A ESCRITA NO ESPELHO OU ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ENSAIOS “CARTA AO FUTURO” E “ARTE TEMPO” DE VERGÍLIO FERREIRA

Jorge Vicente Valentim

[Depreende-se, por conseguinte, que a escrita ensaística de Vergílio Ferreira mais se autentica como um discurso original, na medida em que se afasta dos padrões científicos e metodológicos tradicionais e em que, no seu conteúdo, procura tratar de alguns dos tópicos mais fulcrais de sua obra, inclusive aqueles abordados pela sua ficção. Se o romance foi o gênero privilegiado para expor a problematização e o exame de alguns temas da existência humana e todas as suas consequentes contingências1, não será improducente pensar que o ensaio foi o espaço consagrado para revelações existentes na sua criação literária.]

Este texto é para Albano Martins e Kay, pela amizade incondicional
feita em forma de carinho, respeito e generosidade.

Enquanto escrevo, estou diante de um espelho que reflete, às minhas costas, uma porta com uma maçaneta. – UMBERTO ECO, Sobre os espelhos e outros ensaios.
Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, reflectido no grande espelho do guarda-factos. – VERGÍLIO FERREIRA, Aparição.

 

Introdução

Em sua Metodologia do trabalho intelectual, de maneira muito pouco convencional, Salvatore D’Onofrio define da seguinte maneira o gênero “ensaio”:

[…] o “ensaio”, do francês essai, embora possa ser menor do que o artigo, é um estudo concludente, que não remete a trabalhos anteriores ou futuros, redigido numa linguagem de alto nível, com exposição lógica e rigor de argumentação. […] O autor tem a plena liberdade de defender determinado ponto de vista, sem a obrigação de provar o que afirma por meio de uma documentação ou do aparato bibliográfico (1999: 72).

Curiosa e pouco precisa com a natureza genológica do seu objeto de estudo, sobretudo se levarmos em causa alguns estudos mais recentes (BARRENTO 2010, GOULART 2010, LANGLET 2010), a proposta do professor italiano naturalizado brasileiro não parece de todo dar conta dos elementos mais substanciais do tipo de texto a que se propõe refletir, ainda mais se pensarmos na forma como um escritor como Vergílio Ferreira o trabalhou. Além de reconhecido romancista, o autor português debruçou-se sobre o gênero ensaístico, imprimindo-lhe um viés muito peculiar: o afastamento de certos padrões formais esperados e dos conteúdos puramente lógicos e argumentativos. Não que estes não existam no seu texto; pelo contrário, quando aparecem, são tratados sob um prisma completamente diferente.

Na concepção de Eduardo Lourenço,

O puro jogo de ideias, reflexo de um olhar se não neutral pelo menos distanciado daquilo sobre que se exerce, empenhado e ao mesmo tempo céptico, que nós chamamos ensaio, coaduna-se mal com a essência da visão do mundo e do lugar do conhecimento e do pensamento nela, segundo Vergílio Ferreira. O que deixa prever que o seu ensaísmo o seja superlativamente na medida em que nele se problematiza até aquela atitude que por herança de Montaigne e generalizado consenso parecia haver condicionar a prática ensaística. Com efeito, Vergílio Ferreira, numa reminiscência de Nietzsche, reiteradas vezes sem conta, só as ideias como sangue, só ideias-vivas, verbo realmente incarnado, podem pretender ao estatuto de autenticidade, anterior a toda reflexão, que é a da existência (LOURENÇO 1994: 113).

Depreende-se, por conseguinte, que a escrita ensaística de Vergílio Ferreira mais se autentica como um discurso original, na medida em que se afasta dos padrões científicos e metodológicos tradicionais e em que, no seu conteúdo, procura tratar de alguns dos tópicos mais fulcrais de sua obra, inclusive aqueles abordados pela sua ficção. Se o romance foi o gênero privilegiado para expor a problematização e o exame de alguns temas da existência humana e todas as suas consequentes contingências1, não será improducente pensar que o ensaio foi o espaço consagrado para revelações existentes na sua criação literária.

