OS TEARES DA MEMÓRIA: MNÉMOSINE E SUAS FILHAS

 

Ana Luísa Amaral

in Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2008

 

Desejava esquecer, mas elas não me deixam:

chegam com seu tear e sua mão cruel,

e sobre mim ensaiam um cansaço

que há séculos lhes tem sido alimento

 

Têm dentes ferozes e poderosas unhas

com que tocam a flauta e festejam o fuso,

 

e uns olhos muito belos, com íris poderosas,

de sobressaltar ondas, de desesperar ventos.

 

E as fontes enganosas onde encontram guarida

tingem-se com as cores da sombria memória

 

Não me deixam esquecer: só me trazem

a história dentro da própria história,

 

desejo incontrolável de contra mim ficar,

a horas muito breves, de desespero fundo,

 

a falar nem de nada, desejando por dentro

deixar de me sentir, ou então sentir tudo.

 

Não me deixam esquecer, e o seu tear agudo:

herança dessa mãe que sobre elas pousou,

 

que as fadou frias, belas, e ao gerá-las assim,

lançou no meu olhar a memória do mundo.

 

Pertencem-lhes as fontes, tão falsas e funestas

como funestos são os seus gritos sem som,

 

delas fazem brotar as águas mais avessas

com algas que me entrançam palavras e cabelos.

 

E eu que queria esquecer, viver num outro mar,

atravessar a nado os pinheiros mais altos,

 

sou condenada a dar-lhes o alimento azul

de que elas se alimentam: um cansaço de séculos.

 

Sou condenada a ver para além deste tempo,

através dos seus olhos de poderosa luz,

 

e as flautas que elas tocam e o fuso que festejam

não são flautas só fusos, mas lanças e muralhas.

 

Com elas me recordo, por elas me relembro

e invade-me a lembrança, exasperada, impura.

 

Desejava esquecer, mas elas não me deixam,

e a memória do mundo: uma pesada herança,

 

legado que não devo deixar a mais ninguém,

que não posso gastar conforme me apetece,

 

porque elas o governam em mil sabedoria:

obrigam-me a usá-lo contrário ao meu desejo,

 

e se o desejo às vezes, desviam-no de mim.

É sua mãe cruel que as governa e a mim.

 

E todas enredadas nesta teia de espelhos

sofremos igual sorte, temos o mesmo fim,

partilhamos da mesma vontade de esquecer.

 

Mas não o deixa ela, nem o permite a morte —