A CONSCIÊNCIA DE SI E DA PRECARIEDADE EXISTENCIAL EM VERGÍLIO FERREIRA

Constança Marcondes Cesar

[Aparição representa a luta pelo equilíbrio, finalmente alcançado,  através da arte e do amor, pelo homem que é atravessado pela  contradição entre a consciência de si, como impulso para um ser mais,  e a consciência da morte. Luta pelo equilíbrio de quem não encontra  mais em nenhum outro absoluto – que não o da consciência de si –  nenhuma possibilidade de transcendência.]

Nelly Novaes Coelho (1973: 209-47), no seu estudo sobre Vergílio Ferreira, distingue quatro fases na trajetória intelectual do artista, descrito como “ficcionista da condição humana”: de 1943 a 1946, a meditação psicológica sobre o homem caracteriza seus escritos; de 1949 a 1959, dá-se a segunda fase, que aponta a influência de Marx, Hegel e Heidegger, e a adesão de Vergílio “à proposição existencialista”, que indaga que é a verdade do homem – está no seu ser, no seu fazer? (idem: 211). Nelly assinala, nessa investigação, um texto importante, dentre outros, o Aparição de 1959, como inaugural da terceira fase, que abarca de 1959 a 1962 e onde aparece a descrição de aventura humana, cujo significado autêntico só emerge no indagar do existente, “como súbita e fugaz ‘aparição’” (ibidem), tomada de consciência de si e do ser-para-a-morte, do absurdo do existir e a certeza “de que é no Homem que estão as respostas definitivas” (idem: 215) e não fora dele. Sob o impacto do existencialismo de Heidegger e de Sartre, Vergílio busca “a verdade inicial”, a que diz o significado da presença do indivíduo no mundo, compreensão da verdade do homem, ser-em-si e constatação da “impossível comunicação autêntica entre os homens” (ibidem). A quarta fase, de 1962 em diante, até à morte do artista, mostra a especulação filosófica original, que tem como eixo a interrogação sobre a finitude e esbarra na ideia da reabsorção da consciência individual numa totalidade abarcante, inefável, que Vergílio identifica com o sagrado, numa interessante e inspirada leitura da noção de Nada em Heidegger. Os romances Aparição, Para sempre e Cartas a Sandra servirão de espelho dessa trajetória, como veremos.

Em Maria de Lourdes Sirgado Ganho (2012: 11), o exame do conceito de aparição mostra que o artista-filósofo português se inscreve, como pensador, no existencialismo ateu, que considera, na existência humana, a possibilidade de escolha e liberdade um “privilégio do homem” (ibidem). O existente encontra a possibilidade de transcendência, pelas suas escolhas: “O homem é aquilo que escolheu ser” (ibidem).

Caracterizando o homem pela presença a si e ao outro, que emerge a partir da experiência pré-reflexiva, Vergílio assinala a importância da “auto-revelação de nós próprios” (V.F., Invocação ao meu corpo, apud GANHO 2012), experiência narrada no Aparição e retomada no Invocação ao meu corpo. Ele é um “encontro do eu com o ser e os seres” (ibidem). Existir é, para cada um, indagar sobre si mesmo; é descoberta de si como um ser humano, ser vivo, que tem a consciência da própria morte. A aparição do sujeito a si mesmo é uma visão essencial, “um ver-se essencial”, afirmação do próprio ser; é o “surgir como existente” (ibidem).

Aparição é a tomada de consciência do ser pessoa (V.F., Aparição, apud GANHO 2012), mas também a descoberta da contradição intrínseca do existir, como angústia, náusea, tragédia – caracterizando um ser votado à busca de uma plenitude, de um ser mais, mas também inexoravelmente votado à derrelição, à decrepitude, à morte. Existir é, ainda, a descoberta do amor – mas também do ódio – que perpassa pela relação intersubjetiva. Caracterizado pela liberdade, o homem, “ser que emerge da natureza”, tem um impulso de autossuperação, representado pela capacidade de escolher, de aderir a uma dimensão superior (ibidem).

A obra Aparição é também mencionada por José Antunes de Sousa (s/l: 435) e por Leonel Ribeiro dos Santos (2008: 356 ss), como fulcral no pensamento de Vergílio Ferreira.

Aparição é, no dizer de Sousa, “o espanto originário (…) que absolutiza e eterniza a autocontinuação de um ser que se ser (…)” (SOUSA s/l: 435). Na mesma linha de reflexão, diz Pedro Calafate (s/l) que Vergílio entende a aparição como revelação ao sujeito da sua verdade essencial, como revelação do ser originário, de que a filosofia e a arte esboçariam a tradução, a partir do primado do sentir. Assim, a verdade emotiva é revelação do laço do homem com o mundo, revelação do mistério essencial no qual o homem se vê. O mundo da arte é, privilegiadamente, o mundo da aparição, o mundo inicial, da revelação do sujeito a si mesmo. A filosofia, inicialmente pensada como “pobre sobejo do milagre da arte”, é encarada, progressivamente, como sua “irmã gémea” pelo artista-filósofo.

