AMADEO: UMA ENTREVISTA COM MÁRIO CLÁUDIO, POR CARLOS MAGNO E CELESTE NATÁRIO

Carlos Magno
Maria Celeste Natário

C. Magno: É possível ler o «Amadeo» do Mário Cláudio sem conhecer nenhuma obra de Amadeo?

Mário Cláudio: Não, acho que não, sinceramente. É possível escrever, e isso eu fi-lo, sem simpatizar com o homem Amadeo. Tive sempre uma certa antipatia por aquela figura.

C. Magno: Sim, isso nota-se.

Mário Cláudio: E por várias razões. Uma delas é porque era um homem que eu considero ser um pintor muito interessante, mas muito desinteressante como ser humano: era pouco culto, era um homem que tinha características que não me são simpáticas – por exemplo, tratava um pouco mal as mulheres, era um pouco machista. A história do casamento dele passa um bocado por isso, por essa espécie de hegemonia que ele exercia sobre as mulheres, obrigando-as a servi-lo. Acho que ele era um misto de genialidade nas artes e de mediocridade humana. Ou, pelo menos, de banalidade humana, se quisermos.

C. Magno: Essa é a tua visão do Amadeo, mas a pergunta que eu fiz tem a ver com a questão de fundo por onde eu gostava que a nossa conversa começasse: aquele homem pintou, aquele homem foi um artista absolutamente fabuloso, e eu continuo a achar que a melhor obra dele, a obra de introdução ao Amadeo, é aquele quadro que penso que se chama «Entrada», que é de uma modernidade… Vemos aquilo todos os dias na rua hoje em dia. Bom, o Amadeo é uma explosão de cores, é uma explosão de equilíbrios, é uma explosão, ao mesmo tempo, de várias coisas; mas o que eu vejo neste livro, o que eu sinto neste livro são cheiros. O teu livro é cheiros: o cheiro da cozinha, o cheiro do campo, o cheiro de Paris, o cheiro das tintas, eventualmente. Por isso é que perguntei: é possível ler este livro sem conhecer a obra do Amadeo na sua genialidade?

Mário Cláudio: Eu acho que não, porque, realmente, o Amadeo é a matriz do livro. Daí que o livro nasça e aconteça todo em torno desta figura.

C. Magno: Mas estou a falar em ler, não escrever.

Mário Cláudio: Sim, inclusivamente há referências a trabalhos dele, em que esse elemento sinestésico está presente: por exemplo, a associação da visualidade com o gosto é evidente nos frutos que pontuam a obra dele. Há também elementos, se quiséssemos, de caráter tátil, aquelas paredes rugosas, raiadas. Portanto, essa sinestesia é também uma sinestesia do Amadeo e é isso que me aproxima dele. Aqui há uns anos, creio que em resposta a um questionário, o Frederico Lourenço disse que eu era o autor português dos cinco sentidos e eu reconheço-me nisso, essa sensibilidade também é um bocado minha e daí que isso me projeta, por exemplo, num certo universo barroco – porque os sentidos são necessariamente barrocos –, em que não se reflete a escrita, que pode ser absolutamente genial também, como é a obra do Amadeo, pode ser genial a escrita de autores como [Robert] Musil, para quem a sensualidade é subsidiária. Já não acontece isso com o [Marcel] Proust, em que os elementos sensuais são absolutamente vertebrantes do texto.

C. Magno: Mas sabes que eu a reler o livro, não a lê-lo pela primeira vez – e este é de 1989…

Mário Cláudio: 1984.

C. Magno: 1984; portanto, já vão, neste momento, 30 anos – ao reler este livro, eu senti que tu eras a mistura perfeita, se quiseres, de Italo Calvino e de Julio Cortázar. Não sei se as referências te agradam ou não, mas pela sucessão de planos, pela desconstrução e pelo domínio que tens dos diversos planos temporais, em que se jogam as…

Mário Cláudio: Isso em termos de construção, de estrutura, é verdade. Em termos de uma mundividência, de fruição do mundo, isso não. Estou noutro universo, porque eu localizo-me no Norte de Portugal, que tem antepassados no Norte, quer dizer, a norte do Mondego; daí antepassados como, por exemplo, Aquilino Ribeiro, a Agustina Bessa-Luís, que são também escritores sinestésicos, qualquer um deles.

C. Magno: Mas essa se calhar é a tua visão, Mário Cláudio, porque se tu fores ver com quem estudou, por exemplo, o romance americano – e eu estudei –, o [William] Faulkner, d’ «O Som e a Fúria», está muito aqui.

Mário Cláudio: Está, não digo que não esteja, porque aí…

C. Magno: Na escrita….

Mário Cláudio: É o universo de um inocente, se quisermos, que está muito próximo da elementaridade, daquilo que há de mais elementar em nós. É um atrasado mental que conta a história e que, assim sendo, tem com o mundo uma relação que passa fundamentalmente pelos sentidos, como acontece com as pessoas que têm algum atraso mental e que têm dificuldade em construir esquemas abstratos ou entrar na abstração, etc. Aí, o elemento dos sentidos está presente.

