Maria Luísa Malato
- 1. “[…] o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu” (Ferreira, 1971a: 209-210). Assim escreve Vergílio Ferreira na Aparição. Os estudantes da minha geração que pela primeira vez liam Vergílio Ferreira tinham quinze, dezasseis anos. Vergílio Ferreira era um “autor difícil” porque falava das coisas caladas, as que não lembram ao diabo. Hoje, entre viver a vida, pensá-la e dar-lhe forma, há um silêncio técnico: não cuidamos da arte, nada sabemos da arte de exprimir o que nos vai na alma. Um jovem de quinze, dezasseis anos já não lê por norma Vergílio Ferreira na escola, nem Camus, nem Brandão, nem Altino Tojal, nem Régio, nem Redol… Um adolescente de quinze anos é especialista em solidão. Mas ficou agora sem as palavras que lhe permitem falar dessa solidão. Que lhe permitam transformá-la (quiçá?) em algo admirável pelo próprio: um romance para o português Vergílio Ferreira, uma foto para o suíço Werner Bischof, uma música para um rapaz andino.
- 2. “Porque um dos crimes mais perseguidos e mais desejados no Seminário, como creio já ter dito, era precisamente o pecado da solidão. Quando algum de nós se afastava para dentro de si próprio, logo a vigilância dos perfeitos o trazia de rastos cá para fora”, recorda o narrador de Manhã Submersa (Ferreira, 2011: 133). Não é que a escola, toda e qualquer escola de qualquer nível, seja movida pela negligência ou a vontade de maltratar… A escola é invariavelmente diligente e bondosa. Quer preparar o aluno para a vida, aquela vida exterior, da formalidade: e o aluno estuda, aprende a ler manuais, a interpretar gráficos, a fazer atas. Mas a Literatura e a Filosofia, progressivamente excluídas dos programas, falam-lhe da vida interior que corre paralela à exterior, umas vezes negando-se, outras vezes confluindo. E todavia é por vezes a falta de uma vida interior que impede a aprendizagem da vida exterior: a Balada da Neve tem mais probabilidades de lhe ser útil que a norma de uma ata. Não falamos aqui da questão que incomodava Camus ou Steiner: a de saber se a Literatura pode salvar-nos da barbárie em que nascemos ou daquela em que podemos crescer? (cf. Steiner, 2010). Mas antes de outra questão: a de saber até que ponto a Literatura é, como a arte em geral, uma forma de criação de sentido que nos ajuda a lidar com o absurdo do mundo.” – Se o mundo não tem sentido, o que te impede de lhe dar um?”: isto ouve Alice no País do Espanto. É o vazio do sentido que permite a introdução de um sentido transmissível feito nosso, esse silêncio de Deus que se instala na incompreensão do que vemos, ouvimos, sentimos. A questão de saber porque é que os regimes ditatoriais e os estados concentracionários quase sempre acabam incentivando a arte, no que ela tem de menos “escolarizável”. A questão que anima essa literatura de testemunho, lida no limite como uma forma de resistência/ resiliência/ existência, que manteve vivos Primo Lévi (2010), Jorge Semprun (1994) ou Luaty Beirão (2016), que vai interessar Victor Frankl (2012), Vitali Chentalinski (1996) ou Boris Cyrulnik (2009). Havíamos de falar mais sobre estes “tempos do silêncio”, como lhes chamou Franck Appréderis, no filme sobre Semprun, de 2011. E sobre o que este rapaz andino parece ter e nos falta muitas vezes: uma forma para o conteúdo.
- 3. “Entendo a tua loucura, meu bom moço, a tua perplexidade diante do poder que te nasceu nas mãos. […] Tu chamaste a ti a força da humilhação. Mas um tirano só é grande aos olhos do cobarde. Tenho pena de ti…” (Ferreira, 1971a: 132). Pela primeira vez recusamos aquela piedade: seremos nós cobardes? A observação insulta-nos, porque nos diz que criamos os nossos tiranos. A escola não julga útil “dar” literatura. O problema da escola já não “dar” literatura difícil é, pelo menos, um duplo problema para o estudante: por um lado mente-lhe, dizendo que não há vida difícil e só lhe vai “dar” o que é fácil, logo transparente; por outro, não o insulta sequer com aquela piedade que podia formar revoltados. A literatura tem, quando muito, viajantes low-cost, que se passeia pelo mundo como no recreio de um colégio escolhido pelos pais mas não tem seguro para acidentes de percurso. As personagens literárias que sobreviveram à purificação da vida, purificação que se julga adequada a jovens adolescentes, pouco têm de trágico e pouco têm de épico: E a literatura é uma linguagem ornamentada com figuras retóricas, por oposição à linguagem quotidiana, que se julga transparente e fácil e limpa de figuras. No que à literatura diz respeito, a literatura não deve incomodar ou gerar estranheza que não seja formal. O silêncio instala-se também nas coisas-tabu, as coisas não-ditas, as palavras malditas que continuam a existir, sobretudo numa sociedade que acredita que tudo se pode dizer. Estranho que esta foto de Werner Bischof, quando analisada por estudantes universitários, incomode a muitos somente por ter um pobre. E ser a preto e branco: alguns dizem que, só por isso, é uma fotografia triste.