Enquanto artista da palavra, Vergílio Ferreira não teve qualquer tipo de pudor de revelar-se a si próprio como escritor autêntico que foi, como seguidor de um caminho literário em que acreditava. Assim foi com o Neorrealismo, por exemplo, mostrando-nos em obras significativas, como Mudança (1949) e Aparição (1959), que o afastamento da ideologia dominante da literatura nas décadas de 1930 e 1940 seria a confirmação do traço diferenciador e autenticador do seu estilo. Quando declara, pela voz de Alberto, protagonista de Aparição, que “o meu [seu] humanismo não quer apenas um bocado de pão; quer uma consciência e uma plenitude” (FERREIRA 1994: 71), evidencia que sua preocupação era outra, bem mais além do saciar a fome puramente física. Ora, tal foi a sua atitude com o gênero ensaístico, posto que, segundo Eduardo Lourenço, nas mãos de Vergílio Ferreira, o ensaio, “pouco respeitador de modelos conhecidos entre nós, ao nível da forma, é-o ainda menos ao nível do conteúdo” (LOURENÇO 1994: 114).

Mas, o que há de tão original e tão particular na investida ensaística de Vergílio Ferreira? Um dos motivos bem pode ser a sua busca constante em procurar dissolver aquela barreira redutora que separava o discurso crítico-científico do discurso artístico-literário, fazendo assim com que o questionamento sobre a essência dos mencionados gêneros textuais se tornasse defasado para o seu exercício de escrita. O que se pode observar, na verdade, é uma disseminação: os discursos filosófico-ensaístico e ficcional-romanesco parecem interagir, a ponto de se tornarem forças polarizantes e mutuamente polarizadoras da práxis literária. Assim, em obras como Invocação ao meu corpo (1969) – talvez, o ponto máximo do seu ensaísmo –, encontramos um Vergílio Ferreira que engloba a inquietação filosófica e a criação literária não apenas numa “criatividade filosófica” (FONSECA 1992: 152), na feliz expressão de Fernanda Irene Fonseca, mas também numa reflexão criadora, indo ao encontro da escrita de um Malraux ou de um Sartre, por exemplo. Tal síntese de gêneros literários poderia gerar uma tensão dialética. No entanto, no caso do autor de Do mundo original (1957), ela engendra uma consonância com aquele conceito do “pensamento poetizante” (RICOEUR 1983: 472), de Paul Ricoeur, e finca a originalidade do escritor português no ensaísmo: trata-se de uma escrita que serve o pensamento, procede-o, segue-o e culmina numa realização estética.

Isto não quer dizer, no entanto, que transforme o ensaio num texto romanesco ou vice-versa. No tocante específico ao tema em foco, seu ensaísmo não intenta expor situações ficcionais, muito mais adequadas e próximas da trama romanesca. Existe, certamente, uma aproximação singular entre os dois gêneros, não há como negar, visto que o próprio Vergílio Ferreira o afirmara inúmeras vezes. Há-de se salientar, nesta perspectiva, que isto ocorre graças à “emotividade que neles reside” (PEREIRA 1997: 145), ponto flagrante de contacto entre eles. 

Destarte, considerando a aproximação e a fusão do reflexivo com o ficcional no seu ensaísmo, a nossa proposta de leitura do texto vergiliano, baseando-se na metáfora do espelho – sobretudo, a do reflexo –, parte inicialmente de Carta ao futuro (1958) e aporta em Arte tempo (1988), em virtude de acreditarmos que estas duas obras autenticam o efeito especular e, por conseguinte, a originalidade ensaística de seu autor.

Mas, por que o espelho, metáfora tão empregada por escritores do quilate de um Machado de Assis ou de um Guimarães Rosa, e tão estudada pela crítica especializada? Porque cremos que, para além da noção redutora de que ele reflita indiscutivelmente a imagem contrária – e nisto Umberto Eco é incisivo: “[…] nem mesmo os espelhos verticais invertem ou emborcam. O espelho reflete a direita exatamente onde está a direita, e a esquerda onde está a esquerda” (1989: 14) –, está o princípio de que o espelho, enquanto metáfora polivalente, torna possível, de acordo com Dirce Cortes Riedel (1974), as ações de olhar e ser olhado, contemplar e ser contemplado.