C. Magno: Mas o tal atrasado mental, que usa a Literatura ou é usado pela Literatura, mais propriamente, para fazer passar uma determinada mensagem, uma determinada visão do mundo… E eu aqui refiro-me, sobretudo, à seleção vocabular, ao rigor. Ao rigor da palavra, no fundo, quando tu dizes – e não estou a tentar dizer que isto seja paradoxal ou contraditório entre si, porque o barroquismo tem isso – “Eu sou barroco!” e assumes isso. O teu barroco é um barroco moderno, naturalmente, mas é um barroco em que tu avisas as pessoas: “Atenção que eu sou barroco! Quando me lerem, estão a ler um barroco!”

Mário Cláudio: O barroco faz parte da pós-modernidade, não é?

C. Magno: Faz parte da tua carta de apresentação.

Mário Cláudio: Mas é uma das vertentes do pós-moderno e tem figuras importantes noutras Literaturas que não necessariamente a Literatura portuguesa, embora também tenha. Mas tratam-se, realmente, de planos que têm a ver também muito com a índole de cada um de nós. Portanto, eu assumo-me como barroco. Houve um homem chamado Eugeni d’Ors, catalão, que disse que a mentalidade humana oscila entre o barroco e o clássico. Por exemplo, podíamos pegar, em Portugal, em duas figuras absolutamente icónicas do que é a estética portuguesa em termos literários, o Camilo Castelo Branco e o Eça de Queirós, e teríamos aí exemplos do que é o barroco e do que é o clássico.

C. Magno: Sim, sim, é verdade. São duas versões do barroco.

Mário Cláudio: E é curioso, porque isso nem sempre é, digamos, uma dimensão total, porque umas vezes pode ser-se barroco nos temas e ser-se clássico na forma. Eu valorizo muito isso. E pode ser-se barroco na forma e clássico na temática, naquilo que se procura.

C. Magno: Mas tu és barroco na temática e não és barroco na forma.

Mário Cláudio: Há sempre uma contaminação, é inevitável.

C. Magno: Sim, mas é uma contaminação que o leitor faz de forma automática ou não. E eu leio isto de forma muito clean. Eu acho que não há palavras inúteis – não quer dizer que o barroco as tenha –, não há; a adjetivação tem um caráter muito substantivo, porque eu estou a vê-lo, e substantivo, sobretudo, do ponto de vista quer olfativo, quer tátil. E, nesse sentido, diz-se: o livro é pequeno (é dos teus livros mais pequenos), lê-se rapidamente e bem. Agora, toda a palavra selecionada fora daquilo que será o discurso normal e fluente (gostava de ver, por exemplo, a correção inicial que fizeste do texto, para ver o que é que foi substituído), todas as palavras que aqui aparecem – e são palavras surpreendentes, palavras antigas, sobretudo na adjetivação –, são palavras que qualificam e é aquilo a que eu chamo de ‘realidade substantiva’; mas são palavras que não fazendo parte de uma linguagem quotidiana mesmo de gente erudita, aparecem ali para dar uma referência não só geográfica, como temporal, como, ao mesmo tempo, uma referência equilibradora para toda a digestão do texto. Ou seja, o trabalho é um trabalho limpo, é um trabalho clean, muitas vezes acrescentando, adjetivando, mas é uma…

«Carlos Magno, Celeste Natário e Mário Cláudio» (13/04/2018). Foto: Isabel Costa.

Mário Cláudio: Sim, mas é curioso isso, porque, durante muito tempo, a adjetivação esteve na linha de mira dos bem-comportados, sobretudo a partir do neorrealismo, achava-se que o adjetivo era, de facto, uma excrescência, não devia ser utilizado, etc. Isso durou o tempo que durou, em Portugal durou até importarmos o realismo mágico e, a partir dessa importação, abriu-se todo um outro universo. E, curiosamente, até muitos dos que tinham aderido ao código anterior acabaram por se movimentar – estou a lembrar-me, por exemplo, do Carlos de Oliveira e estou a lembrar-me do Baptista-Bastos, que era um jornalista importante, estava muito mais próximo daquilo que era o mundo e a reação dos leitores do que os outros. Portanto, aquela escrita muito seca, sem adjetivos, etc., acabou por ficar ultrapassada. Lembro-me de o Baptista-Bastos me ter dito, e deve ter dito isso a muita gente, que é impossível tomar uma posição sem utilizar um adjetivo. Não é? É impossível, nós não conseguimos dizer qual é a atitude que tomamos, dar uma opinião sobre as coisas sem utilizar um adjetivo. Começa logo pelo bem ou pelo mal.

C. Magno: Estás a falar do Baptista-Bastos e eu estou a lembrar-me da palavra ‘interessante’, que discutimos várias vezes, e ele dizia que ‘interessante’ era o único adjetivo que ele não utilizava porque não queria dizer nada.

Mário Cláudio: Ou ‘curioso’, é a mesma coisa. Mas, de facto, por exemplo, o Urbano Tavares [Rodrigues] oscilou um pouco entre o neorrealismo e, depois, ele teve uma grande lição na vida dele de um grande escritor que ele conheceu e, que foi o Aquilino [Ribeiro]. Ele herdou muito do Aquilino e respeitava-o muito. O Aquilino era um homem que dizia aquilo que eu acho que é perfeitamente verdade: a linguagem, o léxico é um teclado e tem de ser utilizado de todas as formas e feitios. Agora, tem é de ser utilizado com um propósito, não pode ser utilizado indiscriminadamente só para meter lá uma palavra difícil.

