguntamos a data. Responsável pelo catálogo da coleção do museu, editado em 1997. Sempre realça a vitalidade que deve existir no espaço museológico: dirigir para dinamizar esforços individuais, fazer o que os outros não podem. Fala-se da importância de se não perder o espólio de Teixeira de Pascoaes: não basta adquiri-lo, é preciso devolvê-lo à vida. E a dificuldade que há ainda em criar percursos pelos espaços públicos e privados de escritores e artistas, tantos que há em Amarante. A restauração do atelier de Manhufe, onde Amadeo pintava, é feita, ainda hoje, à custa da família. A família é que salvou quase tudo. Se se destruiu alguma coisa, aquando da morte de Amadeo? Podem ter sido desenhos, mas talvez só uns nus, mais académicos. Pelo contrário. Depois que ele morreu, assinou-se à pressa quase tudo, com pouchoir: “num quadro até colocaram o nome de Amadeo de Souza-Cardoso ao contrário”.
A mão do diretor não vê o que faz a mão do pintor. Um desejo de imparcialidade o move. Só vemos que é o mesmo corpo quando António Cardoso folheia as telas dos quadros espalhados pela casa como quem folheia um livro de História de Arte. Comenta um contexto, identifica uma foto, fala desse jogo que têm as coisas e as pessoas com “ar de família”, ainda que muito diferentes nos pareçam. Fala da importância de José Augusto França ou Fernando Lanhas no reconhecimento de Amadeo, como se França e Lanhas fossem seus companheiros de armas. Escreve sobre Diogo de Macedo, colecionador e crítico da obra de Amadeo, que talvez nunca o tenha percebido ao ver nele “singela declaração do lirismo sentimental e poético”. António Cardoso não deve gostar de nenhuma destas palavras. Não da “singeleza”, porque gosta da simplicidade. Não da “declaração”, porque teme a vaidade linguística. Não do “lirismo”, porque o seu olhar é demasiado irónico para o apreciar sem reservas.
Não “sentimental”, porque se interessa pela racionalidade do “sentimento”. Não “poético”, talvez porque (como Pascoaes) crê existir antes da poesia uma poética que nos faz ver a poesia imanente em tudo. “Singela declaração”, “Lirismo sentimental e poético”… Deve ler tais expressões como se fossem pleonasmos: “recuar para trás”, “prosseguir para a frente”. Há que fazer melhor.
Demora-se nos traços de um Cruzeiro Seixas: só pode ser um Cruzeiro Seixas. Fala-nos ainda de Teixeira de Pascoaes, de Carlos Carneiro. São folhas vivas. Continua a desfolhar. Mostra-nos alguns quadros seus, mais recentes: linhas retas e de cores puras, não necessariamente primárias. Talvez não sejam tão recentes assim. Nota-se que o tempo, esse escultor caricaturista, lhe depurou o traço, lhe limpou as manchas. Os quadros mais recentes são de arquiteto. Nos anos 80, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, visitou a Bienal de Veneza e a Documenta 7, de Kassel. Viajou, por obrigação e prazer. Nunca deixou de desenhar. No atelier, vamos acompanhando as jornadas de trabalho como se desfolhássemos um bloco de viagem, com desenhos em traços rápidos: neles há pouco mais que uma linha do horizonte, as linhas que separam a água da terra, a terra do céu. E bastam para as linhas de Paris. As de Londres. As de Dubrovnik, “uma das cidades mais belas”. Mais bela que Paris? Mais bela do que as cidades de Itália? Continuamos por entre as linhas da orla. O que faz a beleza destas cidades? O caráter. Um cuidar de si, sem pompa e ainda menos circunstância…
Que pena não termos falado então sobre Património, enquanto caráter do lugar. António Cardoso interessa-se pela cultura do espírito coletivo, a sua forma de política. A tese de doutoramento sobre o Arq.º Marques da Silva viria a constituiu o principal fundamento do legado feito pela família à Universidade do Porto para o Instituto Arq.º José Marques da Silva, hoje Fundação Marques da Silva. António Cardoso foi responsável por várias exposições sobre a obra de Marques da Silva, enquanto arquiteto e pintor (notável aguarelista), mas também enquanto colecionador, interessado no registo e conservação do Património: na Casa do Infante, em 1986; na Casa de Serralves, em 1988; no Instituto Marques da Silva, em 2001. António Cardoso integrou a Comissão do Património da Câmara Municipal do Porto, entre 1996 e 2001. Desde sempre esteve ligado à classificação, conservação e dinamização do património arquitetónico de Amarante. Voltamos a Amadeo, uma vez mais. O que se tem feito neste centenário da morte de Amadeo… O que se poderia ter feito. “Vamos ao nosso Amadeo”.
Foi buscar uma folha em que tinha anotado o que estava previsto para este ano, acordado em traços largos durante uma reunião. Não sei se foi um olhar “lírico” ou “irónico” que nos lançou quando nos estendeu a folha única. O olhar lembrava o de uma criança. Lembrei-me de o ter visto no Museu Soares dos Reis, numa tela de Henrique Pousão, “Esperando o Sucesso”. Era mesmo assim: um olhar lírico e irónico, maroto.
O plano para Amadeo lembra um átomo, estrutura de energia, sem divisão como princípio dinâmico. Enumera personagens possíveis. E tudo está quase ainda por fazer, “não atam, nem desatam”. Mas há boa vontade.
1.º Centenário da Morte de Amadeo de Souza-Cardoso. Um eixo vertical – averiguar as razões do interesse da obra de Amadeo: as razões do local ao universal. Mote para um congresso internacional a organizar na Faculdade de Letras do Porto? Chegou-se a falar, mas é preciso alguém chegar-se à frente: faltarão para isso “personagens”? Todas estas coisas pequenas dão muito trabalho. Outras não: há uma tese de Luís Damásio que devia sair do circuito académico, ser publicada, posta “cá fora”. Tem documentos biográficos interessantes, testemunhos muito raros. É muito importante a Logística. Voltam os “lugares”. É de novo necessária uma rede de lugares separados, distintos, e todavia unidos na causa comum. Enumera lugares possíveis. CMA, MASC, CME?, FLUP, FCG, SEC Norte….↔ Atividades paralelas. Linhas que se encontram no infinito?
Os anos da receção de Amadeo uma vez mais têm de ser “ricos de lugares e de personagens, numa trama de vasos e osmoses culturais”, de algumas instituições oficiais às particulares. Até aos jornais e revistas.
[1] Cardoso, A. (1987?). Amadeo de Souza-Cardoso: memória dos Anos 50-60, 1887-1987. Centenário do Nascimento de Amadeo de Souza-Cardoso,.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 17-23, cit. p. 17, parêntesis nosso.
[2] Ibid, p. 20.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.