Vale sublinhar, aqui, que tal inquietação também se faz presente nas reflexões de Vergílio Ferreira. Segundo Augusto Joaquim, o efeito de espelho é um tratamento caro e peculiar, baseado, sobretudo, na presença inequívoca de um EU:

Ambos os eu’s surgem como aspectos de uma mesma realidade gestora. À reação inicial de captura e de destruição de um pelo outro, segue-se uma estratégia de unificação, de alternância, como lábios opostos de uma mesma boca. A simetria, assim desenhada, não altera as diferenças, fá-las agir em simbiose. […] Trata-se de um umbílico parabólico que exercerá um efeito decisivo sobre a natureza dos personagens criados por Vergílio Ferreira (JOAQUIM 1998: 285).

Isto é possível de se perceber em seus romances, particularmente em Aparição (1959), quando, num dos momentos mais significativos da efabulação, ao recordar a sua infância, o protagonista Alberto contempla-se diante do espelho e percebe o que existe para além da imagem refletida: ele próprio. Diz-nos o narrador-personagem:

Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava (FERREIRA 1994: 70).

Interessante observar que um fenômeno muito parecido também ocorre em seus ensaios, até porque o conteúdo que envolve o efeito de espelho muito diz respeito a esta prática de escrita. Explico-me. O espelho em / de Vergílio Ferreira é altamente revelador, porquanto desvela o homem que se contempla e se percebe no momento único de autorrevelação, ou, na belíssima designação de Carta ao futuro (1958), naquele instante de aparição. Em outras palavras, ele autocontempla-se e, ao mesmo tempo, deixa-se contemplar e revelar por nós, leitores / observadores.

Deste modo, é sobre esta obra reveladora que procuraremos nos debruçar, tentando detectar os traços especulares das linhas de sua Carta ao futuro, não apenas em algumas cenas dos romances próximos à sua produção e publicação, mas também em outros textos ensaísticos, sobretudo, em Arte tempo, publicado 30 anos depois.

Originalidade, criação, aparição, situação limite, morte, vida e arte, estes são alguns dos muitos reflexos que compõem a imagem maior do universo literário vergiliano e que, por conseguinte, surgirão ao longo deste percurso. Mais até do que pequenos espelhos, são notas imprescindíveis desta inacabada aventura do ofício da escrita. À necessidade de viver emparelha-se a necessidade de escrever. Inseparáveis, são elas que nos fornecem a imagem, o reflexo indistorcível deste escritor inimitável e ilimitado.

Carta ao futuro: uma auto-escrita no espelho

A princípio, pensar a escrita de uma carta pressupõe, consequentemente, uma mensagem a ser transmitida por um remetente a um destinatário. Pelo menos, isto é o previsível. No entanto, refletir sobre o discurso epistolar de uma obra como Carta ao futuro (1958) resulta num abandono de quaisquer parâmetros esperados. Rosa Maria Goulart, por exemplo, autentica o seu caráter diferenciador ao declarar que, não obstante a sedução que esta tipologia exerce sobre Vergílio Ferreira, “não se trata de uma carta, no sentido rigoroso do termo, embora assuma formalmente algumas características do género epistolar” (GOULART 1997: 95).

Escrita em 1957 e publicada em 1958, a estrutura de Carta ao futuro denuncia o afastamento de seu autor dos tradicionais modelos discursivos epistolares. Primeiro, porque não há um destinatário anunciado e nomeado no seu contexto, a não ser o vocativo inicial, posteriormente repetido (“Meu amigo”). Soma-se a isto o fato de que a mensagem vem subdividida em forma de capítulos, onde, em cada um deles, Vergílio Ferreira enfatiza um aspecto temático importante, dentro da sua concepção de escrita literária.

Resumindo sistematicamente cada um deles, poderíamos destacar os seguintes aspectos nas respectivas partes: I – memória e solidão; II – alarme, evidência e revelação do EU; III – a morte de Deus, a precariedade do corpo, o alarme, a aparição; IV – contingência humana, revelação, realização, terror diante da insuficiência da palavra, compactibilidade do EU, plenitude; V – redenção pela Arte, criação, sentimento estético; VI – essência da vida, emoção, absoluto da Arte.

A partir desta sumária visão geral, percebe-se que muitas das preocupações existenciais, características das obras ficcionais e ensaísticas de Vergílio Ferreira, estão muito bem delineadas nas linhas de sua Carta. Torna-se claro, portanto, que o título constitui um dado altamente emblemático, porque a sua mensagem, o seu conteúdo reflexivo, dirige-se não para um presente imediato e momentâneo, mas para um tempo além daquele a que se refere a sua escrita. Trata-se, realmente, de uma Carta ao futuro.