Aparição desdobra reflexões sobre o caráter paradoxal da existência humana: desejo de eternidade, de permanecer na fulguração do instante, na invenção da vida que é memória, impulso para um ser mais. Mas que é também consciência da degradação e da morte. Sousa assinala a contradição, mostrada por Vergílio, entre o tempo qualitativo, da descoberta do espanto do interrogar, sinal existencial por excelência, e o tempo quantitativo, da corrupção, do corpo e da morte (SOUSA s/l: 440 ss). A consciência dessa contradição conduz o pensador à formulação de uma liberdade vazia, para nada; à meditação sobre o absurdo do existir; a um humanismo trágico que fala da morte de Deus, da solidão e do silêncio; da morte da arte em Manhã submersa, em Para sempre (1983) e em Cartas a Sandra, este último na edição póstuma de 1997.

O humanismo trágico consiste na afirmação, no pensador e poeta, de dignidade fundada na consciência de si, no tornar-se o que se é. Dignidade que se afirma contra a sociedade de consumo, caracterizada “pelo ‘efeito unidimensionalizante’ (H. Marcuse) da ‘hora técnica’ em que nos foi dado viver” (V.F., Nítido nulo, apud SOUSA s/l: 446).

Arte e filosofia aparecem, nesse humanismo trágico, como a exigência de um confronto lúcido com o Nada, no tentar devolver ao mundo que se degradou; como resistência a uma situação aporética de tender para um ser-mais e estar condenado à derrelição, à corrupção e ao nada. A dignidade do homem – o sentido da sua vida – consiste em suportar o dilaceramento entre esses opostos, afirmando a inquietação que estende os limites do humano, apesar da morte.

É no texto de Leonel Ribeiro dos Santos (2008: 349) que o humanismo trágico emerge como humanismo estético, no qual entrevê uma possibilidade de afirmação da positividade do existir. Para Leonel, “o escritor e ensaísta [Vergílio Ferreira] vive e reconhece a Arte como forma qualificada de revelação e de expressão do humano (…) e considera a experiência estética (…) como a mais originária e a que afecta e constitui o homem na sua realidade” (idem: 350-1). As referências que Vergílio assume encontram-se na fenomenologia francesa de Merleau-Ponty e Michel Henri, no existencialismo de Sartre e em Heidegger e Nietzsche, mas também se inspira nos presencistas e em particular em José Régio, diz Leonel (ibidem). A obra de arte é, para ele, “senha invisível do acesso a um mundo” (idem: 353).

O que Vergílio busca é um “questionar metafísico do mundo” (V.F., Espaço do invisível: V, apud SANTOS 2008: 355), na aproximação, pela beleza, ao mistério do homem e do mundo. A arte aborda o mundo “do limiar da vida, mundo inicial, mundo da aparição, do qual ela é sinal sensível e eficaz meio de acesso” (idem: 356, grifo nosso). Trata-se, aí, da consciência pré-reflexiva, da sensibilidade, do sentimento, onde ocorre a revelação do homem a si mesmo, a revelação do significado da sua presença no mundo e de sua comunhão com os outros (idem: 359-60). É também expressão do poder criador do homem, que inventa mundos, revelando o seu significado essencial. Pois Vergílio diz: a arte é “reinvenção de um Absoluto”, “melhor forma de uma vivência profunda do instante que passa”; “transposição para o domínio do imaginário” do aspecto metafísico do mundo; “desdobramento do real no seu duplo de figuração transcendente” e, finalmente, “uma expressão do Sagrado” (FERREIRA 1979: 101; V.F., Espaço do invisível: I, apud SANTOS 2008: 370 ss).

A análise do mundo contemporâneo pelo escritor é pessimista: nele ocorre aquilo que se chamou de “morte da arte”. A crise da arte seria a expressão da crise contemporânea, em que o homem vivencia a morte de um mundo, da significação de um mundo (idem: 369 ss). A inquietação é acompanhada da esperança: a esperança de que a crise signifique renovação, que a morte de um mundo seja sucedida pela criação e reinvenção do homem e de todos os valores. Nas obras tardias, como Espaço do invisível, diz Leonel, o confronto entre arte e filosofia, apresentadas incialmente como contrapostas, dá lugar a uma aproximação: como a arte, a filosofia é um ver, um modo de estar no mundo, podendo expressar genuína emoção. Pois o que existe é “uma vaga imensa, com a vida, que se diversifica em ondas, no seu passar” (V.F., Pensar, apud SANTOS 2008: 373, §441). E o que a filosofia e a arte buscam é o impensado, a vivência original da consciência de si e do mundo, inefável em si mesma, mas da qual a filosofia e a arte seria aproximações.

Diz o escritor-filósofo: “Toda arte é uma concretização de um apelo confuso para que a beleza exista” (V.F., Espaço do invisível: I, apud SANTOS 2008: 360). Para Vergílio, a arte é a forma autêntica da presença humana no mundo (…) a verdade do homem (…) expressão da liberdade originária, entendida (…) como o ser o que se é (…) gesto criador e demiúrgico (…)”, revelação do mundo (idem: 362-3).

Mas ouçamos o próprio filósofo. O romance Aparição narra a experiência de um jovem professor, para o qual ocorreu a revelação fulgurante da consciência de si. O romance é, em Vergílio Ferreira, a tentativa de traduzir, através da ficção, a experiência originária do homem, mas é no ensaio que precede a sua tradução da obra de Sartre, O existencialismo é um humanismo, ensaio intitulado Da fenomenologia a Sartre, que esses temas emergem.

Marcadamente ligado ao existencialismo francês e às intepretações da fenomenologia pela Escola de Louvain, como o evidenciam as referências às de Van Breda e de E. Fink editadas nos Cahiers de Royaumont sobre Husserl, assinalam o horizonte da meditação de Vergílio. A pergunta do escritor-artista é: que é a fenomenologia? Como se desdobrou essa corrente de investigação, a partir da obra de Husserl?