C. Magno: Claro, mas essa utilização que em ti é natural percebe-se que é uma utilização necessária; isto é, este livro, este romance, esta novela, esta biografia, chama-lhe o que quiseres, podia ser um ensaio, um exercício sobre, ou até uma série de relatórios, se quiseres, mas a adjetivação e a linguagem em geral que utilizaste estão lá para dar, por um lado, essas sinestesias, mas, por outro, para não deixar o leitor assético – isso é a última coisa que tu queres. Quando falavas há pouco de não gostares particularmente da personagem do Amadeo, isso nota-se, como se nota, por exemplo, na Agustina, quando ela diz que não gosta de determinada personagem e, portanto, a mata. A questão que eu coloco, para dar sequência à nossa conversa e voltarmos a falar de Amadeo, é se tu achas que é possível, depois de ler este livro, olhar para a pintura do Amadeo com os mesmos olhos. Ou seja, a primeira pergunta foi “É possível ler este livro sem conhecer a obra do Amadeo?” e, agora, a segunda é: depois de ler, é possível ver a pintura do Amadeo com os mesmos olhos?

Mário Cláudio: Bom, eu acho que quando se escreve sobre alguém, esse alguém acaba sempre por sofrer o efeito dessa escrita e, de alguma forma, acaba por ser visto de outra maneira do que aquela que era antes daquele texto, seja ele de que natureza for. Também era impossível ver o Amadeo sem os escritos do José-Augusto França, que são interpretativos. Aqui o que acontece é o seguinte: há uma coisa que eu tenho consciência que fiz – tenho consciência de ter tentado fazer, não de ter conseguido fazer –, que é inserir o Amadeo numa contextualização cultural do norte de Portugal e isso é que me parece capaz de ser diferente. É muito curioso, eu tenho repetido isto vezes sem conta: o Amadeo faz parte de um universo mental, cultural, antropológico, se quiser, em que aparecem figuras como Teixeira de Pascoaes, como a Agustina, como o próprio Manoel de Oliveira, como a [Guilhermina] Suggia, ou como a Rosa Ramalho, todas elas figuras que vieram na base de uma espécie de sabedoria infusa, não precisaram de andar em escolas, nem de frequentar academias. O Amadeo esteve um ano na Escola de Belas-Artes, no curso de Arquitetura, e veio-se embora. A Rosa Ramalho era analfabeta, a Agustina nem o liceu completou.

C. Magno: E a Rosa Ramalho foi descoberta por gente muito culta.

Mário Cláudio: Sim, exatamente, ela estava ligada a razões profundas da terra, a uma ancestralidade, a um consciente coletivo, e isso é um fenómeno tipicamente nortenho, não existe a sul, em que o universo é muito mais preto e branco, em que não há neblinas e essas coisas, não há. Lá em baixo não há propriamente esse tipo de relação visceral com o meio. Quando o Manoel de Oliveira diz que o cinema para ele é teatro filmado, ou quando, enfim, com uma intenção irónica, o Jorge Brum do Canto disse que o cinema dele não era cinema, era uma coleção de diapositivos, que puseram imagens sobre imagens, ele estava a fazer aquilo em que acreditava e, de repente, descobriu que aquilo era a modernidade.

C. Magno: Desde Montalegre, não é? O que é que ele [Manoel de Oliveira] faz em Montalegre? Aquilo da Paixão de Cristo…

Mário Cláudio: «O Acto da Primavera». Portanto, ele fazia essas coisas, fazia aquilo que ele queria fazer, aquilo para que se sentia impelido na altura, e, de repente, descobriu-se que aquilo era o moderno, era o que estava a fazer o Éric Rohmer, os tipos todos que estavam na vanguarda, mas depois de um processo de elaboração, de evolução, etc. Ele não precisou de fazer isso.

C. Magno: Isto leva-me a outra questão anterior que eu gostava de te colocar ainda, que tem também a ver com um escritor que te é muito querido, que é o Proust. Eu vi um filme sobre Proust feito por um francês, Adlon qualquer coisa [Percy Adlon,«Céleste», 1980], deves conhecer, é um dos filmes mais célebres sobre o Proust.

Mário Cláudio: Um com o Alain Delon?

C. Magno: Com o Alain Delon, em que o Proust simula o suicídio para escrever sobre a morte… Mas quem era o autor do filme?

Mário Cláudio: Há um, que suponho que seja esse, que é de um alemão chamado Volker Schlöndorff.

C. Magno: Volker Schlöndorff… Não é esse. E o outro?

Mário Cláudio: Não sei. Este [«Swann in Love», 1984] é com aquela atriz italiana, que faz de Odette de Crecy, uma mulher muito bonita chamada Ornella Muti. O Proust é um caso também semelhante, nesta medida. É um homem que aparece, de repente, com aquela coisa monumental, esmagadora, e antes disso o que é que ele fazia? Fazia crónicas sociais. Colunas sociais: os bailes, as festas, as partidas para férias, as chegadas de férias nos jornais. Frequentava um meio elitista, dava-se muito bem com aquela gente, era um snob – porque ele não era um aristocrata, era um homem de origem judaica, era um judeu. Pouca gente sabe que o Proust era primo do [Albert] Einstein.

