[Ritmos e visões, de José Gil, é precisamente uma compilação de quatro ensaios em que se analisa, numa perspetiva crítico-filosófica, a obra de Fernando Pessoa. Como corpus de análise, o autor elegeu O livro do desassossego de Bernardo Soares, dois poemas de Fernando Pessoa – “A múmia” e “Ode marítima” – assim como artigos publicados na revista A Águia. Pontualmente são mencionadas outras obras como Fausto, Mensagem, Átrio, O caminho da serpente, com o intuito de contextualizar, clarificar ou corroborar afirmações. O livro parece disperso, mas há, como veremos, uma unidade que faz desses ensaios capítulos de uma reflexão encadeada.]
José Gil doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Paris, com um estudo sobre “O corpo como campo do poder”. Exerceu funções como Directeur de Programme do Collège International de Philosophie de Paris e professor na Universidade Nova de Lisboa. Possui uma extensa obra traduzida em várias línguas, que têm em comum uma acutilante reflexão sobre as relações entre conhecimento e identidade. Ritmos e visões, de José Gil, é precisamente uma compilação de quatro ensaios em que se analisa, numa perspetiva crítico-filosófica, a obra de Fernando Pessoa. Como corpus de análise, o autor elegeu O livro do desassossego de Bernardo Soares, dois poemas de Fernando Pessoa – “A múmia” e “Ode marítima” – assim como artigos publicados na revista A Águia. Pontualmente são mencionadas outras obras como Fausto, Mensagem, Átrio, O caminho da serpente, com o intuito de contextualizar, clarificar ou corroborar afirmações. O livro parece disperso, mas há, como veremos, uma unidade que faz desses ensaios capítulos de uma reflexão encadeada.
No primeiro ensaio, “A cobra e a espiral”, José Gil identifica um elemento importante para o seu enquadramento teórico – a “visão” – e entende-a como o mecanismo que despoleta a criação heteronímica. A “visão”, tal como nos é explicado, permite a projeção de um mapa que nos remete para um espaço interior onde determinadas forças, ou intensidades, conjugadas com imagens, produzem multiplicidades em devir, de forma a englobar o real. Aplicando este quadro crítico à obra O livro do desassossego, o autor constata que nesta obra as visões são recorrentes, com clara predominância do fator imagem, em detrimento do real, transformando-se assim, elas próprias, no real, relocalizando os eixos temporais e espaciais. Um outro aspeto, decorrente em parte do primeiro, que me parece pertinente neste estudo é a importância atribuída à língua e à escrita poética. Segundo José Gil, a “imagem corporiza uma língua antes da língua, qualquer coisa como uma língua primeira feita de ritmos”, condição indispensável para o surgimento do elemento poético. Consequentemente, a escrita poética revela-se num “estado de criação” anterior à própria produção / formulação, não como encadeamento de signos, mas revestida de ritmos, não podendo no entanto ser dissociada da visão, pois a visão só pode ser expressa pela escrita poética e esta só pode ser criada pela e na visão.
No segundo ensaio, intitulado “O caos criador”, José Gil reflete sobre o “estado de criação” e aplica o quadro teórico por ele explicitado ao poema “A múmia”, de Fernando Pessoa. Segundo o autor, o sujeito criador, para produzir o objeto artístico, necessita de dar início a um processo de intensificação, cujas energias vão flutuar num espaço-outro e pré-criativo. A posteriori é necessário que os afetos inscritos nos órgãos se libertem nesse espaço, tornando-se matéria pré-literária a ser trabalhada. Todo este processo, gradual, ambiciona a criação de um objeto artístico, novo em si, ou seja, que expressa a sua singularidade pelo uso do seu máximo de potência. Para que se realize enquanto objeto novo em si, é imperativa a intensificação do campo sinergético e a realização do caos. O caos, para o sujeito criador, é, portanto, um campo onde o tempo, o espaço, o corpo e o não-corpo se desfragmentam, desestruturam, e originam um vazio, paradoxalmente criador de multiplicidades e heterónimos. É ainda surpreendente verificar, segundo José Gil, que os estados de dissolução extremos, que poderiam eventualmente impedir o sujeito de criar, são resolvidos e possibilitados pela escrita. Assim sendo, conclui-se implicitamente que a desfragmentação inerente ao ato criador é sujeita, de forma ainda pouco clara, a um processo de unificação que possibilita a continuidade ontológica do sujeito.
