in Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2008
Desejava esquecer, mas elas não me deixam:
chegam com seu tear e sua mão cruel,
e sobre mim ensaiam um cansaço
que há séculos lhes tem sido alimento
Têm dentes ferozes e poderosas unhas
com que tocam a flauta e festejam o fuso,
e uns olhos muito belos, com íris poderosas,
de sobressaltar ondas, de desesperar ventos.
E as fontes enganosas onde encontram guarida
tingem-se com as cores da sombria memória
Não me deixam esquecer: só me trazem
a história dentro da própria história,
desejo incontrolável de contra mim ficar,
a horas muito breves, de desespero fundo,
a falar nem de nada, desejando por dentro
deixar de me sentir, ou então sentir tudo.
Não me deixam esquecer, e o seu tear agudo:
herança dessa mãe que sobre elas pousou,
que as fadou frias, belas, e ao gerá-las assim,
lançou no meu olhar a memória do mundo.
Pertencem-lhes as fontes, tão falsas e funestas
como funestos são os seus gritos sem som,
delas fazem brotar as águas mais avessas
com algas que me entrançam palavras e cabelos.
E eu que queria esquecer, viver num outro mar,
atravessar a nado os pinheiros mais altos,
sou condenada a dar-lhes o alimento azul
de que elas se alimentam: um cansaço de séculos.
Sou condenada a ver para além deste tempo,
através dos seus olhos de poderosa luz,
e as flautas que elas tocam e o fuso que festejam
não são flautas só fusos, mas lanças e muralhas.
Com elas me recordo, por elas me relembro
e invade-me a lembrança, exasperada, impura.
Desejava esquecer, mas elas não me deixam,
e a memória do mundo: uma pesada herança,
legado que não devo deixar a mais ninguém,
que não posso gastar conforme me apetece,
porque elas o governam em mil sabedoria:
obrigam-me a usá-lo contrário ao meu desejo,
e se o desejo às vezes, desviam-no de mim.
É sua mãe cruel que as governa e a mim.
E todas enredadas nesta teia de espelhos
sofremos igual sorte, temos o mesmo fim,
partilhamos da mesma vontade de esquecer.
Mas não o deixa ela, nem o permite a morte —