C. Natário: Atrás falou sobre o facto de Amadeo ter essa marca do Norte e de haver uma característica comum a outros autores do Norte, que têm uma componente rural às vezes muito acentuada e, eventualmente, a necessidade de ir dialogar com outros mundos e sair dessa ruralidade. O Amadeo faz isso, e tem de o fazer, senão não teria sido Amadeo. Curiosamente, o primeiro contacto físico com a cidade é em Coimbra, onde está pouco tempo, e depois vai para Lisboa. Mas de Lisboa ele diz que não gosta. Ele fala de Lisboa de um modo muito negativo. Só em Paris é que ele cheira, é que ele vibra, é que ele sente a cidade.

Mário Cláudio: Ele começa a antecipar experiências que iriam ser feitas depois, em termos de pintura.

C. Natário: Mas a cidade, para ele, curiosamente… É Paris, não é Lisboa. Os seus lugares, os lugares da sua alma, serão sempre esses: Manhufe e Paris.

Espólio Amadeo de Souza Cardoso I FCG-Biblioteca de Arte e Arquivos — ASC 01/29.

Mário Cláudio: Sim, o meio urbano era muito importante. Lisboa, nunca. Aqui ao Porto, ele vinha raramente – detestava a cidade, há uma carta em que ele diz isso –, para comprar materiais ao Araujo e Sobrinho, a papelaria. Era a única razão pela qual vinha ao Porto. Com Coimbra, teve uma relação também tangencial, mas é evidente que o universo de Manhufe o tocou muito. Eu vou muitas vezes a Manhufe, dou-me bem com os descendentes, sobretudo com a pessoa que me ajudou com o livro, o José Ernesto, sobrinho do Amadeo. Aliás, é muito interessante, porque era uma família muito grande, por isso ainda há sobrinhos e segundos sobrinhos. Aqui há tempos, telefonou-me a filha do José Ernesto: estava preocupada, porque uma produtora de vinhos da região, uma quinta vinícola ali da área tinha saído com uma casta, um rótulo, de uma marca de vinho que era “Casa de Manhufe”. Ela achava que aquilo era um atrevimento, mas eles podiam fazer isso porque a Casa de Manhufe não está registada como “Casa de Manhufe”. Toda a gente conhece a casa como Casa de Manhufe, mas não está registado, portanto qualquer pessoa se pode reivindicar dessa marca.

C. Magno: Mas existe [solução], do ponto de vista patrimonial, é uma questão de se ver. O INPI [Instituto Nacional da Propriedade Industrial] tem regras para isso, é uma questão de se confirmar.

C. Natário: O Mário Cláudio disse, em 2015, o seguinte: «o que me interessa no convívio com os outros é aquilo a que poderia chamar a alma dos outros; e essa alma tinha de ser escavada, porque se nos ficamos na superficialidade não conseguimos». E acrescenta: “Eu faço isso na escrita, escavo.”

Mário Cláudio: É, é o que eu acho que faço ou, pelo menos, tento fazer.

C. Natário: Então, fez isso com o Amadeo?

Mário Cláudio: Sim, claro.

C. Natário: E foi por esse escavar que foi “encontrar-se” com Amadeo que descreve?

Mário Cláudio: Sim, com tensões e sem tensões. E aquilo em que, realmente, a tensão é menor e há encantamento é a pintura. O resto não interessa, de facto.

C. Natário: Vamos então ao que interessa… Há pouco, o Mário Cláudio dizia que “não é possível escrever sobre Amadeo sem o conhecer”, mas um leitor que nunca tenha visto, que nunca tenha observado a obra de Amadeo, pode chegar lá através do seu livro?

Mário Cláudio: Eu acho que poderá ser um contributo, pode sempre ser um contributo, mas é impossível chegar à obra sem a ver.

C. Natário: Claro. Não estou a dizer “à obra”, estou a dizer “ao autor dessa obra”.

Mário Cláudio: É possível, depois de conhecer a obra, depois de ler o que eu escrevi e, eventualmente, ir aos lugares. Tudo isso são elementos que são contributivos para chegar a uma imagem daquilo que ele foi. Mas a verdade também é esta: é preciso não esquecer que a construção que fazemos de uma pessoa não resulta só do nosso convívio direto ou indireto com essa pessoa (indireto, no meu caso, porque eu nunca conheci fisicamente o Amadeo). Portanto, a memória com que eu fiquei do Amadeo, a imagem que eu tenho de qualquer pessoa é também colorida ou alterada por aquilo que as pessoas dizem sobre ela.

C. Natário: Então falaram-lhe muito mal do Amadeo como ser humano…

Mário Cláudio: Sim, não faltaram pessoas que tinham conhecido o Amadeo ou, sobretudo, pessoas em Paris que conheciam a viúva do Amadeo e que me davam uma imagem desagradável dele. E isso também contou para eu construir essa imagem.

