AMADEO E O “DESDÉM FLAUBERTIANO”: UM OUTRO DIÁLOGO ENTRE A PINTURA E A LITERATURA

Maria Luísa Malato

Em carta a Manuel de Laranjeira – datável, segundo José Augusto França, de fins de 1908 ou princípios de 1909 – Amadeo de Souza-Cardoso dizia sentir um “desdém flaubertiano” para com a mediocridade que o rodeava (1972: 20).

Ainda que escrita em Paris (ou até porque escrita em Paris), a expressão “desdém flaubertiano” revela o quanto Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918) se cria impermeável ao mundo artístico que o rodeava. Porquê “flaubertiano”? O substantivo “desdém” bastaria para expressar o desprezo pela “opinião pública”. De resto, muitos viam nele um dandy aprumado, o “janota de Manhufe” nas palavras irónicas de António Pedro (2016, p. 57). Mário de Sá Carneiro teria privado com Amadeo em Paris e diz, talvez com “desdém”: “Sei que é um tipo blagueur, snob, vaidoso, intolerável, etc. Parece que não se pode ser cubista sem ser impertinente e blagueur” (apud Queirós, 1988, p. 22). Não que Mário de Sá-Carneiro fosse imune ao dandismo e à boutade (Eiras, 2014, p. 129 ss.). Mas Sá-Carneiro não será testemunho único. Também Diogo de Macedo, que tão seu amigo se revelará, observa sobre a sua primeira impressão: “pela minha parte, ele parecera-me pedante e mais nada. Vim a saber por terceiros que as suas atitudes eram nele uma defesa de choque, usando de petulância como couraça para o que desse e viesse” (Ibidem). Em carta ao tio, Francisco Cardoso, Amadeo fala dessa impressão que ele causa, e que é afinal um “estado” assumido:

Há gente que chama ao meu estado uma pretensão para sair fora do vulgar – que pensem o que quiserem, indiferente me é – eu tenho as minhas razões e bastam. Eu sei o que agrada em geral – eu na generalidade desagrado. Até certo ponto não é menos lisonjeiro?” (apud Queirós, 1988, pp. 12 e 15, itálico nosso).

Nas cartas para os amigos, Amadeo mantém as fórmulas de despedida e saudação. Ao contrário de Almada, Amadeo nunca trata os Delaunay, nomeadamente Sónia, com a mesma provocante familiaridade. Mantém mesmo um distanciamento que se acentua com o tempo: “je serai content d’avoir toujours de vos nouvelles”, “cordialement”, “sentiments respectueux”, … (cf. Ferreira, 1981, cartas de 1916, passim).

Mas Amadeo fala de um “desdém flaubertiano”. Sem dúvida, o sentimento de “superioridade” de Amadeo é parecido com o de Flaubert. Como um Philante ao seu amigo misantropo, Maxime Du Camp aconselha o seu amigo Flaubert a jogar o jogo para chegar a ser conhecido, arriver à être connu.

Arriver? – à quoi? – A la position de MM. Murger, Feuillert, Monselet, etc., etc., Arséne Houssaye, Taxile Delord, Hippolyte Lucas et 72 autres avec ? Merci. Etre connu n’est pas ma principale affaire. Cela ne satisfait entièrement que les très médiocres vanités. […] Je vise à mieux à me plaire.” (Flaubert, 2001, p. 97, 26/6/1852).

Flaubert é à sua maneira um “misantropo”. Na pena dos Goncourt, ele é “o urso de Croisset”, avesso ao cerimonial dos salões de Paris, arredado da palavra que se publica, que necessariamente tem de se publicar. O sentido publicitário de Almada Negreiros, amigo de Amadeo, aproxima Almada Negreiros de Philante, amigo de Alceste, e de Maxime Du Camp, amigo de Flaubert. Também Almada tenta ensinar Amadeo a “subir na vida”, as regras do supremo jogo, os truques da publicidade. Mas Amadeo não parece alinhar totalmente nas estratégias de Almada, desconfia um pouco sempre das provocações futuristas e de tudo.

Amadeo tinha um dia escrito: “Que importam as aparências sociais, as convenções, a burguesia? Oh desdém sublime […]” (Amadeo apud Cardoso, 2016, p. 44).