Examinando as Investigações lógicas, o Krisis, o Ideias…, o Meditações cartesianas, assim como o A filosofia como ciência rigorosa – que Vergílio consulta na tradução em espanhol, editada em Buenos Aires – assinala neles a presença do monadismo do eu, o tema da constituição de si, a reflexão sobre o outro e a morte.

A ambição de Husserl, diz Vergílio, “é esclarecer as origens do pensar, discutir-lhes os fundamentos” (FERREIRA 1970) e finalmente mergulhar na vida vivida, como propõe em seus últimos escritos. O conceito-chave da fenomenologia é o de intencionalidade, “a consciência é sempre consciência de algo”, “constante fuga a sí”, como assinalou Husserl.

Levando às últimas consequências estes postulados, Sartre afirmou, em O Ser e o Nada, diz Vergílio, que “o pensamento moderno realizou um progresso considerável, ao reduzir o existente à série das aparições que o manifestam” (idem: 19). Heidegger também inovou quando disse que o objeto ou fenómeno não se mostra só como realidade física, mas “em tudo o que se manifesta: um sentimento, uma obra de arte, uma instituição política, uma cultura, uma doutrina filosófica” (ibidem). É de se notar que a referência a Heidegger é mediada pela leitura de De Waelhens, apresentada no La Philosophie de Martin Heidegger, bem como no texto do próprio Heidegger, Kant e o problema da metafísica, citado na tradução de A. Waelhens – mostrando a convivência de Vergílio com os textos da Escola de Louvain.

Nosso escritor-filósofo assinala que “nós como que co-nascemos com o mundo”, nos orientando por “uma trama de juízos que não tematizamos (…) explicitamente, que são (…) juízos ‘antepredicativos’” (idem: 20). Partindo das teses husserlianas, Heidegger diz – afirma Vergílio – que a verdade, a desocultação do ser, são tematizadas a partir da relação primordial, antepredicativa, com o ente, com o Ser. Em Ser e Tempo, Heidegger fala sobre o Dasein, afirmando que “a relação eu-verdade opera-se pela afirmação de que sendo o homem ek-stase, abertura de si, sendo o estar-no-mundo um dado radical”, cabe-lhe favorecer a revelação do Ser. Para Heidegger, segundo Vergílio, a verdade é aproximação ao mistério, diálogo com o insondável. Para o pensador alemão, a forma mais eficaz de sondar o mistério do Ser é a Arte e a Poesia – temas que Vergílio assumirá de modo original.

Vergílio apoia-se em Husserl e Heidegger. Do primeiro, recolhe o tema do retorno às próprias coisas, ao mundo da vida, que “contém também as experiências da ação e do sentimento”; do segundo, o conceito de Stimnung, que traduz como tonalidade afetiva, sentimento, caracterizando, a partir dai, a filosofia como cuidado, preocupação, angústia, desejo – ou seja, como um saber com tonalidade afetiva. Para Vergílio, em Heidegger é possível discernir uma tonalidade afetiva, na disposição ou atividade do filosofar. Haveria, segundo ele, em Heidegger, uma associação íntima entre Filosofia e Arte. Sua tese tem pontos de acordo com as reflexões de Mikel Dufrenne no Fenomenologia da experiência estética, na discussão do problema das relações Arte-Verdade (idem: 36).

Na opinião do escritor-artista, na visão estética dá-se “uma revelação através de uma valorização emotiva que nos faz decifrar a verdade em função dessa valoração” (idem: 37). E em Dufrenne destaca que há outra verdade, a “verdade mais fundamental, segundo a qual, antes de toda objetivação, um mundo é possível”, aí situando o problema das relações Arte-Verdade. Para Dufrenne, diz Vergílio, “a função da arte” é aprofundar a realidade, “para descobrir pelo sentimento”, um outro mundo, que assim se revela. Por isso, para Dufrenne – e para Vergílio – “a Arte, no seu valor originário, associa-se à origem do conhecer” (idem: 38).

A arte faz ver – e ver é julgar, é interpretar. A operação que nos permite aceder à auto-consciência, ao dado originário, ao nosso próprio eu, é o pensar; mas não o pensar a si como ser pensante, mas como ser pensando, ser no próprio exercício do pensar.

Há, para Vergílio, um conflito entre a Ontologia tradicional e a Fenomenologia, que se espelharia exemplarmente em O Ser e o Nada, de Sartre: um conflito entre a ontologia e o eu existencial. A verdade existencial, que implica nosso destino como indivíduos, “é tanto mais absoluta (…) quanto mais nos fala à individualidade que somos”. E ainda: “a verdade a que me dou (…) só de mim depende (…) que ela seja bastante para a vida, que ela me oriente, me redima” (idem: 58).

A raiz da filosofia é a admiração, “que aproxima o pensar do sentir, que [traz] a arte para o domínio do conhecer”, fazendo do homem “no reino da criação (…) o verdadeiro criador” (idem: 59).