C. Natário: Pois é, às vezes os testemunhos dos “amigos” são os piores. Na verdade, não temos razões objetivas para traçar do Amadeo esse retrato tão negativo. E creio que, entre outros documentos, a sua correspondência, dá-nos uma outra imagem…

C. Magno: E há o ajuste de contas aqui, então?

Mário Cláudio: Também há, há. Eu acho que ele era pouco inteligente…

C. Magno: Aliás, chega a dizer isso, praticamente.

Mário Cláudio: O problema é este: quando se é muito inteligente numa área, até se pode ser genial, muitas vezes é-se atrasado mental nas outras. A história, por exemplo, do [Enrico] Fermi, que era um cientista extraordinário e ele próprio dizia que não conseguia arranjar os fusíveis em casa dele.

C. Magno: Ou o Einstein, que não conseguia ler o [Franz] Kafka. Não entendia.

Mário Cláudio: Exatamente.

C. Natário: Amadeo é inegavelmente alguém que reflete a genialidade….

Mário Cláudio: Na pintura, eu acho que sim. É sempre relativo dizer isso, mas acho que sim. Para mim, é uma figura genial.

C. Natário: E isso é compatível com o que o Mário Cláudio disse há pouco sobre a consideração de Amadeo como um homem banal? Não acha que essa ideia de ele ser, enfim, uma pessoa pouco culta, machista, não acha que isso é algo que pode ser inscrito na mentalidade social do início do século XX (e não só)? Não que o desculpabilize, mas ele acabava um pouco por corresponder à imagem do arquétipo masculino da época e de algum modo aos requisitos daquilo que lhe era mais familiar. Ainda que ele não tenha deixado de ser um enfant terrible… apesar de tudo, porque ele sempre tentou libertar-se dos elementos mais conservadores da sua educação… Aliás é por aqui que, ou a partir daqui, que penso dever interpretar-se o artista, o criador. Se ele não tivesse ousado, se ele não tivesse sido capaz de se confrontar com os princípios intrínsecos a uma aristocracia (rural) e às expetativas familiares, de Manhufe, teria ido para Coimbra cursar leis e regressaria mais tarde para ser um, mais um, homem de leis, Presidente de Câmara ou algo parecido… para ser muito respeitado pela sociedade e pelos poderes.

Mário Cláudio: Eu acho que ele não teve tempo para se preocupar muito com isso, por um lado.

C. Natário: Não, não teve. Mas o pouco tempo que ele teve, sabemo-lo hoje, usou-o muito bem, parecendo até antecipar o fim do «seu» tempo… É importante não esquecer que ele morre com 30 anos. Quando diz que Amadeo é “machista”, “pouco culto”, e tudo o mais, ele tem 13, 14, 15 anos.

Mário Cláudio: Sim, mas a relação com a mulher é mais tardia.

C. Natário: Sim, ele vai para Paris com 19 anos.

Mário Cláudio: É, e ele tratava-a como – pelo menos, era o que diziam –, ele tratava-a como uma criada.

C. Natário: De uma maneira geral, os artistas , têm esse tipo de relação… Olhando para a História é o que se constata, por mais que isso se possa obviamente condenar.

Mário Cláudio: A não ser que a mulher seja também uma artista.

C. Natário: Mesmo aí… Se elas são artistas, podem até deixar de sê-lo ou parecê-lo… Será que Amadeo precisava de ter uma grande mulher a seu lado? Mesmo que Lucie o possa ter sido, o que não duvido, mas creio que Amadeo teria sido sempre o que foi.

Mário Cláudio: Estou a lembrar-me da [Maria Helena] Vieira da Silva e do marido e aí havia, claramente, uma subalternidade dele em relação a ela.

C. Magno: Ou o casal Delaunay [Sonia e Robert], que ele conhece.

C. Natário: Sim, e que têm uma grande influência no desenvolvimento posterior ou, pelo menos, na fase de afirmação de Amadeo.

Mário Cláudio: Mas ele era um homem tão estritamente conservador. Um conservadorismo que me irrita e que já não era compatível com a época.

C. Natário: Enfim, eu diria que essa foi a sua matriz, a sua educação, o seu ponto de partida. Mas essa foi uma das suas grandes tarefas e um dos seus maiores desafios… o que a sua obra claramente expressa.

Mário Cláudio: Estou a falar ao nível dos costumes. Vamos ver isto: a Sonia teve um affair com o Eduardo Viana – toda a gente sabia isto, inclusive o Robert Delaunay, o marido dela, que ela tinha um namoro com um amigo dele. Eles estavam ali em Vila do Conde e o Amadeo recusava-se a ir lá por causa disso. Talvez houvesse uma inveja, uns ciúmes, não sei…

C. Natário: Mas, tanto quanto se sabe, o Amadeo teve alguns affairs

Mário Cláudio: O problema não é o ter tido, mas sim como ele os viveu.

C. Magno: Isso tem a ver também com uma certa educação, com uma matriz genética.

Mário Cláudio: Sim, patriarcal.