Mas, para qual futuro? Segundo o seu autor, para um inominável, localizado além do tempo e do espaço: “Escrevo-te para daqui a um século, cinco séculos, para daqui a mil anos…” (FERREIRA 1985b: 9). Sua preocupação encontra-se não na delimitação de quando ou onde sua carta vai chegar, mas como ela será recebida. Nisto, há-de se perceber o pensamento dominante que ronda a escrita deste texto: a necessidade de escrever “pelo prazer de comunicar” (ibidem).

Gosto de pensar, portanto, que, aqui, reside o efeito de espelho de Carta ao futuro, porquanto se existe esta intensa vontade de comunicar algo é porque há um EU empenhado na busca inquieta e incessante por um TU, um “amigo”, um possível destinatário. Em demanda desta outra voz, a escrita deixa de ser a constatação de uma solo voce e ganha uma outra estrutura, na medida em que a epistolografia, segundo o próprio Vergílio Ferreira, “é a forma mais concreta de diálogo que não anula inteiramente o monólogo” (ibidem). Mas, na verdade, é preciso já sublinhar que esta Carta, ao contrário dos destinos previsíveis do gênero, não possui um receptor definido. Fernanda Irene Fonseca chama a atenção, muito lucidamente, para o fato de que o TU, na obra vergiliana, constitui “uma presença ausente” (FONSECA 1995: 252). Por isso mesmo, este TU intensamente procurado pode ser entendido como uma espécie de reflexo desdobrado do próprio EU. Assim, a relação EU-TU passa por um processo especular, visto que, conforme bem destacou Rosa Maria Goulart, esta carta-ensaio “dirige-se a receptores sem rosto” (GOULART 1997: 96), donde se conclui que a sedução pela escrita epistolográfica, nela declarada, sugere a instauração da presença viva de um EU que se joga “por inteiro nesse espaço intervalar” (idem: 112).

Tem razão, portanto, Rosa Maria Goulart quando reitera o caráter singular da proposta ensaística de Vergílio Ferreira, na medida em que a própria Carta ao futuro oferece indícios desta ausência de receptores definidos e deste TU, entendido como uma espécie de desdobramento do EU. Basta recuperar, neste sentido, os últimos momentos da parte II – não gratuitamente onde seu autor se debruça sobre o alarme e a evidência diante da autorrevelação do EU –, quando o efeito de espelho aparece revelando as artimanhas da construção textual: “Assim o que te digo terá talvez para ti as formas de uma profunda identidade, assim nas minhas palavras tu acharás eco da tua voz” (FERREIRA 1985b: 36; grifos meus). Não poderíamos, aqui, entender uma necessidade profunda de escrever, sentimento que habita o EU? Não seria esta Carta um texto remetido a si próprio, estabelecendo um diálogo / monólogo consigo mesmo? E, neste caminho de leitura, a Carta ao futuro não poderia ser lida como uma espécie de auto-herança literária de seu autor, uma auto-escrita no espelho?

Se atentarmos para outras obras, bem próximas à escrita e publicação deste ensaio, será possível detectar relações especulares muito próximas, como é o caso, por exemplo, do romance Aparição (1959): “A minha presença de mim a mim próprio e a tudo que me cerca é de dentro de mim que a sei – não do olhar dos outros” (FERREIRA 1994: 11). Ainda de que o texto em questão seja apenas mais um caso inter e intratextual, dentre muitos, que autenticam a que tempo futuro parece estar destinada a sua carta-ensaio, diante da exposição encontrada na efabulação ficcional de Aparição, não seria de todo peremptório afirmar que a relevância de Carta ao futuro dentro da trajetória de Vergílio Ferreira reside na possibilidade de ela constituir uma espécie de espelho matriz do conjunto temático de sua obra2, posto que nela encontramos uma imagem remissiva, em primeira mão, dos assuntos mais caros pelo seu autor.