Heidegger, diz Vergílio, define o homem pela sua “qualidade de ek-stase, de projeção, de fuga de si” (idem: 72), em busca de uma transcendência que o oriente para o Ser – “verdadeira pátria do homem, a que a Arte privilegiadamente e mais facilmente acede” (idem: 74). Vergílio, assinalando que Heidegger, quando encara o homem como um ser para-a-morte, afirma ao mesmo tempo sua liberdade, “seu encontro consigo em verdade e plenitude [que] implica (…) a sua justificação em face do que o nega radicalmente, ou seja, a morte” (idem: 48). A consciência da morte constituiria a grandeza do homem, porque o leva a desejar a autenticidade, isto é, a apreensão da vida como milagre: “Antecipando-se a si, o homem descobre a morte como limite e pode antecipar o vivê-la, o enfrentá-la” (idem: 83). A morte, como possibilidade radical de profunda solidão e, ao mesmo tempo, de profunda união com os outros, é nosso destino comum. Visar essa consciência, “é recriar, por antecipação, uma autenticidade para a vida” (idem: 85), é descobrir, não o terror, mas o espanto, o despertar para o projeto existencial. Angústia e náusea acompanham essa consciência e também a exigência “de nos realizarmos na vida” (idem: 93, grifo nosso).

A meditação existencialista sobre a consciência de si desloca-se da temática da consciência como ato reflexivo, para “o surgimento originário ou original do próprio eu” (idem: 100), entrevisto pelo Husserl tardio. Vergílio diz que “no originário ou original que se ergue ante nós, de nós irrompe brutalmente, iluminadamente (…)”, esse isso que nos surpreende; é “aparição (…) puro surgimento de mim a mim” (idem: 102-3, grifo nosso). É o que marca o homem individual, caracterizando-o como único. É a base de nossa existência, que no existencialismo se tenta recuperar: apreendermo-nos “no limite de estar sentindo, de estar a ver pela primeira vez” (idem: 107); “é a dimensão do sangue, do ver” (ibidem).

O existencialismo ateu, com o qual Vergílio se alinha, fala da morte de Deus como “reversão aos nossos estritos limites; é encontro connosco mediante a presença de nós a nós mesmos e à vida, mediante a revivificação do que em nós é original, pela apreensão do que nos é original (…)” (idem: 85). A morte de Deus, assim considerada, impõe, como se vê principalmente em Sartre, a exigência de cumprirmos “o sonho invencível do homem” (idem: 128): querer ser Deus.

No mundo em que vivemos atualmente, diz o escritor-filósofo, mundo do reajustamento político e económico, das revoluções técnicas que submergem o homem no imediatismo, desvalorizam a filosofia, a arte, a vida criadora. Daí a exigência, assinalada pelo existencialismo, de falarmos do homem e de sua liberdade, entendida como capacidade criadora, como questões centrais.

Dessas perspetivas decorre, para nosso escritor, a busca da elucidação do eu originário, pura aparição de nós a nós mesmos, antes de qualquer determinação; pura força viva, manifestação da pessoa humana, presença do ilimitado em nós. Daí Vergílio dizer que dessa realidade “tentou falar no romance Aparição” (ibidem). E no texto Da fenomenologia a Sartre, estudo introdutório à sua tradução de O existencialismo é um humanismo, afirma ainda: “o Eu é a força da consciência antes de ser consciente, a pura atividade de sermos antes de estarmos sendo, a última identidade de quem somos antes de nos reconhecermos como somos” (ibidem).

Percorrendo a obra de Sartre, Vergílio ai destaca o papel da liberdade e da moral, da ética. Inscreve O existencialismo é um humanismo na experiência de Sartre da Guerra e da Resistência. Mostra que, nessa obra, a morte de Deus tem como contrapartida a afirmação da liberdade do homem, da sua responsabilidade, angústia e desespero – do homem que se torna seu próprio centro de referência. Temos que agir e não podemos prever todas as consequências de nosso atos e de como os outros reagirão a nossos atos. Ser é fazer, e a ação, por excelência, é a ação criadora, a realização da obra de arte, constituindo uma harmonia única.

Para Vergílio, essas constatações o levam a afirmar que as verdades éticas não são absolutizáveis “e será no respeito mútuo que nós daremos uma norma e um princípio de convivência” (ibidem). É com admiração que Vergílio fala de Sartre: “ele [Sartre] exprime em fúria invencível com que não desistimos de nos esclarecermos a nós, ou talvez, a coragem ou a saudade que fala àqueles que de nós aceitam a realidade insuperável do mistério” (idem: 226).

O absurdo da existência – desejo de absoluto que não pode se cumprir – resolve-se na afirmação da dignidade do homem que sonha “esse Absoluto (…) sente-lhe o apelo e esforça-se por obedecer-lhe (…) Sartre – encruzilhada, Sartre contraditório (…) Sartre impossível – nosso inesperado irmão” (idem: 193) (como já assinalara Vergílio anteriormente no mesmo texto) aparece como modelo paradigmático do homem livre que aceita a angústia e a responsabilidade do existir.

Se Aparição é a obra em que Vergílio aborda a breve e fulgurante consciência de si, que arranca o homem da banalidade quotidiana e o faz desejar o Absoluto da presença de si a si, a coincidência impossível entre eternidade e tempo, em Da fenomenologia a Sartre, Vergílio reitera a importância da experiência originária da aparição, desvelar-se do sujeito a si mesmo. Essa referência ao tema da aparição perpassa a introdução de Vergílio ao texto de Sartre, O existencialismo é um humanismo.

Sartre talvez seja um dos autores mais próximos do pensamento existencial de Vergílio Ferreira, declarado ateu que busca, contraditoriamente, o sagrado, o mistério, a liberdade – abordando esses temas em círculos cada vez mais amplos.