1. Entregar a bolsa

Seria ingénuo pensar que Gustave Flaubert e Amadeo de Souza-Cardoso não querem vender ou ser conhecidos. Amadeo, depois de abandonar o curso de Arquitetura em Paris, tenta em algumas cartas explicar à família que, malgrado ser pintor, tem intenção de vender quadros, à semelhança de um agricultor que quer vender o que produz. E Flaubert respondera às exortações de Du Camp que não se importa de vender “alperces”, na condição de estarem maduros. Mas que mais valia morrer como um cão, se tivesse que vender cedo demais uma frase que não estivesse madura (Flaubert, 2001, p. 97, 26/6/1852; Koster, 2000, p. 27):

Ingénuo também seria pensar que este “desdém flaubertiano” não vem sem mágoa ou constrangimentos, falemos nós de Alceste, de Flaubert ou de Amadeo.

Se a mediocridade não os aflige, torna-os certamente melancólicos: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour entreprendre de ressusciter Carthage! C’est là une Thébaide où le dégoût de la vie moderne m’a poussé” (apud Koster, 2000, p. 34). E como se a arte fosse, também para ele, um fatalismo que simultaneamente subjuga e liberta, Amadeo escreve à mãe no outono de 1906, por ocasião da sua partida para Paris: “Os meus destinos só estão bem comigo. Ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado” (apud Freitas, 2016, p. 18). Falamos pois de um comum processo, para ambos conscientemente doloroso, quanto ao aniquilamento e sobrevivência do Eu. O “desdém flaubertiano” implica indiscutivelmente um risco. Não é provocado pela autoestima do pretensioso – antes se relaciona com uma crise identitária, uma heteroestima que dispersa e enfraquece as certezas do Eu à medida que o Eu se fragmenta em todas as máscaras possíveis:

Je suis las de tout ce qu’on dit sur l’art, sur le beau, sur l’idée, sur la Forme. […] Il est vrai que je passe actuellement toutes mes matinées avec Aristophane. […] A mesure que je me détache des artistes je m’enthousiasme davantage pour l’art. J’en arriverai pour mon propre compte à ne plus oser écrire une ligne, parce que de jour (en jour) je me sens de plus en plus petit, mince, et faible. […]. La mer paraît immense vue du rivage… Montez sur le sommet des montagnes, la voilà plus grande encore. Embarquez-vous dessus, tout disparaît : des flots, des flots… Que suis-je moi, dans ma petite chaloupe!” (Flaubert, 1973, p. 471, carta de 17/9/1847, itálico nosso).

A uma carta do tio que o crê aperfeiçoando a técnica, Amadeo responde: “A técnica de que me fala é coisa em que nem penso. Fixar a ideia é parar muito aquém do fim. Qualquer aprende. […] Enfim, para mim, os tais artistas da técnica acabaram” (apud França, 1986, p. 27). Impossível que fica a profissão de arquiteto – Amadeo vai justificando aos familiares a escolha da incerta profissão de pintor, em termos que evocam ainda os de Flaubert, quando fala dos seus “entêtements héroiques”, “sans aucune arrière-pensée d’argent ou de tapage” (Flaubert apud Koster, 2000, p. 30):

[…] tenho atravessado momentos torturantes de ansiedade: há mais de quatro meses que o meu espírito luta em batalhas tremendas, esperançado numa vitória brilhante e numa resistência heroica. Tenho sentido momentos em que tudo me aparece de uma esterilidade negra, de impotência realizadora, de gasto, de inútil; outros de irradiações celestes, de fecundidade imensa, de me abrir ao criador como a flor se abre ao sol. E entre isto choques de sentimentos, massacres de ideias, aonde pensamentos velhos resistem e pensamentos novos de formam de pensamentos velhos” (Amadeo apud Freitas, 2016, p. 29).

Mas que haverá de fiasco na minha existência? Eu, quando a consulto, acho-a, ao contrário, razoável e útil porque consegui libertar-me dos meios de vida burguesa, tacanha de espírito e sentimento […]” (Amadeo apud Cardoso, 2016, p. 44).