- 4. “Sou coisa ordinária, sou. Se não fosse eu, queria ver o que é que você comia. Comia merda, naturalmente”. O Estado Novo, em 1946, censuraria a obra de Vergilio Ferreira onde estavam estas palavras, Vagão J. Há certamente silêncios impostos, com a voz adâmica de Bernarda Alba. Aqueles pobres, segundo o censor Cap. Borges Ferreira, eram pouco exemplares: “sem escrúpulos, sem carácter, sem dignidade”. O censor usa um polissíndeto e uma anáfora, tem claramente preocupações prosódicas. Alguns leitores colecionavam frutos proibidos, sabiam versos do Guerra Junqueiro de cor, para não se apanhar o livro: os versos que se sabiam de cor ecoavam nas coisas que se diziam (em voz baixo). A infantilização dos cidadãos é um estatuto politicamente interessante: torna-os cidadãos manobráveis com truques retóricos simples, desde logo aqueles que dizem que a Retórica é coisa de políticos a que se não deve estar atento. Anos depois, a geração que lia Vergílo Ferreira aos 15 anos tinha Ciência Política e Filosofia, ambas obrigatórias aos 15 anos: parecia aguentar problemas que interessavam a estes autores, e também ao P.e António Vieira, e discutia (em alta voz) até que ponto umas vidas dependem do silêncio das outras. Mas o que sucede aos silêncios que derivam da nossa surdez? O que sucede se o fruto proibido for inaudível, a ponto de se não poder falar de censura?
- 5. “A arte parece-me ameaçada, na medida em que nós tendemos para uma redução da vida a uma superfície lisa, ‘desinfectada’”: isto escrevia Vergílio Ferreira em 1981, no livro Um escritor apresenta-se, O desejo de uma linguagem neutra e transparente parece hoje generalizável a todas as matérias. Nada de política. Até há poucos anos, os programas escolares recomendavam o estudo de trechos da Constituição para alunos de História do 6.º ano, mas as referências à Constituição desaparecia das disciplinas menos históricas, em idade mais crítica: em 2013, o seu conhecimento foi considerado “excessivo”. Nada que possa lembrar a política ou a religião, temas que incomodam mais que o sexo. Na Literatura escolar, deixou de ter pobres ou gente com fome: nada de Alves Redol, nada de Raul Brandão, nada de Altino Tojal ou Soeiro Gomes. Deixaram também de se ler os originais de Filosofia em Literatura: Cícero ou Séneca em Latim, Camus ou Sartre em Francês. O Inglês não é de Shakespeare, é um inglês técnico, que não se deve confundir com o artístico, ainda que haja alguma ironia no facto da tradução de “técné” (em grego) seja a de “ars” (em latim): dominar uma técnica é criar, poder improvisar. Mas para que serve a arte na nossa vida mecanizada e técnica? É útil? Que bens materiais produz? Daí que o punctum (Barthes, 1989: 47) da foto seja agora, para bastantes estudantes universitários, uma pobre sandália de pano, sendo quase invisível a fortuna de um olhar concentrado de quem toca uma flauta enquanto carrega um fardo. E no entanto, a imagem de um olhar concentrado na música mas atento ao caminho, diz-nos que são ténues as brechas que separam ainda a técnica e a arte: “Fecha os olhos para não seres cego”, aconselha Vergílio Ferreira (2013: 270). A concentração do escritor é a concentração do músico ou do fotógrafo. Em 1954, ano em que Vergílio Ferreira escreve sobre uma manhã submersa, é o ano em que uma criança dos Andes se concentra sobre o som que sai da flauta, o ano em que W. Bischof, no caminho para Cuzco, antes do carro em que seguia ter caído numa ravina, tirou uma foto, concentrado naquele andar de uma criança concentrada. A concentração é como uma forma primeira de rezar: trata-se ainda daquela “piedade natural da alma”, que seduz Malebranche, lido por Steiner (2000), autor por sua vez relido por Tiago Rodrigues em By Heart (2016), que é possível aprender ainda que seja impossível de ensinar. Silêncio transmissível: como se um caroço tivesse inventado a cerejeira para não morrer.