O terceiro ensaio da obra supracitada remete-nos para a análise do poema “Ode Marítima”, de Fernando Pessoa, incidindo mais demoradamente sobre este implícito processo de unificação. Inicialmente, José Gil estabelece a existência de dois planos que, ao longo deste poema, se cruzam e distanciam: o da escrita literária e o da experiência real. Em relação ao plano da experiência, é possível ainda subdividi-la em perceção e emoção. Curiosamente, e de acordo com o que nos é dito, o escrever sobre a experiência é o substrato que permitirá uma nova escrita, que conduzirá à “verdade poética”. Ao longo do poema supracitado, José Gil verifica uma constante referência ao espaço-entre (a distância, ou distância absoluta que engloba todas as distâncias). A dicotomia longe / perto, associada ao uso da imaginação para reconfigurar o percecionado, implica, José Gil sublinha-o uma vez mais, a utilização de uma “máquina rítmica”. É através da “máquina rítmica” que se cria uma nova realidade – o passado longínquo e invisível transforma-se em presente, perto e visível. Os fios soltos voltam a ligar-se. José Gil retoma aqui também a ideia do “caos criador”. De acordo com o escritor, Fernando Pessoa teria a capacidade de potenciar a existência desse caos sem impossibilitar a criação do objeto novo em si. Para tal, recorreria ao corpo sem órgãos (CsO), plano que permite a existência do caos, mas que, em simultâneo, lhe dá a possibilidade de criar. O corpo sem órgãos pressupõe a existência de um corpo aberto, cujo interior se torna exterior, permitindo assim a formação de multiplicidades.
No último capítulo, intitulado “O profeta de si mesmo”, o autor explora algumas questões-chave no pensamento pessoano, como a temática do Quinto Império, o paganismo e a sua intersecção com a teosofia. A questão da identidade individual torna-se indissolúvel da identidade coletiva. Fernando Pessoa refere, em 1912, que uma corrente literária pode refletir o estado social de um país e ser o prenúncio – ou não – de grandes épocas políticas, num espaço de duas ou três gerações. Após analogia com outras realidades, e destacando pensadores como Teixeira de Pascoaes ou Jaime Cortesão, Pessoa conclui que Portugal seria em breve tido como referência espiritual, tornando-se, inclusive, motor da Renascença europeia. Não alheio a este facto seria o surgimento do “poeta supremo”, que remete para segundo plano Camões: “a renovação da pátria depende do esforço de todos, e este depende da vontade de um homem, o supra-Camões (figura antecipada de D. Sebastião e dele próprio, Fernando Pessoa)” (GIL 2016: 88). Esta transformação dar-se-á recorrendo, sobretudo, à literatura e à poesia, daí a curiosa designação de “Quinto Império de gramáticos”.
Após estas considerações, José Gil adverte-nos para o ainda embrionário caráter destas afirmações em Pessoa. Isto porque só após o confronto entre neopaganismo e teosofia, e sua posterior resolução teórica, é que o poeta teria condições para dar início à missão que ele próprio profetizou. Este confronto, ou crise identitária, dar-se-ia em 1915, quando Pessoa procede à tradução de livros teosóficos e se confronta com a unidade além-Deus e o mistério, por ela veiculados. Se esta última possui um carácter transcendental, o neopaganismo de Mora é imanentista e plural. No entanto, tal não significa que Pessoa as entenda completamente distintas, pois a unidade além-Deus, pela sua diversidade, aproxima-se do neopaganismo.
Posto isto, como é que Fernando Pessoa ultrapassaria esta barreira? De acordo com José Gil, o poeta introduz a multiplicidade heteronímica no mistério do além-Deus e rebate “o plano existencial do mistério vivido sobre o plano do objeto do mistério, isto é sobre o plano das ideias” (idem: 97), o que lhe permitiria realizar-se, a posteriori, como “profeta de si mesmo”.
Os quatro ensaios de José Gil aqui brevemente apresentados refletem uma abordagem com enfoque mais filosófico do que literário na análise da obra de Fernando Pessoa, o que, para a crítica literária, poderá ser considerado uma mais-valia. Esse valor acrescido deriva, a nosso ver, da seguinte razão: vários quadros teóricos aqui já referenciados, utilizados no processo de entendimento da obra pessoana, podem ser aplicáveis a outros objetos. Para além disso, a constante questionação sobre a construção do processo criativo, assim como o aventar de hipóteses sobre a definição de um objeto artístico, possuem um carácter transdisciplinar, logo, abrangentemente relevante.
A meu ver, o processo de criação literária e a sua efetiva produção é, ainda, particularmente interessante para a crítica feminista. Isto porque, e tendo em consideração a possibilidade de uma escrita feminina, proposta por Hélène Cixous, a obra levou-me a questionar a possibilidade de, neste enquadramento teórico, se poder introduzir a tónica na identidade sexual. O processo criador é assexuado? O objeto criado possui reminiscências da identidade sexual do sujeito criador? Se sim, como as identificar? Várias interrogações surgem ao debater esta questão, o que revela a sua proficuidade temática.
Em jeito de conclusão, e independentemente das razões que nos levam à leitura de uma obra com semelhantes características, não é possível deixar de constatar um grande domínio lógico aplicado a um discurso complexo e denso, ou, como nos diz Pessoa, uma grande capacidade de “definir a espiral”.