E um destes, com certeza, constitui a necessidade imprescindível de uma busca pela autognose do sujeito, levando-o a perceber na Arte um caminho possível para encontrar o estatuto de plenitude, de fincar a sua presença no mundo e num tempo que transcende a própria condição da escrita: “Somos homens. Vemos, ouvimos, sentimos, pensamos. O estarmos vivos é a unificação do que somos até ao raiar do mistério. A arte é o estatuto da plenitude da nossa identificação” (FERREIRA 1985b: 82).

Interessante observar que, neste momento, não há um EU ou um TU, mas um NÓS simbiótico, “umbílico parabólico”, que deixa transparecer aquele “efeito de espelho” (JOAQUIM 1998: 285), na feliz expressão de Augusto Joaquim, porque o reflexo que temos é o do EU que se reconhece diante de si próprio e não nega as relações estabelecidas a partir de sua descoberta e desvelamento. Confirmam-se, assim, as palavras de Fernanda Irene Fonseca, posto que “O ‘herói’ do livro é também esse Outro, o tu repetidamente invocado, interrogado, respondido, enfrentado como reflexo especular do eu e que, como a imagem no espelho, se vê mas não se consegue agarrar” (FONSECA 1992: 173).

Diante de si mesmo, do seu próprio reflexo, do eco de sua própria voz, o autor de Carta ao futuro confronta-se com uma condição contingente: a de saber-se vivo, milagre intransferível de uma descoberta:

[…] o que há de redimir é a fulgurante evidência da nossa condição, mediante uma outra evidência absoluta que a aceite em harmonia, em plenitude. O que há a redimir é a adequação deste milagre brutal de nos sabermos uma evidência iluminada, de nos sentirmos este ser que é vivo, se reconhece único no corpo que ele é, na lúcida realidade que o preenche, […] de nos descobrirmos como uma entidade plena, indispensável, porque ela é de si mesma um mundo único, porque tudo existe através dela e é impossível que esse tudo deixe de existir (FERREIRA 1985b: 66; grifos meus).

É na intensa dramatização, na encenação vigorosa e monológica da situação-limite – o EU no mundo e diante de si próprio – que o ensaísmo de Vergílio Ferreira autentica a evidência iluminada como fonte original da aparição, da auto-descoberta do EU. Há nesta transcendência do sujeito uma autorrevelação de espanto, de deslumbramento, de pânico, ou, como o diria o escritor, de alarme e mistério. Por isso, Eduardo Lourenço chega à conclusão de que toda a reflexão do autor de Carta ao futuro, seja no ensaio, seja no romance, “gira em torno do simples facto de se saber vivo ou até de estar vivo” (LOURENÇO 1994: 114).

Destarte, o conteúdo desta aparição, na concepção vergiliana, consiste na consciência absoluta do EU como contingência, como necessidade, como realidade bruta e jato de vida. É, portanto, o EU diante de um espelho que “registra aquilo que o atende da forma como o atinge” (ECO 1989: 17), sem distorções ou inversões. É a constatação assustadora e tremenda do “fascinante milagre” (FERREIRA 1985b: 59) da autorrevelação de um EU indivisível, compacto, enfim, de uma entidade plena:

[…] é a totalização de nós próprios, incrível individualidade, fulgurante presença, acto puro de ser, absurda necessidade de estar vivo, que é como se fosse maior que nós e nos dominasse e nos vivesse – essa flagrante evidência que nos assusta quando nos olhamos a um espelho (idem: 64).

Mas é exatamente perante esta descoberta singular que surge aquela interrogação “fascinante e sem limite” (idem: 69). O EU indivisível vê-se diante do absurdo da morte e, então, reconhece a precariedade de sua condição humana. O que mais o assusta não é a sensação de perda, mas a de vazio, de vácuo, enfim, do nada:

Mas a morte é algo de mais incrivelmente absurdo, porque é o nada inimaginável, a impensável destruição do absoluto que conhecemos na irredutível e necessária pessoa que somos. […] Mas o nada é a desaparição de nós a nós próprios, a anulação desta evidência que é a pessoa que está em nós, o puro vazio deste quid único, desta realidade que há em nós e nos assusta, porque é terrivelmente viva e verdadeira (idem: 63-4).

O que fazer, então, diante da angústia, do pavor e do alarme instaurados, se a condição humana e finita é insuficiente para transpor esta situação-limite? Qual a solução, se a própria palavra se mostra deficiente para captar o “instante infinitesimal” no momento de revelação da “fulgurante verdade” (idem: 62) do EU?