No sentido em que Flaubert e Amadeo concebem o espaço de criação, as margens são bem mais interessantes que o centro. Paris é, para Flaubert, o lugar do jogo hipócrita a que não deve ceder. Pede ele a Louise Colet: “A l’avenir, et je t’en supplie, ne me parle plus de ce que l’on fait dans le monde, ne m’envoie aucune nouvelle, dispense moi de tout article, journal, etc. Je peux fort bien me passer de Paris et de tout ce qui s’y brasse […]” (Flaubert, 2001, p. 77, 29-30/5/1852). Também Paris é para Amadeo, “muito água morna”, a crer ainda numa carta de 1913 (apud Freitas, 2016, p. 26). Lisboa somente a ilusão de ser centro: “aqui respira se, em Portugal abafa-se”, escreve se compara Paris a Lisboa (Ibid: p. 18). Poder-se-ia acreditar que a terra natal é, para ambos, um mundo fechado, de que desejaram fugir. Mas, na verdade, são viajantes. Flaubert refugia-se em Croisset como num ventre de que tem de sair para renascer. O mesmo parece suceder a Amadeo, quando descreve Manhufe, ele que se define como caminheiro. Assim sendo, para ambos estas terras de província são também úteros…

[…] el espacio para padecer la nostalgia por una vida fácil y sentimental que sin lugar a dudas non se há tenido. Un espácio amable, un mundo pequeño y dominado que se quiere ver como habitable y que lo es quando cuando uno puede llevar una vida própria e independente; pero que cuando esa vida es bovina no es más que una pacotilla poética […]” (Sánchez-Ostiz, 1994, p. 12).

À medida que aproximamos os dois textos epistolares, consolida-se a ideia de um diálogo profundo entre Amadeo e Flaubert. O adjetivo “flaubertiano” é bem mais do que um simile. Indicia um diálogo de Amadeo com Flaubert, reagindo em tempos diferentes a uma semelhante tensão entre academismo e vanguardismo, centralidade e marginalidade, influência e originalidade. Flaubert parece legitimar para Amadeo uma solidão teimosa, sem outros interlocutores que não os escritores passados. Sendo Amadeo um “leitor compulsivo” (apud Freitas, 2016, p. 21), deve ter lido a recolha póstuma da «Correspondance» de Flaubert, já que uma primeira edição das suas cartas, em quatro volumes, foi saindo entre 1887 e 1893 – e é quase só através dela que se tem consciência da dimensão do desdém de Flaubert pela mediocridade. Mas na correspondência de Flaubert fica também evidente o quanto esse seu desdém se fortalece na crença de uma fatalidade superior a que, segundo Flaubert, ele deve obedecer, malgrado as mágoas, os vazios, as dúvidas: “[…] il me semble en ma conscience que j’accomplis mon devoir, j’obéis à une fatalité supérieure, que je fais le Bien, que je suis le Juste” (Flaubert, 2001, p. 58, 24/4/1852).

«Ex–Libris» — Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) — 77DP337 — © Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa / Museu Calouste Gulbenkian — Coleção Moderna.

Significativamente (mas sem que nessa significância não haja acaso), também Amadeo vai sublinhando “um destino a cumprir”, na sua correspondência para a família: “A vida deu-me um destino a cumprir” (apud Cardoso, 2016, p. 44). Mas não pode ser um acaso que seja em 1912 que Amadeo define com alguma estabilidade o seu ex-libris: um castelo de duas torres simétricas, tendo na base um lema que repete o verbo usado por Flaubert: “Accomplir c’est vaincre”.

2. Repassar à mão

1912 é um ano nuclear se considerarmos a breve década em que Amadeo se dedicou obcessivamente à pintura (entre 1908, ano em que abandona o Curso de Arquitetura, e 1918, ano da sua prematura morte, em Espinho, vítima do surto de gripe espanhola no final da guerra).

1912 é o ano da edição do álbum «XX Dessins». O ano em que Amadeo de Souza Cardoso viaja durante vários meses pela Bretanha, visitando os espaços familiares a Flaubert, como Rouen e a região da Finisterra, pintando motivos marinhos, seduzido pelos efeitos de luz especulares dos céus carregados. O ano em que Amadeo expõe no XXVIII Salon des Indépendents e no X Salon d’Automne. Mas sobretudo o ano em que passa à mão um conto de Flaubert, «La Légende de Saint Julien L’Hospitalier» (de 1877), ilustrando o texto manuscrito.

Flaubert escreve «La Légende» em 1857, mas há muito que aquele tema lhe não sai da memória. Desde criança, quando lia a história nos vitrais da Catedral medieval de Rouen. Foi acumulando hagiografia, livros populares e investigações históricas sobre o assunto, nomeadamente os estudos de M. Langlois sobre a igreja de Notre-Dâme de Caudebec, que compara os vitrais sobre S. Eustáquio e S. Humberto com os existentes em Rouen sobre S. Julião.

