O PRIMEIRO SORRISO DO OCIDENTE

Hugo Monteiro

[O sorriso, o primeiro do Ocidente, surge-nos assim como o assomo de um Adeus que atravessa o tempo em saudação – gesto indistinto no excesso de um encontro que, em última análise, leva o próprio tempo atrás de si, revelando que “todos os séculos do passado se conglomeram ali, no instantâneo presente”]

  1. Tempos de um Adeus

Em certas regiões de Portugal conserva-se uma acepção cada vez mais invulgar, mas de certo modo originária, no uso da palavra “Adeus”. Surpreender-se-á o visitante menos avisado ao deparar com um “Adeus!” exclamado a quem chega, e não apenas a quem parte.

E assim, a cada chegada:

– “Adeus…!”

A saudação desdobra-se, diversificando a cerimónia do Adeus: Adeus a quem vem, a quem ainda agora chegou, numa saudação frequentemente não isenta de sorriso – eventualmente tocando-se, sem querer, no processo de memória e de rememoração de quem doravante não cessará de regressar[1]; Adeus, a quem virá para sempre.

“Adeus” é o título de um conto de Vergílio Ferreira (1998: 9-13). Uma narrativa que, ao exemplo do que acontece com frequência ao longo da sua escrita, não se limita a olhar para o passado enquanto ponto fixo no contínuo do tempo, mas deixa-se frequentar por ele. O passado está aqui, irrompe na intensidade da escrita esgrimindo (ou simplesmente movendo-se) para o instante do agora. Esse agora, erigido como instância decisiva para onde todo o tempo caminha – onde se anula enquanto medida e se baralha na voz que o transporta – organiza-se numa espécie de bailado com a memória, sendo claro que nunca esta memória se resume ao gesto proustiano do olhar para trás, para o momento cristalizado à espera que o visitem. Passa a ser mais o contrário: o passado irrompe agora, interrompe percursos, contando a sua interrupção como uma fragmentação cerzida no avesso do tempo contínuo. No instante de um Adeus: “Não lhe pedira que viesse. Pedi-lhe só que às dez da noite, e pela última vez, a sua lembrança me esperasse ao caminho” (idem: 9).

Mas a última vez não é, aqui, a vez derradeira. Sempre um Adeus (a literatura é, com a música, das artes que melhor o demonstra) se repercute novamente. Leve como uma lembrança, o adeus é a linguagem de uma visitação que ocorre de cada vez e que ressoa como primeira vez. E a última vez de uma memória é sempre uma passagem em que, na chegada como na partida, uma cerimónia do adeus se consuma. O seu efeito sobre o tempo não é de confirmação, mas de anulação suspensiva: “Tinha a certeza de que ela me levaria para um presente sem memória do passado nem receio de um passado sem futuro” (idem: 10). E aqui é a própria memória que se esvai… em nome de uma rememoração?

Ergamos os olhos deste Adeus. Sabemos agora da sua possibilidade enquanto saudação inaugural, matinal, iniciática, talvez até mais sorridente. É curioso ter sido um acto de despedida, uma cerimónia de Adeus, o contexto em que se terá esboçado o primeiro sorriso do Ocidente.

  1. Sorriso primeiro

“sorriu Calipso, divina entre as deusas”

(Odisseia, V/180)

Ao pedido de Ulisses, diz-se que Calipso sorriu. E, quase instituindo a enigmaticidade do sorriso, o primeiro sorriso do Ocidente é dúbio, esquivo: Calipso, ninfa captora de Ulisses, responde desta maneira à interpelação do prisioneiro no momento antes da libertação. Responde antes das palavras, quase instigando a turbulência da dúvida na promessa solicitada por Ulisses, temendo represálias por abandonar a sua enamorada carcereira, que a contragosto o libertava. O sorriso, o primeiro do Ocidente, precede a desejada resposta: “não prepararei para ti qualquer outro sofrimento” (Odisseia, V/187). Suspende-se o sorriso inaugural, no sossego enunciativo assegurado pela voz da ninfa. Cumprem-se as condições de um Adeus, indesejado pela portadora do sorriso.

Em Na tua face, Vergílio Ferreira põe na voz de Ângela, quase cega, o pedido da leitura desta passagem a Daniel, instruindo-o ter sido este o primeiro sorriso do Ocidente. No limiar da cegueira, a professora de Cultura Clássica reclama à voz do companheiro o indício desta luminosidade inaugural: “– Lê, Dani!” (1993: 204).

Interroga-se a herança deste sorriso, o modo como é rememorado, o ensaio da sua visitação e o Adeus de que é silhueta. E a resposta é inquietante, dela surgindo uma das dimensões mais luminosas de Na tua face como romance de saudação e despedida, e de Vergílio Ferreira como um dos escritores em português que mais brilhantemente urdiu, em linguagem, um invisível, um inaudito, um silêncio melancolicamente interposto no tempo como experiência e como rememoração.

“Um sorriso, donde vens?” (idem: 239) – pergunta Daniel, ensaiando pintar numa tela tudo o que a tela não compreende. E a pergunta pela origem do sorriso não ilude a deriva na experiência do tempo que ocorre na rememoração de um encontro, na impossível arqueologia de um face-a-face. Um sorriso que, no reconhecimento de Daniel, é apenas o primeiro visível, o que transporta o eclipse de todos os que o precederam (“E quantas camadas atravessaste para chegares até mim?”) e que, sem passado nem futuro, deflagra num infinito descontínuo. Aqui.

O sorriso, o primeiro do Ocidente, surge-nos assim como o assomo de um Adeus que atravessa o tempo em saudação – gesto indistinto no excesso de um encontro que, em última análise, leva o próprio tempo atrás de si, revelando que “todos os séculos do passado se conglomeram ali, no instantâneo presente” (idem: 240). O sorriso, como distância e como manifestação dessa distância, assombra o texto, exprimindo a seu modo que (como lateralizará Eduardo Prado Coelho, numa página de diário também focada em Vergílio Ferreira) “a linguagem só nos interessa como a obcecada medida da distância” (COELHO 1992: 34).

Nessa medida sem medida está um sorriso primeiro, de cada vez primeiro, exposto à anterioridade que o constitui, como à memória que o ilumina enquanto passado no presente. Apenas aparecendo, oferecido à cerimónia de um Adeus. Lembremos um dos instantes finais de Aparição:

a vida do homem é cada instante – eternidade onde tudo se reabsorve, que não cresce nem envelhece –, centro de irradiação para o sem-fim de outrora e de amanhã (FERREIRA 1994: 273).

Bibliografia

COELHO, Eduardo Prado (1992), Tudo o que não escrevi – Diário I (1991-1992), Asa, Porto.

DERRIDA, Jacques (1997), Adieu – à Emmanuel Lévinas, Galilée, Paris.

FERREIRA, Vergílio (1993), Na tua face, Bertrand, Lisboa.

__________________ (1994), Aparição, Bertrand, Lisboa.

__________________ (1998), “Adeus”, Contos, Bertrand, Lisboa, pp. 9-13.

HOMERO (2003), Odisseia, trad. Frederico Lourenço, Cotovia, Lisboa.

[1] Acerca da ressonância diversa da palavra “Adieu”, coincidindo aparentemente com a utilização que dela se faz em Portugal, veja-se, por exemplo, DERRIDA 1997: 11-28.