Ora, frente à inexorabilidade da velhice, da degradação do corpo, da morte e da impossibilidade de um futuro, o ato de criação abre um espaço de esperança para aquela “pequena ambição de sermos eternos” (idem: 76) e surge como a carta de uma herança possível para além da sensação do nada. Ou como o próprio Vergílio Ferreira iria afirmar: “[…] criar é afirmar no homem o sonho de divinização” (idem: 75).

Se Deus morreu ou se ainda vive e assiste, impassível, ao trágico espetáculo da humanidade, o homem reconhece que Ele era antes “o espelho da interrogação original que nos veio no sangue. O espelho quebrou-se, a interrogação ficou” (idem: 52). Sem o espelho inquiridor, o homem interroga-se e percebe que ele também é capaz de construir seu próprio espelho, onde a imagem reveladora e alarmante de sua aparição perdure. Assim, sabe-se também divino, porque a sua aventura nada mais é do que a do ato criador. Conclui, então, Vergílio Ferreira que a criação pela Arte constitui um caminho sacralizador e inverso ao do esfacelamento do corpo precário: “Divino é só o alarme, a evidência do que somos, sinal obscuro de tudo o que nos rodeia” (idem: 53).

Neste sentido, Eduardo Lourenço (1994: 118-9) conseguiu detectar muito claramente, na produção de Vergílio Ferreira, uma escrita ensaística profundamente inquieta, marcada por um constante movimento de auto-questionamento, posto que, quando interroga tais questões, o texto vergiliano também se interroga, numa espécie de desdobramento especular. Daí a nossa aposta em sublinhar tal procedimento de criação como uma escrita no espelho, na medida em que não apenas ele se observa, mas também deixa-se ser observado. Por isso, a Arte e a vivência dela revelam-se como objetos ímpares do exercício de meditação do autor de Carta ao futuro, porquanto elas são a força motriz do pensar vergiliano e, segundo Eduardo Lourenço, delas e para elas “confluem todos os caminhos da sua reflexão, mesmo os que na aparência parecem longe dela” (idem: 119).

Válvula de superação diante da precariedade humana, “estatuto de plenitude” (FERREIRA 1985b: 82), no dizer de Vergílio Ferreira, a Arte não apenas incentiva a ambição de eternidade do homem, mas também revela o espaço especular onde o homem se encontra consigo mesmo e se refaz3:

Toda a obra de arte é um fazer e como tal limitada até mesmo para o que a executa. Como um fazer, ela comparticipa da pequena ambição de quem tem projectos para depois da morte, como comparticipa da distracção, esquecimento. Mas a arte ou a obra enquanto arte é infinitamente maior, porque é um acto de presença nas raízes da vida. Assim a arte, meu amigo, não anula nossa condição, mas precisamente esclarece-a, até à vertigem, diante do nosso desassossego (idem: 77-8).

Ora, não é este mesmo “espelho da nossa condição” (idem: 79) que aparece refletido na angústia de Mário, personagem pintor de Cântico final (1960)? Ao ver-se diante da imagem distorcida do seu corpo, causada pela degradação cancerígena, o artista lança-se por inteiro na demanda de duas vias possíveis, com o objetivo de alcançar as duas obras-sínteses de sua permanência: a Arte – na construção da Capela da Senhora da Noite – e o Amor – no impossível movimento sanguíneo circular de Elsa, num sonho não concretizado com a bailarina em gerar o seu tão almejado filho.

Olhados lado a lado, o ensaio de 1958 e o romance de 1960 (finalizado, porém, em 1956), estes dois textos de Vergílio Ferreira sugerem uma relação especular muito próxima e forte, tendo em vista que as angústias de Carta ao futuro parecem ecoar antecipadamente nas linhas de Cântico final:

Mas a força maior vinha-lhe, sim, da plenitude do acto da criação. Por isso a arte fora para ele sempre uma necessidade de viver (não de se suicidar, como para Elsa), de demonstrar a si próprio que estava vivo: e estar bem vivo era absorver em si o máximo de radiação, vibrar até onde, no mais fundo de si, se repercutia intensamente a presença do mundo, do destino humano – do que se lhe revelasse em mistério. E era porque a “sobrevivência” o não compensava, e porque sentia profundamente que nada mais tinha a dizer – que outra vez, mais lúcida do que nunca, o visitava a anunciação do fim (FERREIRA 1985a: 215-6).