Porque se interessará tanto Flaubert pelo história deste santo? São Julião é criança fadada pela fortuna, amada pelos pais, servido por vassalos. Descobre um dia que o prazer da caça lhe satisfaz o prazer de matar. Sacrifica um ratinho, esgana uma pomba, abate uma família de veados, dizima uma floresta, por erro mata os pais… Mas por mais que fuja não consegue fugir de si. Um dia, vivendo ele como ermita, lhe aparece um leproso que tudo lhe pede e a quem ele tudo dá para nele acalmar a sede, a fome, o frio, e é agarrado a ele que Julião sobe ao céu. Flaubert demora-se na descrição da ferocidade de Julião, provando com ela a inutilidade da fuga.

Porque se interessará tanto Amadeo pelo livro de Flaubert? Amadeo traça com minúcia os quadros iniciais, do jovem caçador, do velho santificado, tão parecido afinal com o velho pai que tinha morto. Amadeo valoriza sem sombra de dúvida alguns dos quadros que prepara para fazerem parte do livro manuscrito de Flaubert. É possível, desde logo, estabelecer uma relação clara entre as ilustrações de Amadeo para «La Légende» e as participações de Amadeo no prestigioso Armory Show, nos EUA. Mas, mais do que uma cópia, «La Légende» parece-se com o abecedário de uma bordadeira. Corresponde a registo mnemónico sobre a complexidade dos processos criativos. Nele se juntam motivos portugueses e bretões, leituras de obras de arte de diferentes tempos e estéticas: o tema das caçadas, a evocação dos galgos, dos cavalos, dos cavaleiros, ou dos emblemas genealógicos, as casas atorreadas, como a de Manhufe, já presentes nos primeiros trabalhos do autor, a que se vão juntando harmoniosamente a miniatura medieval, o desenho naïf, as experiências cubistas, as incursões no abstracionismo, a lembrança daqueles retratos de pobres loucos que povoam a literatura de Pascoaes e de Brandão e os que ele próprio irá pintar em 1914-1915, os figurinos dos bailados de Diaghilev, algumas revisitações da arte oriental, dos primitivos flamengos, etc., etc…

Representa bem a “arte de furtar” de que falava Jorge Pinheiro a propósito da pintura de Amadeo, tornando evidente que a História de Arte é “permanente história de citações e de furtos, porque toda a narrativa é um discurso sobre o passado, ou se quisermos, sobre a morte” (Pinheiro, 2016, p. 77).

Ao repassar à mão um texto impresso, Amadeo dá a cada letra uma nova forma gráfica, fazendo seu o que era de outro. Não era nenhuma invenção de Amadeo: encontramos o mesmo exercício plástico em outros pintores, desde logo nos Delaunay (a correspondência entre Souza-Cardoso e Sónia Delaunay, fala por exemplo de um livro de Rimbaud que Sónia teria ilustrado, hoje perdido. Ainda bem que se não perdeu o de Amadeo: é belo, estranhamente perfeito Os críticos dizem-no “obsessivamente elaborado”, “com a obediência de um monge copista medieval”, “um subtilíssimo exercício autorial” (Freitas, 2016, p. 22), “com uma paciência antiga” (França, 1986, p. 44). Para além da aprendizagem da confluência, trata-se aqui de uma aprendizagem da fluência: “como um rio que toma afluente” (apud Freitas, 2016, p. 19), tinha já dito Amadeo, à partida para Paris, tendo a viagem como o livro dos artistas.

O-conto-de-Flaubert-nas-mãos-de-Amadeo, não obedecendo a qualquer fragmentação em parágrafo ou frase, flui de folha em folha, mas como se as vagas tivessem um ritmo. Amadeo parece dar relevo, não só às primeiras palavras, como bem demonstrou Maria Filomena Molder (2006, pp. 20-47), mas também às últimas, aquelas a que se abandona o leitor antes de voltar a ler a moldura das imagens: “épanouissait”, “moine”, “idolatre”, “autel”, “ermite”, “brouillard”, “entendue”, “destiners”, “valet”, “manteau”, “archevêque”, “personne”…: as últimas palavras em cada página, aquelas que a memória retém antes de percorrer uma vez mais as imagens e virar a página, remetem muitas vezes para uma viagem iniciática solitária de que elas fossem hieróglifos de uma respiração: exposição e interiorização, solidão e sacrifício, ocultação e revelação, identidade e busca…

Quem é quem? De quem falamos nós quando copiamos alguma coisa?