Duas obras literárias importantes: Para sempre, de 1983, e Cartas a Sandra, que surgiu em edição póstuma, em 1997 – abordam os problemas do amor e da morte, da precariedade existencial e da tentativa de superação dos limites dados, apesar do inexorável da morte. A nosso ver, há um fio condutor que unifica as obras: a afirmação da vida, da liberdade e a busca da superação de si.

Em Aparição, no texto introdutório, já se encontra a temática do desvelamento de si como tarefa essencial do homem. A personagem principal do romance se mostrará como aquele que alcançou uma abordagem reflexiva de si e do mundo. Sentado na sala, contemplando flores à luz da lua que penetra na casa, escuta “o indício de um amor, da vida, o sinal obscuro de uma memória das origens”, propondo-se a “descobrir a face última das coisas e ler [aí] a verdade perfeita [a respeito de si mesmo]” (FERREIRA 1960: 9-10). Diz ainda: “sinto (…) nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim (…) Nada mais há na vida que o sentir original” (ibidem).

A personagem se apreende “como um absoluto divino”, na “certeza fulgurante (…) de que há na força que (lhe) vem de dentro (…) verdade que [o] queima quando [vê] o absurdo da morte” (idem: 11-2).

A certeza de ser, na plenitude do instante, é contraponteada pela consciência da morte. É a partir da consciência da plenitude, intuída no instante, que o sujeito reconhece o problema principal da existência: saber da própria condição e “restaurar, a partir daí, a plenitude de tudo”, porque é a partir de si, que conhece a si mesmo e tudo o que o circunda, que constata também a possibilidade da morte entendida como “o nada de tudo”. A entrada da esposa, na sala onde se acha o personagem central do romance, põe a ele, aparentemente já na velhice, a apreensão da verdade como “aparição da graça”, “limiar de presença”, “flor de comunhão” (idem: 12).

A narrativa de Aparição começa com a chegada, à sua aldeia natal, da personagem que abre, já velha, no início do livro, a narrativa de sua vida. Jovem, vai para uma aldeia, em razão da morte do pai. Interroga-se a si próprio, sobre quem é. O encontro com uma família de amigos do pai leva o jovem a conhecer os filhos dos amigos do pai morto. A mais jovem, Cristina, “súbita aparição (…) surpresa em tudo para todos” (idem: 38, grifo nosso), tocava violino.

Ao se apresentar para o visitante, a menina desencadeia neste a revelação da transcendência, através da música. A música representa a verdade, o eterno, a pureza, a perfeição, expressa através da criança. Nela abre-se “um mundo de prodígio e de grandeza”, mistério e ultrapassagem daquela que o tornava presente (idem: 38-9). Uma criança erguia “o mundo nas mãos” e através dele, algo a transcendia e o angustiava: “Donde este lamento, esta súplica? Amargura de sempre, Cristina, tu sabe-la” (ibidem).

A “amargura de sempre” é a condição humana, dilacerada entre a sede de absoluto, que entrevê, e a finitude inexoravelmente votada ao nada. E a arte, a música, o lugar onde isto se expressa.

Na cidade estranha, Évora, onde lecionava, o professor rememora a morte do pai, confrontando-se com “o absurdo (…) a estúpida inverossimilhança da morte” (idem: 43). O corpo morto do pai, desabitado da pessoa que fora, leva o jovem professor a esbarrar na precariedade existencial, na possibilidade de modificação, de desaparecimento, sempre presente. Seu problema é “justificar a vida em face da inverossimilhança da morte” (idem: 46), a inutilidade da “riqueza ou miséria, ciência, glória, vexame e a política e até a arte” (ibidem). Constata que, apesar da morte ser a possibilidade radical, está vivo. E vivencia a presença de si a si mesmo, a vida anónima e eterna que perpassa o sujeito individual, sem aí se deter, e que provoca o espanto perante “essa fulguração sem princípio que é (…) estar sendo (…) como pensar que é nada?” (idem: 47).

O absurdo da morte é a contrapartida do absurdo da vida: existir para nada e, no entanto, existir. Lembra que viverá, depois da sua morte, na memória dos outros. E depois que essa memória desaparecer, sua vida será como nada, como se nunca tivesse existido. A aprendizagem que terá que fazer será a de incorporar a morte na plenitude da vida: “quem nasce ainda é nada. Mas quem morre é o universo, é pura necessidade de ser” (ibidem).

O espanto do existir, de se ver como um outro, dá-se, ao personagem, na experiência de sua infância, que recorda: à noite, percebendo a própria imagem no espelho, que equivocadamente não reconhece como sua, supõe estar diante de um invasor da casa. Ao queixar-se e perceber que era a si próprio que via no espelho, “pela primeira vez (…) tinha o alarme dessa viva realidade (…) desse ser vivo que até então vivera [consigo e em quem] agora descobria qualquer coisa mais, que [o excedia] (…), fulminante aparição de si a si próprio (idem: 70, grifo nosso).

A outra filha do amigo, Sofia, representa no romance a liberdade, a angústia da liberdade inútil, que a leva a ter sucessivos amantes, sendo finalmente assassinada por um jovem parvo, com quem se envolvera. Uma terceira filha, Ana, casada e não se inquietando com nada, representa a escolha da banalidade quotidiana, como barreira contra o absurdo do existir.

O jovem professor fala da morte de Deus e dos deuses, e do reconhecimento de que a grandeza de que os investira era, na verdade, a grandeza do próprio homem. Retornando em férias para casa, o professor recorda o dia em que o cão doente, da casa, fora morto. E a morte do cão se associa, na solidão do personagem, à morte do pai e à própria precariedade existencial: a vida votada à morte.