Perceptíveis nas malhas da efabulação romanesca, os reflexos das angústias, das inquietações e do desassossego do sujeito epistolar comparecem nas interrogações e na lucidez com que a personagem vergiliana desenvolve a sua linha de questionamentos. No entanto, os relances especulares não se limitam exclusivamente ao tempo próximo ou ao espaço romanesco vizinho de Carta ao futuro. Em virtude de estarem separados por uma curta faixa de dois anos (o romance fora escrito em 1956 e publicado só em 1960, enquanto o ensaio epistolar concluído em 1957, vindo a lume em 1958), estes dois títulos estreitam laços de ideias do seu autor, estabelecendo uma consonância poética sob o signo de uma “emotividade insistentemente questionadora” (RODRIGUES 2000: 45).

Movido exatamente por esta necessidade de problematização, Vergílio Ferreira engendra um movimento dialogante entre o ensaio e o romance, e mesmo entre as diferentes redes constitutivas dos seus textos teórico-críticos e de cunho filosófico, de tal forma que os reflexos desta escrita no espelho também proliferam por toda a sua obra, propagando-se por pouco mais de uma década, por exemplo, em Invocação ao meu corpo (1969). Nesta, o autor relê a grande problemática da vida humana, colocando-se, mais uma vez, diante de um espelho inevitável e fazendo do seu texto um outro reflexo de Carta ao futuro:

Há só um problema para a vida e mil formas de o iludir: o homem é Deus, mas este Deus é mortal. Necessidade contingente, intemporalidade temporal, absoluto relativizado, totalização e vida do universo e elemento da vida desse universo, máximo e mínimo porque é tudo e nada, é nesta tensão-limite, nesta oposição-limite que tem de situar-se o definitivo problema do homem e entenderem-se assim os mil processos de os sofismar. […] Vivo é só o homem porque se sabe vivo; e é porque se sabe vivo e mortal, que ele é um Deus condenado à morte sem ressureição (FERREIRA 1978: 138-9).

“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Bíblia Sagrada 1975: 49), ecoa a voz divina nas páginas do Gênesis. “Que Deus tenha morrido, meu amigo, é uma surpresa tão extraordinária, que poucos de nós se deram ainda conta disso” (FERREIRA 1985b: 40), revela-nos o discurso epistolar vergiliano. Ora, depreende-se da leitura dos dois títulos ensaísticos de Vergílio Ferreira que o espelho divino está quebrado, cabendo ao homem, portanto, reconstruir outro, onde, aí sim, pode auto-contemplar-se e reconhecer-se também divino, porque eternizado no espaço especular da Arte. Se a ressurreição do corpo é-lhe negada, a sua permanência ultrapassa a contingência corporal efêmera, porque se encontra sacralizada na palavra – mesmo que ainda insuficiente (outra contingência a superar?) – e na Arte. Neste sentido, lembrando o pensar de Eduardo Lourenço (1994), aquele alarme, aquela inquietude, diante da condição humana, ascende à jubilação, à fruição do próprio estado precário do corpo.

É, portanto, do “alarme ao júbilo” (LOURENÇO 1994: 113) que o homem não só vivencia a descoberta de saber-se vivo e mortal, mas também reconhece “definitivamente que Deus tinha morrido” (FERREIRA 1985b: 45). O estilhaçamento do espelho divino permite-lhe, assim, construir o seu próprio e constatar que ele também é um criador, um professante do verbo, do Fiat Lux inicial. Deste modo, as linhas reveladoras da morte de Deus, em Carta ao futuro, iluminam o diálogo especular estabelecido com Invocação ao meu corpo e refletem aquele “desafio que nos lança a contingência e a morte” (idem: 60). Como bem afirma o autor no ensaio de 1969:

Mas o homem descobriu que para lá do efêmero há o necessário, que para lá da aparência há a essencialidade, que para lá da sua miséria até à corrupção há a grandeza até à incorruptibilidade. O gesto do artista responde assim à ambição-limite de reinstaurar Deus em si, reconduzindo-o desde onde o colocara, retirar-lhe os poderes que lhe concedera para os assumir totalmente. A pureza da arte exprime assim a afirmação do absoluto do homem contra tudo o que nele próprio o não é. […] O Deus que vive no homem tem uma linguagem divina e todo o esforço do artista deve ser o libertá-la para que só ela fale e se ouça (FERREIRA 1978: 184-5).