Françoise Neau publicou já algumas reflexões sobre a função catártica de «La legende», escrito numa fase conturbada da vida de Flaubert, atormentado pela morte e pelos dilemas pessoais do passado (2004, p. 99 ss.). Mas não nos parece impossível retomar agora idêntico raciocínio para Amadeo. Os “falcões libertos, silentes, égide e identidade de Amadeo/ Julien” (Molder, 2006, p. 27), ambos pequenos príncipes de uma pequena corte, de pais benévolos (ainda que desiludidos com o destino dos filhos), ambos caçadores, ambos fatalmente guiados por um impulso que tentam em vão abafar, depois domar, ambos levados pela vertigem da vida e da morte. Ambos usando a arte como forma de suplantar o tempo e como estratégia retórica, explicando a quem nos ama que não podíamos nunca ter deixado de fazer o que fizemos, porque obedecemos a uma fatalidade superior e o único caminho possível é continuar o caminho: “Meu Pai está satisfeitíssimo comigo, o livro de Saint Julien tem-no maravilhado” (Amadeo apud Cardoso, 2016, p. 44).

Talvez Amadeo esteja somente a repetir intuições, sobrepondo olhares, organizando-os entre si, eliminando a barreira que existe entre sujeito e objeto, afinal função da arte.

[…] Notre œil aperçoit les traits de l’être vivant, mais juxtaposés les uns aux autres et non pas organisés entre eux. L’intention de la vie, le mouvement simple qui court à travers les lignes, qui les lie les unes aux autres et leur donne une signification, lui échappe. C’est cette intention que l’artiste vise à ressaisir en se replaçant à l’intérieur de l’objet par une espèce de sympathie, en abaissant, par un effort d’intuition, la barrière que l’espace interpose entre lui et le modèle.” (Bergson, 2013, pp. 123-4)

«L’Evolution Créatrice», de Bergson, que Amadeo adquiriu logo em 1907, pode servir para reler agora a passagem do texto impresso de Flaubert, escrito pelo seu punho em 1856, para o texto escrito agora pelo punho de Amadeo, em 1912.

[…] Notre œil aperçoit les traits de l’être vivant, mais juxtaposés les uns aux autres et non pas organisés entre eux […].”

A questão pode não ser lida somente como inspiração do Simultanismo dos Delaunay, pois também no nosso olhar se guardam os olhares que imaginamos justapostos ao longo da história. Trata-se antes de uma reorganização do leitor/pintor, aquele que lê/vê, empenhado em buscar a beleza num pormenor banal: o óbvio que ninguém pressente porque ninguém se deu ao trabalho de lhe suspeitar as camadas. Flaubert, ao escrever «La Légende» em 1857, ainda reorganiza as imagens que ficaram na sua memória desde a sua infância: os vitrais da Catedral de Rouen, que desde o século XIII narravam a história de São Julião, caçador sedento de sangue e de santidade; a visita de estudo de M. Langlois, à igreja de Notre-Dâme de Caudebec, comparando os vitrais sobre S. Eustáquio e S. Humberto com os existentes em Rouen sobre a vida de S. Julião. A entrada de Lucien, personagem de «Mme Bovary», e o olhar distraído do amante. A metáfora obsessiva do “vitral”, lente que transforma a luz que por ele passa:

J’étais comme les cathédrales […]. Entre le monde et moi existait je ne sais quel vitrail peint en jaune, avec des raies de feu, et des arabesques d’or, si bien que tout se réfléchissait sur mon âme, comme sur les dalles d’un sanctuaire embelli, transfiguré et mélancolique cependant. » (Flaubert apud Tooke, 2000, pp. 19-20, cf. p. 231 ss.)

Numa carta a Le Poitevin, amigo de juventude, Flaubert fala longamente desta sua fome de ver, ver bem, do prazer, da felicidade profunda que experimenta quando consegue ver : “Je regarde quelquefois les animaux et même les arbres avec une tendresse qui va jusqu’à la sympathie: j’éprouve presque des sensations voluptueuses rien qu’à voir, mais quand je vois bien. ». Pede-lhe então que veja, que veja bem, por ele: “étudie-moi chaque détail, fais-toi prunelle” (Flaubert, 1973, p. 234).