C. Magno: E vê-se também isso numa personagem mais recente, mas que faz parte de um período decisivo em Portugal e que tem a ver com esse Portugal primitivo, rural, aristocrata também, que é o [Francisco] Sá Carneiro. Eu acho que este Amadeo, temperado por Paris, ou corrigido, reciclado por Paris, tem um deslumbramento… Porque se tu comparares a obra dele com a obra dos outros, o Amadeo é mais deslumbrado pelas cores de Paris do que qualquer um dos outros, nomeadamente dos espanhóis com quem ele se cruza. Por isso é que, para mim, aquele quadro, a «Entrada» (eu não sei se é dos primeiros ou dos últimos), é uma coisa fabulosa. E, de repente, tu vês ali Paris – aquilo só podia ser em Paris… É como o outro, como é? «Avant la corrida». Bom, e isso tem a ver com momentos, fragmentos que ele capta, congela, como se fosse uma fotografia, e diz: está aqui uma síntese.

Mário Cláudio: Quanto a isso, quanto à visão dele do mundo, eu não faço o mínimo reparo. Ele era, de facto, extraordinário. Nós perguntamo-nos, mas nunca saberemos, qual seria a evolução dele se tivesse vivido uns anos. Eu acho que ele tinha uma presciência de que ia desaparecer, por isso é que produziu tanto e coisas tão variadas durante aquele curto período de tempo. Como acho que aconteceu o mesmo com, por exemplo, o [Henrique] Pousão. Nós vemos a obra do Pousão e aquilo é genial; desvalorizado, ninguém sabe quem é o Pousão nesse mundo, não faz ideia nenhuma. Mas o Pousão morre com 26 anos e temos aquela coisa completamente magistral. Se ele tivesse vivido muitos anos, como é que seria? Não sabemos. Ele já devia saber que «ia desta para melhor», devia ter uma suspeita de que isso iria acontecer, o que provavelmente acontecia também com o Amadeo.

C. Natário: Sim, Amadeo poderá ter tido algum tipo de pressentimento… Há correspondência que nos coloca perante uma espécie de temor, uma quase inevitabilidade, até porque ele está a viver e conviver com a doença e a morte. Nesta época está em Manhufe, Amarante, já tinha feito todas as tentativas para regressar a Paris – a guerra não aconselha a que isso aconteça – e, desesperado com a situação e a epidemia que a família está a sofrer, decide ir, enfim, para Espinho (a estância balnear da moda, na época, essa mesma que [Manuel] Laranjeira, [Miguel de] Unamuno, entre outros, frequentaram). Quase logo depois, é a mesma epidemia que interrompe e põe termo à sua própria vida…

Mário Cláudio: Eu acho que sim. Ele deve ter vivido de uma forma um bocado paroxística, devorou a vida o mais que pôde.

C. Natário: Sim, todo o seu percurso aponta nesse sentido, desde criança…Eu diria que uma das missões que a obra do Mário Cláudio traduz é uma clara ponte entre a Literatura e as Artes. Eu diria que, claramente, há um diálogo interartes, na obra do Mário Cláudio. Eu tive sempre uma grande simpatia, imagine, por «Tocata para dois Clarins», foi sempre uma das minhas obras de referência. Eu vejo-o nessa obra, mas vejo-o mais em «Amadeo», o Amadeo que eu também fui descobrindo desde a minha infância – por ser de Amarante, por ouvir diversas pessoas, mas também meu pai, ou principalmente o meu pai, que conheceu bem aquele universo de Manhufe… Esse universo (a paisagem, os espaços, a casa em particular), na sua obra, «Amadeo», para mim não é ficcionado, é real. É aquele que eu, desde criança (e foi mesmo desde criança), tinha descoberto, ou ia descobrindo, paulatinamente…

«Carlos Magno e Mário Cláudio» (13/04/2018). Foto: Carlos Magno.

Mário Cláudio: Há sempre um fenómeno de duplo, de projeção de um duplo, isso é inevitável.

C. Magno: Ou de um ‘eu profundo’ proustiano invertido.

Mário Cláudio: Quando [Gustave] Flaubert diz “Madame Bovary c’est moi”, é também isso.

C. Natário: (risos).

C. Magno: Mas eu acho que tu és muito mais fascinado no ‘eu profundo’ do Proust. Proust fala do ‘eu profundo’ e tu adotas a expressão para o teu caso, e eu acho que isso acontece sobretudo quando és cruel.

Mário Cláudio: O que acontece muitas vezes.

C. Magno: Cruel com as personagens, tal como a Agustina.

C. Natário: Eu vejo isso claramente…

C. Magno: Aliás, se eu tivesse de escolher dois autores contemporâneos, que são nossos e que são universais… Que estão aqui, em Venade… A casa de Venade ou a casa de Paris… É curioso. Só um pequeno aparte: um dia perguntei à Agustina “Ouça lá, eu tenho a noção que grande parte dos seus romances se passam na Ramada Alta”. E ela diz-me assim: “Ó Carlos, na minha vida passa-se tudo na Ramada Alta”. E eu digo assim: “Mas há personagens, referências geográficas?”. “É capaz de não haver muitas, mas aquilo, para mim, é o centro.”