De volta a Évora, onde lecionava, reencontra a família de amigos. Durante um passeio, em um acidente de carro, morre a menina musicista; Sofia aparece assassinada por um amante rejeitado, Ana acomoda-se na paz da criação de filhos adotivos.

O professor abandona Évora, presta concurso para outra cidade. Lá, busca construir “seu reino, achar seu lugar na verdade da vida [sabendo] que a morte não deve ter razão contra a vida, nem os deuses (…) contra os homens” (idem: 264). Na cidade nova onde fora residir, casou-se, adoeceu, retirou-se do ensino. Encontra, ali, uma paz fugidia na memória da inocência da menina musicista e na presença do amor “na flor (…) de uma profunda comunhão” (idem: 268).

Aparição representa a luta pelo equilíbrio, finalmente alcançado, através da arte e do amor, pelo homem que é atravessado pela contradição entre a consciência de si, como impulso para um ser mais, e a consciência da morte. Luta pelo equilíbrio de quem não encontra mais em nenhum outro absoluto – que não o da consciência de si – nenhuma possibilidade de transcendência.

A dilacerante consciência da própria finitude, dada inicialmente pela morte dos outros, conduz à consciência da própria precariedade existencial. A avassaladora consciência leva à negação de Deus, remetendo o homem a si mesmo e à exigência de construir, apesar do absurdo da morte, um sentido precário para a própria existência precária. A vida é um valor, apesar da morte. A temática é reiterada em Para sempre e em Cartas a Sandra.

Para sempre aborda o retorno do personagem principal, Paulo, à aldeia natal, em busca da memória e do silêncio: preparação para a morte. É encontro com o tempo passado, no espaço da casa antiga, que estava vazia e fechada, na qual volta morar sozinho. Revive, na suposição imaginativa dos tempos, o quotidiano de outrora, quando criança; reencontra na memória situações e falas, pessoas, e alternadamente regressa ao presente, à casa antiga, fechada, com bolor, o assoalho rangente. Vai abrindo tudo, no sobrado.

Tem consciência da velhice e da morte, que o recebe nos figuras das tias já mortas, cuja imagem vê, em silêncio, imóveis, nas tarefas habituais. Vê os móveis estragados, repete o diálogo com a tia, sobre a mãe que se encontrava doente, em leito de morte. Vê, retornando ao presente, “os móveis cheios de pó, a casa deserta” (FERREIRA 2008: 20). A descrição da casa prossegue e, de súbito, ouve um “canto claro”, vindo “do fundo da terra, da água das origens” (idem: 21), da infância.

Na preparação para a própria morte, ouve um voz que canta, que vem de longe, “do espaço da transfiguração” (ibidem) da vida em morte. Vê, na casa real, casa do presente, um chapéu de palha de Sandra – sua amada esposa – retornando, a partir dessa imagem, ao momento em que a vê, pela primeira vez, com o chapéu.

Recorda a filha, Xana – apelido de Alexandra – e reencontra um tempo de alegria, passado e perdido: “Do fundo do tempo, do sepulcro das eras, como despertas no seu sono tumular, lembranças de nada, da confusão de um tempo antigo, espectros do (…) desassossego, presença obscura de uma ausência antiquíssima” (idem: 37), mas também de “um canto que vem do lado de lá da vida”, do campo. Lembra da mãe, internada pela família em um asilo, “para loucos, velhos e crianças” (idem: 39).

Retorna à casa antiga, à sua terra, sabe que “breve noite virá e a vida se foi” (idem: 44). É então que projeta a si próprio, mais velho, cuidando da terra, do jardim, plantando flores e se revê também, menino, brincando com outros; retorna depois a si e à casa antiga, ao tempo presente.

Recorda Sandra, sua esposa, com quem fala, tentando “igualar o real e o imaginário [dado] que tudo é real” (idem: 49). Repassa a vida toda, na rememoração, desvendando a amada. É ela com quem compartilha, no diálogo imaginário, interior, o significado da velhice: manter-se fiel a si mesmo, ser inteiro em si, no instante em que existe, em que é (idem: 54).

Recorda o amor, o encantamento pela esposa. E apesar de morta, tenta fazê-la existir, “na intimidade absoluta da beleza”; dialoga com ela, inventa a amada ideal e a revê “instantânea de luz (…) sob a eternidade do sol e da neve (…) um clarão à volta de deslumbramento” (idem: 60-1). O confronto com a própria velhice o leva a indagar: “como vou ser justificável até o fim?” (idem: 64), apreender o sentido da vida, na espera da morte?

Recorda a visita à esposa no quarto do hospital. E busca ainda “uma palavra de beleza, de paz, de harmonia. De conforto e altura, de alegria [capaz de] criar e harmonia que não houve (…) e a justificabilidade de tudo na vida [apesar] de haver morte no mundo” (idem: 68). Experimenta a exigência, perante a aproximação da morte, de reavaliar a fulguração da vida: afirmação da própria presença no mundo. E revive o encontro com a amada, associada à verdade, beleza, divindade, e também à possibilidade de esquecer, para poder suportá-las, as perdas que vão ocorrendo. A esposa é a incomparável, é a superioridade permanente de algo que ultrapassa, no amor que a princípio não pode expressar, porque o excessivo é insuportável para o outro. A beleza é, nessa memória, a superação da dor e da derrelição; a música, seu refúgio, como se a transcendência a que conduz existisse por si mesma.