E essas palavras ecoam hoje, ainda para quem lê a «Correspondência» de Flaubert. “Le Poitevin, c’est moi”, interioriza então o leitor.

3. Escrever com pincéis

Ao estudar a ligação de Flaubert às artes pictóricas, Adrianne Tooke começa por sublinhar que o interesse de Flaubert pela pintura ultrapassa o lugar-comum do escritor-retratista de pessoas ou paisagens. Concordando com Debray-Genette, Adrianne Tooke não reencontraria em Flaubert o que é evidente em Balzac: seria impossível a um pintor fazer um quadro de Félicité baseado no que Flaubert diz sobre a protagonista de “Un coeur simple” (Tooke, 2000, pp. 1-2).

O que parece fascinar Flaubert não seria pois o retrato estático, da reprodução objetiva, realista-naturalista, mas uma “pintura de ideias”, sendo as reflexões de Flaubert sobre Pintura uma aprendizagem do efeito de arte que Flaubert deseja recriar na Literatura. Como se a Literatura fosse para ele uma arte pensável através da “arte de ver”. Tal nos parece ser ilustrado pela viagem de Flaubert aos lugares frequentados por outros escritores. Nomeadamente aquela viagem que Flaubert descreve em «Par les Champs et Par les Grèves», o momento em que entra no quarto do pequeno René, num castelo da Bretanha:

J’ai pensé à cet homme qui a commencé là et qui a rempli un demi-siécle du tapage de sa douleur. […] Rien ne dira les gestations de l’idée ou les tressaillements que font subir á ceux qui les portent les grandes œuvres futures ; mais on s’éprend à voir les lieux où nous savons qu’elles furent conçues, vécues, comme s’ils avaient gardé quelque chose de l’idéal inconnu qui vibra jadis.” (Flaubert, 1921, pp. 244-245)

Na pintura de Amadeo, há desde muito cedo a sedução por uma pintura do movimento, os galgos que ondulam, as lebres que saltam, as próprias montanhas do Marão, “que têm um estilo de linhas que dá vontade de lhes passas a mão pelo dorso” (apud Freitas, 2016, p. 20). Mas na sua pintura afirma-se, talvez mais claramente a partir de 1911-12, aquilo a que Flaubert chamaria em “un style cannibale”, referindo-se à sua própria forma de evolução criadora. Tudo é digerido. Como na lenda de São Julião, o caçador é ainda um animal que caça. Amadeo assume que se confunde com os animais que matou. Não os consegue eliminar: fazem parte dele, a todo o instante lhe aparecem. Ao passar pela catedral de Rouen, ao copiar o texto de «La Légende», Amadeo vai talvez aprendendo esta voluptuosidade de reorganizar os espaços justapostos. Nada destruir, nada nunca fica destruído, tudo volta. Com «La Légende», em 1912, se inicia talvez uma fase mais pujante da obra de Amadeo, em que a criação se não opõe já à destruição, ainda que só em 1916 ele venha a escrever, tranquilo: “Je travaille. Au fond tout se réduit à connaître bien son métier – c’est fini la destruction” (Amadeo apud Ferreira, 1981, carta de 4/8/1916).

Nos apontamentos para escrever «Mme Bovary», Flaubert escreveria não sobre Emma, mas sobre os objetos que caracterizam Emma. O Visconde encontra-se no centro do quadro, mas Flaubert, com o olhar míope com que se definia, desfoca-o, para descrever antes os objetos que o rodeiam (Gateau, 1987, p. 17). Como um cineasta, Flaubert concentra-se na imagem das mãos, dos pés, dos olhos, no close up, no travelling (Ibid: p. 23). É através deles que o leitor sabe que as personagens vivem, sentindo o prazer violento de os imaginar vivos ainda, concentrando a memória do leitor nestes objetos que vão e voltam: a cigarreira, o chapéu, os sapatos apertados, a taça de champanhe, a sala com os retratos genealógicos, o veneno… O estático torna-se movimento. O signo torna-se símbolo.

Talvez não por acaso, em 1913, Amadeo dá um título incomum a uma natureza morta: «Natureza viva dos objectos» (Catálogo Raisonné, 2016, p. 195). O tema é o espaço expectante de um atelier de pintor, os pincéis voltados para cima, um cadilho de tinta vermelha já preparada, parece sangue. Se não for por acaso, talvez por mais uma razão seja inverosímil a hipótese de o “desdém flaubertiano” ser bem mais que um mero “desdém”.

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