Manhufe, terra natal de Amadeo de Souza-Cardoso, e as paisagens montanhosas do Douro foram, direta ou indiretamente, fonte de inspiração de toda a produção do artista. Aqui se propõe uma visita a algumas das obras em que o pintor imortalizou as suas “casas.”
Chegada a hora do centenário da morte de Amadeo de Souza-Cardoso, será natural a sua comemoração — uma ideia em partes iguais mórbida e amorosa. Mas será a morte o mote para fomentar o diálogo cada vez mais intenso sobre “a primeira Descoberta de Portugal na Europa do século XX.” (Almada Negreiros, 1916 in Vasconcelos, 2016, p. 292).
Interessou-me explorar a obra inicial de Amadeo. Folheio o catálogo Raisonné, e fico parado a olhar para uma obra mergulhada de azuis, onde se sentem os ecos das atmosferas criadas pelos naturalistas portugueses, a paz de uma «[A] volta do mercado» (António da Silva Porto, 1886); um grupo de pessoas sai da igreja, apenas apontadas em pinceladas breves. Uma vista do altar da igreja de São Martinho de Mancelos, onde Amadeo é batizado a 16 de novembro de 1887, dois dias depois do seu nascimento.
Viro mais umas páginas. Uma torre eleva-se sobre o casario. O catálogo da exposição de Paris de 1925 dá-lhe o nome de «Église»; e será óbvio para aqueles que já tiveram o prazer de visitar Mancelos que se trata da mesma igreja mencionada acima, da torre que vigia a última morada do artista, mas agora vista do seu claustro. Também nesta, a atmosfera é consistente, tão fria e montanhosa como a sua paisagem envolvente.
Nestas, que o catálogo deixou como P5 (1910) e P16 (1909) respetivamente, Amadeo ainda estará longe das vanguardas, e do “de-tudo-um-pouco-ismo” que assumiu durante a sua carreira. Aqui, o pintor constrói, com pinceladas ainda pouco seguras, mas com a familiaridade de quem tem o espaço como parte de si mesmo, um dos seus edifícios formativos; a igreja como casa espiritual, e de uma grande importância para uma família de devotos católicos, como a de Amadeo. Mas ainda que sejam radicais as diferenças entre estas obras e as do seu período final de isolamento, já aqui se sente as vibrações de talento que se viriam a confirmar nos anos seguintes.
Prendo-me depois com as duas pinturas que Amadeo fez da sua própria casa, a Casa de Manhufe, a que o viu nascer, se acreditarmos nos registos paroquiais, às duas horas e meia da manhã, de dia 14 do dito mês. Essas, quando em confronto, mostram tão claramente a evolução vertiginosa; a primeira, de cerca de 1910, e a segunda de cerca de 1912-1913, dificilmente podiam ser mais diferentes, quando pensamos no tempo que separa a produção de ambas.
Na primeira (P23, segundo o catálogo), como que numa experiência impressionista, captura uma atmosfera de fim de tarde, quando o sol radiante e anguloso, tinta toda a paisagem de amarelos e laranjas; uma “luz intensa, desta terra cheia de coisas pitorescas.” (Souza-Cardoso, 1910b). Pinceladas mais rápidas, numa tela pequena e portátil, onde o pintor dedica tempo a definir apenas a torre acastelada, como marca identitária principal da casa; o resto do casario tosco, e a vegetação muitas vezes uma simples pincelada grossa.
A segunda (P44) é já uma experiência completamente diferente. Amadeo geometriza a Casa de Manhufe que se avista “ao longe no alto de uma das montanhas do sopé do Marão (…) com o seu tipo acastelado, com o ar de quem vigia as montanhas aos pés” (Souza-Cardoso, 1910b) e a sua paisagem circundante. As linhas que passam os seus limites naturais, as formas destorcidas, o arvoredo altamente estilizado, conferem à obra uma identidade muito própria. Não há, também, como não mencionar uma das mais fantásticas obras de Amadeo: «a Cosinha da Casa de Manhufe» (P50, 1913). Do mesmo período da P44, a incessante geometrização das formas, a exploração dos vários planos, sagram a entrada definitiva de Amadeo pelo cubismo. Ainda em Manhufe, não muito longe, fica a Casa do Ribeiro, onde o pai de Amadeo lhe constrói um atelier. Também foi pintada (P45), em 1913, no mesmo estilo de P50.
Fica assim completa a tríade mais intensa da formação (portuguesa, entenda-se) de Amadeo de Souza-Cardoso: a casa onde nasceu, a que o viu ser batizado, e aquela onde trabalhou e tanto produziu. Nesse sentido, o pintor faz, numa das cartas que envia a Lucie, a confissão: “não imaginas o efeito que me tem produzido a minha terra desta vez” (Souza-Cardoso, 1910a). Hoje, felizmente, não precisamos de imaginar esse efeito: está patente no seu corpo de obra. A presença das suas raízes, em Manhufe, Mancelos, Amarante, Espinho, e a cor e luzes portuguesas, será a base a partir da qual Amadeo desenvolverá a sua estética.
Ou então, somos apenas nós, portugueses, a tentar reclamar a nossa presença e importância para um percurso magnífico de um dos melhores artistas modernistas do século XX. A realidade é que já muito foi dito sobre Amadeo, sua vida e obra, mas havendo ainda tanto por se descobrir e por se discutir, a relevância é incontestável.
Bibliografia
Alfaro, C. (2007). Catálogo Raisonné: Amadeo de Souza-Cardoso: Fotobiografia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian & Assírio & Alvim.
Almada Negreiros, J. (1916). “EXPOSIÇÃO amadeo de souza cardoso LIGA NAVAL DE LISBOA” in Vasconcelos, M. J. (coord.) (2016). Amadeo de Souza-Cardoso, Porto – Lisboa, 2016-1916. Lisboa: Museu Nacional de Soares dos Reis & Blue Book, pág. 292.
Fonseca, C. (2016). Amadeo de Souza-Cardoso: O último segredo da arte moderna [Documentário]. RTP PLAY – 21/12/2017 (Acedido em 19/05/2018).
Freitas, H. (2008). Catálogo Raisonné: Amadeo de Souza-Cardoso: Pintura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian & Assírio & Alvim.
Souza-Cardoso, A. (1910a). Carta de Amadeo a Lucie, 1910. Colecção espólio de Amadeo de Souza-Cardoso. Lisboa: Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (Cota BA ASC 12/15). Disponível em: https://goo.gl/tL9JUH (Acedido em 23/03/2018).
—- (1910b) Carta de Amadeo a Lucie, 1910. Colecção espólio de Amadeo de Souza-Cardoso. Lisboa: Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (Cota BA ASC 12/19). Disponível em: https://goo.gl/brfT3k (acedido em 23/03/2018).