Lembra o casamento com Sandra e a revelação do mistério e a maravilha que ela é: “a terrível beleza intocável, a graça aérea imaterial”, condensada “em realidade”, na presença que é “figuração mais alta que os deuses” (idem: 211), “fugitivo instante do que foi perfeito, antes de tudo que o corrompeu, [antes da] corrupção do tempo (…); “a inverosímil delicadeza e graciosidade e já lá não estava” (idem: 208).

Tiveram uma filha. Alcança a maioridade e a mãe quer festejar. Com a mesa já pronta, a filha amada que não ficar, não permanecerá mais na casa, vai viver a própria vida. Após o impacto da notícia, o casal comemora, sem a filha, a estada da filha na maioridade, viram no acontecimento “a glória do recomeço (…) a reconquista da vida que não finda” (idem: 267).

Na verdade, “o filho que parte é a expressão visível” da morte (idem: 269).

Recorda a descoberta do câncer, na esposa e a morte que veio depressa, acentuando profundamente a solidão do cônjuge vivo. A descrição da morte da esposa é expressão do horror da decadência, da destruição oculta. Expressa ainda na preparação do enterro, na visita à casa funerária, para escolha do caixão, dos preços.

O contraste entre o amor, idealizado, na figura da esposa Sandra e a exigência carnal que o leva, na velhice, na casa de infância, a fazer sexo com a antiga empregada, camponesa capaz de satisfazê-lo, serve de contraponto à impossibilidade da transcendência, na brutalidade do encontro.

O vai e vem dos tempos que se superpõem, das lembranças, a montanha contemplada no alpendre da casa antiga, em extrema solidão; a verdade da casa, onde o personagem aguarda a vida findar. No limite do dizível, a consciência da morte e as fronteiras da linguagem. E o comentário, que lembra Wittgenstein: “Ninguém pode sair das fronteiras da língua, a objetividade da razão está na rede que a língua teceu” (…) “porque a quase totalidade dos problemas filosóficos são problemas em fundamento, problemas deito de palavras a que nada corresponde além dessas palavras vazias (…)” (idem: 197).

A decrepitude crescente da velhice que advém se expressa na sujeira corporal, na barba por fazer, na surdez: “imagem degradada a expulsar, lixo a varrer”; acompanhado por um velho cão, é atacado por moleques a pedradas, se saía à rua. A agonia da personagem, Paulo, é longa: definhar contínuo, até à cadeira de rodas, deslizar contínuo, lento, para a morte.

A consciência da própria solidão, no universo vazio, e o não querer mais nada, não desejar nada, “só estar tranquilo” (idem: 297). Repousar na harmonia do universo, mergulhando no sono final, na grande noite. Repousar no centro da vida, recolhendo-se na sua noite com aceitação, gratidão e humildade: “na casa grande e deserta” (idem: 306).

Da morte simbólica: a partida da filha; à morte do outro: a esposa; à morte pessoal – há um lento deslizar na decrepitude e no silêncio, até o mergulho final no nada; reabsorção na vida do universo, na ordem a que estamos todos submetidos, como seres mortais: a vida como a aprendizagem da morte.

Cartas a Sandra é um romance complementar ao Para sempre. Aqui, trata-se de um conjunto de cartas da personagem principal de Para sempre, recolhidas por sua filha – também aqui a personagem Xana (Alexandra), do outro romance – que decide publicá-las, por discernir nelas o grande amor que seu pai nutria por sua mãe, Sandra. Diz a filha, no prefácio da edição das cartas: “(…) o amor (…) foi uma espécie de valor que lhe redimiu a vida inteira [a vida do pai]. Na memória de minha mãe ele concentrou todo o significado que a vida para ele veio a ter” (FERREIRA 2010: 12).

São cartas para a esposa morta, num diálogo com a presença imaginária. Referindo-se ao Para sempre, em que a certa altura narra a morte da esposa, lembra que escreveu, ainda jovem, cartas para ela (que não as guardou, por considerá-las expressão de um excesso de emoção característico de um adolescente. Escreve, novamente, cartas, para recuperar a “fascinação”, a “emoção e o êxtase, de a imaginar vivendo, no diálogo imaginário”. Lembra de quando a viu pela primeira vez: irrupção de uma “intocável beleza, e o espaço e a melodia em que ela se inscreve (…) Porque é lá que [ela mora], no incorruptível, no intocável do [seu] ser”. Na casa vazia (a de Para sempre), a ouve dizer o seu nome, e afirma que a voz dela, ele a reconheceria no meio de muitas outras, na praça pública, na multidão: “voz breve (…) voz serena e uma longa melancolia” (idem: 30 ss).

Lembra da primeira noite que passaram juntos e da confissão recíproca do seu amor. E parecia-lhe que a vida se resumira nessa palavra; apreende a imagem da esposa “no instantâneo de seu fulgor” (idem: 31). Escreve para que a esposa exista no que escreve, para poder partilhar com ela a contemplação da neve, da montanha, dos campos: o silêncio do mundo (ibidem). O que dela relembra é a face sem tempo, “a verdade impossível de ser traduzida”. Raramente pensa na morte dela, diz ele; e vê quase sempre a imagem do esplendor que ela é, sua realidade como transfiguração, desvelar-se de sua essência, que o deixa “paralisado de enlevo e melancolia” (idem: 36-7). O encontro que tiveram, o primeiro, causou um impacto tão profundo, que certamente “não cabia numa vida e aconteceu no eterno”. Dialoga com a presença imaginada da esposa, e experimenta, de repente, a intensa saudade, ao lembrar que nunca mais estará com ele. Se sai de casa e vai à aldeia, acontece ao viúvo reencontrá-la às vezes, no corredor de casa, em silêncio.