C. Natário: Entre Londres, onde o Mário Cláudio esteve, Venade, Porto… o que escolhe?

C. Magno: Ele não é londrino, o Mário Cláudio. É italiano, é…

Mário Cláudio: Ora bom, eu vivi em Inglaterra durante muitos anos, mas não vivi em Londres. Embora conhecesse bem Londres, ia lá a Londres. Houve uma altura em que ia todos os dias a Londres, mas viajava duas horas para lá, duas horas para cá. Vivia em Sussex, numa aldeia. Aí havia, realmente, uma ligação à cidade, mas Londres é uma cidade que não se pode amar, como se pode amar Paris. É uma cidade esmagadora, pode ficar-se aterrorizado com Londres, entrar em pânico com Londres, mas não se pode amar, não é amável. Paris é. Paris é, porque é afável. Isso tem a ver com muitos fatores.

C. Natário: Então, Porto e Venade? Para Amadeo, era Manhufe e Paris… Mas avancemos: é Mário Cláudio que escolhe o galgo, aquele quadro do Amadeo [«Os Galgos»], para a capa do seu livro?

Mário Cláudio: Não, isso é uma opção do editor.

C. Natário: Que pena…

Mário Cláudio: [rindo-se] Dava-lhe direito a uma pergunta…

C. Magno: Agora deixa-me dizer-te: eu redescobri este livro, redescobri o Amadeo contado por ti 30 anos depois, porque a Celeste [Natário] me obrigou a ler o livro. Não o li como o li na primeira vez, naturalmente; também não o reli como um clássico, no sentido de estar sempre a ler. Mas fui a três ou quatro momentos que marquei com um post-it: o momento de que a guerra não ia durar muito é, para mim, um momento crucial, quando tu dizes “A guerra desabrocha com o prognóstico de que não duraria” muito tempo.

Mário Cláudio: Referes-te à Primeira, claro.

C. Magno: É um momento… Sobretudo, porque há expetativas que tu, como cético, não acreditas. Tem a ver com esse lado cruel, tem algo de observador lúcido da realidade, da atualidade. Com uma certa amargura, também, e com uma certa ternura – juntas, mas… Ternura com os teus e com as pessoas que te compreendem e, ao mesmo tempo, quase que diria, um desprezo moraviano [Alberto Moravia]. Mas é [Jean-Luc] Godard que lhe dá aquela [projeção].

Mário Cláudio: Esse é o desprezo dentro do casal.

C. Magno: Mas há ali um desprezo intelectual, também.

Mário Cláudio: Sim. Em mística, há uma palavra que é ‘acídia’, que é essa acidez que as pessoas às vezes têm em relação ao mundo e que os místicos chamam também de ‘secura’. Quando o ser humano nos irrita, quando A, B ou C nos irrita – é o ser humano. Quando desacreditamos do ser humano.

C. Natário: Existe muita dessa acidez na sua obra…

Mário Cláudio: Existe. Quando, por exemplo, um amigo nosso de há muito tempo nos prega uma partida em que a gente diz “Não pode ter sido”.

C. Natário: Sabe que essa acidez existe sobretudo em «Amadeo», no livro…

Mário Cláudio: Pois, existe. Mas isso acontece: “Não pode ter sido, esse tipo nunca poderia ter feito isso. Quem fez isto?”. Foi ele mesmo quem fez. Ora bom, isso leva-nos, muitas vezes, a desacreditar o ser humano – se este tipo faz, todos nós somos iguais. E isso é uma coisa horrível, sentir isso.

C. Magno: Tu já tens idade para não teres essas ilusões.

Mário Cláudio: Sim, não tenho ilusões, mas acabamos sempre por acreditar. Acreditamos, às vezes, até no [Donald] Trump, numa coisa ou outra que ele diz. Então na área da política isso é constante. Somos capazes de apoiar entusiasticamente uma figura que nós sabemos que vai fazer coisas extraordinárias e, de repente, aquela figura é um traste…

C. Natário: Importam-se que voltemos a «Amadeo», ao livro?…

Mário Cláudio: [rindo-se] Não, Amadeo não era um traste.

C. Natário: Não, claro, eu sei que não pensa isso.

C. Magno: Era só rude.

C. Natário: Mesmo rude, sabendo da subjetividade de uma apreciação como esta, eu não sei se seria. A sê-lo, seria um “falso rude”.

C. Magno: Era rude em Paris.

C. Natário: Não sei… Mondigliani, os Delaunay e todas aquelas pessoas do meio artístico que iam a casa e ao ateliê do Amadeo não o deveriam achar rude.

C. Magno: Os tipos que vieram dos Estados Unidos para Paris naquela altura eram considerados rudes pelos parisienses. Estamos a falar do [Henry] Miller, e estamos a falar…

Mário Cláudio: Há uma coisa que não podemos ignorar: no meio dos artistas portugueses e, se calhar, também dos franceses (mas daqueles que estavam cá em Portugal, do grupo do Delaunay, em Vila do Conde, e etc.), o Amadeo era o menino rico. Os outros eram todos uns pés-rapados e deviam olhar para ele com uma certa reverência, inveja… Uma mistura de coisas. Eu não acredito, não há nenhuma notícia, que ele tenha levado essa gente a Manhufe, porque devia ser uma gente…

C. Magno: … que não tinha dignidade.

Mário Cláudio: E que a família dele achava a ‘cambada das Artes’. Imagina-se como era a Delaunay, como ela se vestia com aqueles vestidos, aqueles sapatos…

C. Natário: Sabemos que com a própria Lucie [Lúcia Pecetto] ele teve alguns cuidados…

C. Magno: Claro, preparou a família para isso.

Mário Cláudio: Exatamente. Não era fácil. E era muito bonita, a Lucie.