- 6. “De mim ao horizonte, uma estrada de luz, o sol bate-me quase de frente, transcende-me de esplendor. E a toda a volta, o coro das ondas abre o espaço da grandeza e da solidão. Ah, tudo isto há-de ter um sentido unificado em majestade e beleza – não sei” (Ferreira, 1971b: 282). A frase de Vergílio Ferreira em Nítido Nulo, lembra uma exclamação de Camus a um jornalista que o espicaçava, dizendo-lhe que não podia ter aprendido o valor da liberdade em Marx: “– É verdade, aprendi-o na miséria”. Para Vergílio Ferreira como para Albert Camus, há uma dignidade existente ainda na pobreza, como há uma beleza ainda acessível ao miserável. Vergílio Ferreira tem mais a ver com Camus do que com Sartre, ainda que se tenha quase sempre visto a Tradução como uma forma de admiração (cf. AA. VV., 2014). o corpo do pequeno andino tem – para além da estrada que talvez percorra por obrigação – um pano de fundo: umas linhas em que talvez Bischof tenha visto a pauta da música que a mente do viajante constrói. Lido no livro Pensar: “A beleza equilibra-se entre o real e o irreal. “Perto e longe, no tê-lo e não tê-lo/ é que tudo é belo”, poetei eu já não sei onde, decerto com muitos outros que poetaram comigo. Porque o belo que se tem começa a apagar-se nesse tê-lo. A beleza é do imaginário e a imaginação é uma forma de se possuir o que se não possui” (Ferreira, 2013: 43-44). Desses silêncios se não fala muito também. Associamos o silêncio à solidão: tememos o silêncio como tememos o pensamento melancólico, a introspeção. Não distinguimos melancolia de depressão. Impressiona-nos o silêncio mais do que o ruído. Mas é talvez precisamente esse caráter impressionante do silêncio que nos alerta para a beleza – no som de uma flauta desaparecida, na imagem de uma foto datável inverosimilmente, segundo alguns sites, com a data de 16 de maio de 1954, tirada no meio dos Andes, dia da morte de W. Bischof, antes de um acidente numa curva da estrada…
- 7. “Não penses que a sabedoria é feita do que se acumulou. Porque ela é feita apenas do que resta depois do que se deitou fora” (Ferreira, 2013: 37). Vergílio Ferreira fala muitas vezes dessa necessidade de deitar fora o aprendido. Não que preze a ignorância ou despreze a leitura. A sua intenção é antes chegar a um irredutível “sentimento estético da vida” –, um caroço que se não pode confundir com “um museu de estátuas e de telas e de ficções literárias” (Ferreira, 1985: 88), ou com o debitar de conceitos, opiniões, argumentos sabidos de cor. Antes a cultura é um fenómeno de repetição, que leva cada um a aprender o que já sabia, ou a dissipar o que vai perdendo pertinência… Assim se saiba transmitir este olhar concentrado na criação.
O que é a coisa mais difícil da vida: ensinar a arte não nos contentando com a que temos, porque ela não tem regra que não deva ser transgredida. Passar a arte. Não o olhar de Vergílio Ferreira. Ou o de Werner Bischof. Nem o de uma criança andina que não sabe, ou não soube, que permanece ainda. O que (me) interessa transmitir é o olhar que eles abrigaram no seu caroço, para que o fruto não morra. Silêncio ainda.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARTHES, Roland (1989). A Câmara Clara, trad. Manuela Torres, Lisboa, Edições 70.
BEIRÃO, Luaty (2016). Sou eu mais livre, então, Lisboa, Tinta da China
BISCHOF, Werner (1954). Auf dem Weg nach Cuzco, Peru, Magnum Photos. Disponível em https://www.pinterest.pt/pin/68820700536147942/ (acesso 28/6/17).
CHENTALINSKI, Vitali (1996). A palavra ressuscitada. Nos arquivos literários do K.G.B., trad. J. Freitas e Silva, Venda Nova, Bertrand.
CYRULNIK, Boris/ pref. (2009). Il n’y a plus d’enfants ici : dessins d’un enfant prisonnier des camps de concentration, Paris, J.-C. Gawsewitch Editeur.
FERREIRA, Vergílio (1971a). Aparição, Lisboa, Portugália Ed..
—– (2011). Manhã Submersa, Lisboa, Quetzal.
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—– (2013). Pensar, Lisboa, Quetzal.
FONSECA, Fernanda Irene (1992). Vergílio Ferreira: a celebração da palavra, Coimbra, Almedina.
FRANKL, Viktor E. (2012). O homem em busca de um sentido, Lisboa, Lua de Papel.
LEVI, Primo (2010). Se isto é um homem, trad. Simonetta Neto, Lisboa, Dom Quixote.
RODRIGUES, Tiago (2016). By Heart e Outras peças curtas, pref. Luís Mestre, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra. Disponível online: https://digitalis.uc.pt/files/previews/111540_preview.pdf (acesso em 28/6/17).
SEMPRUN, Jorge (1994). L’écriture ou la vie, Paris, Éd. Folio/Gallimard.
STEINER, George (2010). Langage et silence, nouvelle édition revue et augmentée, trad. Pierre-Emmanuel Dauzat, L. Lotringer, Paris, les Belles Lettres.
STEINER, Georges (2000). Van de Sohoonheid en de Troost [Do amor e da Consolação], org. Wim Kayze, org. Vera de Vries, VPRO/ Holanda. Disponível online: https://www.youtube.com/watch?v=Oear9SEXQKQ (28/6/17).