A casa vazia, plena da presença, na memória e na imaginação, da esposa ausente, é refúgio e defesa contra a morte. Na casa, sereno, o viúvo pode recordá-la, chamá-la, e ela emerge, presença inesgotável, no imutável de seu ser, de sua beleza, da graça que a caracterizava. Nunca lhe aparece desfigurada pela doença, pela velhice e pela morte.

A filha vai visitá-lo e no sorriso dela o viúve revê o sorriso da esposa. Na ceia de Natal, com a filha e o neto, a presença de Sandra, só para ele perceptível. E ele declara que a ama como talvez nunca a tivesse amado; ouve-a chamá-lo; só percebe que ela não está quando vai procurá-la pela casa. Abrindo às vezes ao acaso os livros e cadernos com anotações do tempo em que ela lecionava, a vê presente, no que escreveu.

A filha volta a visitá-lo e sugere que se distraia, vá ao cinema, arranje amigos. No começo o viúvo achava que sim, que retornava à terra de origem, ai envelheceria. Mas a irrupção abrupta de presença da esposa, pouco a pouco tornava-se sufocante. Ele oscila entre desejar que ela não volte e que permaneça para sempre. E diz à esposa, viva presença, misteriosa presença no imaginário: “foste de um mundo incorruptível onde o tempo não passa e é ai que tu moras no eterno de ti” (idem: 62). E ainda afirma: “De toda a tragédia que foi a teu fim, tu ressuscitaste e és agora presença iluminadora de ti. Há o teu ser profundo que não morre nem envelhece (…) Não está na minha mão recriar o teu mistério e a tua fascinação” (idem: 63-4).

Quando chegou à casa, o viúvo pretendia refazer o jardim, “recuperar a vida sobre as ruínas” (idem: 66). Mas o tempo passa e ele nada faz. Há uma carta, na qual descreve o sonho com a esposa, numa noite de frio. A intensidade da presença é tal que, ainda num estado intermediário entre vigília e sonho, levanta-se e sai à sua procura, ao constatar que o lugar ocupado por ela na cama estava vazio. Finalmente desperto, dá-se conta de que ela morreu, ela está ausente. E decide então esquecê-la “para conseguir serenar”.

Especialmente marcante é a carta em que o autor descreve o ritmo da vida entrando já nos hábitos do campo: dormir cedo, cuidar do jardim, ir à cidade, ouvir rádio, ver tv. A presença obsessiva da esposa é superada; quando emerge, é sempre num tempo que não passa: pensa nela e seu “esplendor renasce-me no (…) pensar” porque “O amor e a morte inscrevem-se um no outro” (idem: 81).

Escreve cartas para poder estar com ela, “recuperar o encantamento com a morte de permeio”, reconhecendo na esposa “uma sacralidade intocável”, um “halo luminoso”, “como uma deusa que estivesse de passagem” (idem: 96-7) e nela se revelasse “o mistério das coisas, a sua essência invisível” (idem: 98). No visível se revela a contrapartida invisível, o mistério originário, a transcendência. É isso que Sandra significa, que torna possível ver; é por isso que sua presença é tão intensa: ela é o portal que situa o artista no limiar de uma realidade plenamente significativa. É por isso que escreve: para recuperar, ainda que brevemente, a aparição intensa do reverso do visível. Para não morrer, não pode perder a visão fulgurante da transcendência, eternidade inserida no tempo, suspensão do mero fluir, do mero passar. Contrapartida estética da filosofia existencial de Vergílio, Para sempre e Cartas a Sandra representam a salvação, pela arte, da derrelição e da morte[1].

Bibliografia

CALAFATE, P. (s/l), Vergílio Ferreira, Lisboa, Instituto Camões, acesso a 29/04/2016.

COELHO, N.N. (1973), Escritores Portugueses, São Paulo, Quiron.

FERREIRA, V. (1960), Aparição. 4ª ed, Lisboa, Portugália.

____________ (1970), “Da fenomenologia a Sartre” in J.P. Sartre, O existencialismo é um humanismo, 3ª ed, Lisboa, Editorial Presença.

____________ (1979), Do mundo original, Amadora, Bertrand.

____________ (2008), Para sempre, Lisboa, Quetzal.

____________ (2010), Cartas a Sandra, Lisboa, Quetzal.

GANHO, M.L.S. (2012), Vergílio Ferreira: uma aproximação existencial, digitalizado.

SANTOS, L.R. (2008), Melancolia e apocalipse, Lisboa, INCM.

SOUSA, J.A. (s/l), “Vergílio Ferreira” in P. Calafate, História do Pensamento Português, vol. V – O séc. XX, tomo I.

TEIXEIRA, Antonio Braz (2005), “O segredo e o mito no pensamento de Vergílio Ferreira” in Atas da VII Semana de Filosofia: Filosofia da Existência e Fenomenologia, São João Del Rei, UF

[1] Numa perspectiva mais ampla que a exposta por nós aqui, e abarcando magistralmente os aspectos fulcrais da reflexão vergiliana, cf. TEIXEIRA 2005: 109-18.