C. Magno: Já pensaste em fazer qualquer coisa na atualidade com o «Amadeo»?

Mário Cláudio: O quê?

C. Magno: Eu gostava de ver isto num palco. Gostava, mais do que num cinema, de ver isto num palco.

C. Natário: Seria incrível num palco…

Mário Cláudio: Sim, mas não sou eu que vou fazer isso. Haverá alguém que o possa fazer, alguém com qualidade.

C. Magno: Tem de ser alguém com capacidade de fazer diálogos ou monólogos.

C. Natário: Se alguém pegasse no «Amadeo» para levar ao palco… Foi preciso esperar pela Gulbenkian e por 1983 – como é que foi possível? – para nos aproximarmos do Amadeo e para pensar o Amadeo. Acho isso inacreditável. Não fosse a Gulbenkian (sem esquecer aqui o estudo pioneiro de José Augusto França, «Amadeo de Souza-Cardoso: o português à força», de 1954) e ele continuaria por se descobrir. Na Holanda, o centenário do Mondigliani, em 2020, começou já a ser preparado…

Mário Cláudio: Eu ainda me lembro do Jaime Isidoro, que foi das primeiras pessoas a descobrir o Amadeo e foi a primeira pessoa a fazer uma exposição do Amadeo, na Galeria Alvarez (na primeira, na Rua da Alegria). Ele contava-me que encontrou quadros do Amadeo a tapar vidros partidos das janelas. Para não falar daqueles que foram queimados.

C. Natário: Há um elemento no «Amadeo» que me coloca num mundo de memórias, nesse Norte de que falou há pouco, nessa forma peculiar que o Norte pode ter e que o Mário Cláudio também reconhece, que é a casa. A casa e, dentro da casa, a cozinha, que o Mário Cláudio descreve… Sei que a palavra “magistral” já foi usada, mas eu acho que a palavra é realmente essa: magistral. Parece que Mário Cláudio foi criado naquela cozinha.

Mário Cláudio: Não, mas aquela cozinha também é uma cozinha extraordinária, não é uma cozinha normal.

C. Magno: É, é a grande fábrica da casa.

Mário Cláudio: Exatamente, anda tudo à volta daquilo. Aquela cozinha tem um caráter genesíaco, é o ventre, é o ventre materno – está lá tudo.

C. Natário: Eu diria que o «Amadeo» pode estar entre a cozinha de Manhufe e aquele quadro da máquina registadora [«Título desconhecido (Máquina registadora)», 1917].

C. Magno: Sim, é verdade, é bem visto.

Mário Cláudio: É, é muito interessante isso.

C. Magno: É, porque na cozinha há galos decapitados, que vão a pingar sangue, degolados.

C. Natário: E o Mário Cláudio vê tudo isso, vê até os segredos da cozinha, os segredos do próprio Amadeo, até porque Mário Cláudio escreve: “não há caminho, não haverá jamais, que a ela não vá ter”. À casa, à cozinha de Manhufe…

Mário Cláudio: Eu tive uma infância que passou por uma cozinha dessas, no Minho. Não sei se vocês tiveram.

C. Magno: Eu tive, na casa do monte.

C. Natário: Sim, eu também tive. Quando o Mário Cláudio diz: “A Casa é uma teoria volumétrica por entre a vegetação, maior do que todo o Mundo, impossível de arrumar.” Esta é, realmente, a Casa, a casa de cada um de nós, o que cada um de nós mais profundamente é ou pode ser…

Mário Cláudio: A casa que nós construímos a partir das nossas memórias e que, às vezes, não é uma casa só, são várias.

C. Magno: Mas tu aqui és muito fiel à cozinha de Manhufe.

Mário Cláudio: Eu acho que sim, espero bem que sim.

C. Natário: O modo como descreve esta cozinha, é quase de arrepiar…

C. Magno: Eu não a conheço, mas pelo que vejo… Sabe que há uma grande trendsetter chamada Marian Salzman que, há cerca de 20 anos… Ela ainda está viva e continua a fazer projeções sobre tendências, e há uns anos disse que as casas iam ter quartos pequenos e cozinhas grandes, e que as pessoas não iam ter salas de jantar, porque a cozinha iria ser o centro da casa outra vez. Em Nova Iorque, não é aqui, em Nova Iorque! Convidar amigos para a cozinha, trabalhar na cozinha, fazer tudo na cozinha, o primeiro sítio para se pôr internet (na altura em que os hotspots ainda eram curtos) era na cozinha, que é o sítio onde tudo acontece.

Mário Cláudio: A cozinha resolve muitos problemas. A cozinha resolve não só o problema do estômago e da alimentação, como resolve o problema da temperatura (aquece no inverno, pode ser fresca no verão). Tem isso tudo.

C. Natário: E resolve, ou não resolve, outros que estão para além dos que referiram, mas com eles relacionados… A cozinha de Manhufe guardou o segredo do Amadeo, até ao fim. O segredo do futuro.