Ao redimensionar a condição divina de uma entidade externa, agora, para a dimensão interna de e em si próprio, o homem reinstaura uma outra ordem, sem abdicar do exercício criador, talvez, um dos poderes mais paradigmáticos que o coloca no mesmo patamar de Deus. Em outras palavras, a “pureza da arte exprime assim a afirmação do absoluto do homem contra tudo o que nele próprio o não é” (ibidem), ou seja, o sujeito depara-se consigo próprio diante de um espelho e procura vislumbrar o que há para além daquilo que o reflexo lhe devolve.

Se aplicarmos esta equação ao texto de Vergílio Ferreira, também o autor parece sugerir a presença do mesmo esforço em libertar a “linguagem divina” (ibidem), na medida em que procura deixar o seu legado a partir de uma herança concretizada em uma forma epistolográfica, mesmo sabendo o seu caráter transitivo, mas tentando driblar a efemeridade do corpo. Não será, portanto, esta sua Carta ao futuro um espaço textual onde aquela linguagem divina se espraia de maneira livre e fluida, e onde, por conseguinte, só ela fala e se ouve?

Por esta via de leitura, é preciso sublinhar que o tempo destinado à Carta se refere a um futuro que o sujeito autoral desconhece, mas que, ao mesmo tempo, o fascina, porque instaura uma relação especular com um Outro, um TU também por ele desconhecido, que poderá ser, inclusive, o leitor por vir. De acordo com Vergílio Ferreira,

A obra que o artista nos inventa é o espelho em que nós nos reconhecemos. Ele não impõe uma ordem à vida, mas descobre-lhe a que os nossos olhos não viam. Porque uma obra de arte não é um antimundo: é o mundo revelado, legível, para a nossa pobre cegueira. A ordem que a obra de arte revela, é a ordem inexorável da vida, nem que ela se defina precisamente pela desordem (FERREIRA 1985b: 78-9).

Diante deste convite sensível e sedutor, nós também, como leitores, somos chamados a participar desta grande aventura de revelação e a nos reconhecermos como cúmplices deste espelho legível que é a Arte. Tem razão, portanto, Luci Ruas Pereira, quando declara que a “atitude de leitura pelo público é, portanto, reduplicadora da experiência do artista, isto é, o público refaz a obra e a experiência do artista a partir da sua própria experiência. Cúmplice da obra criada pelo escritor, o leitor refaz o percurso da criação e recria a obra” (PEREIRA 1997: 142; grifos meus).

Ora, se a Arte é o espelho possível para o refletir-se do EU (do homem), gosto de pensar que Carta ao futuro preenche, então, o estatuto de obra de arte literária e desvela o efeito duplamente especular nele existente: é o EU que vê o TU no espelho, desdobramento de si mesmo; é o autor que auto-escreve (e inscreve?) diante do espelho, chamando o leitor / observador para a aventura da escrita.

A partir da evidência reveladora de que a arte é “um acto de presença nas raízes da vida” (FERREIRA 1985b: 78), passamos a compreender, em Carta ao futuro, as linhas de uma herança escrita na sagração da vida e “do que é nela mais alto e mais profundo” (idem: 95). Perceber a vida significa, portanto, perceber o mundo, a emotividade e a verdade que nos cerca, porquanto “é dentro da emotividade que o mundo tem sentido, e a verdade humana, e a orientação fundamental de tudo o que nos orienta. Porque o sentimento estético é uma comunicação original com a essencialidade da vida” (idem: 97).

  Herança instigante esta, legada por Vergílio Ferreira. Espelho matriz e motriz porque propaga inúmeros reflexos em outras linhas, em outras escritas, enfim (e por que não?) em outras “cartas”. Infelizmente (e de outro modo não poderia ser), sua presença corporal não se faz mais entre nós, restando-nos, apenas, a esperança da grande aventura da Arte, da reconstrução especular da imagem do homem, do artista e do escritor que foi. É esta a sua herança, é esta a sua Carta ao futuro que nos coube chegar às mãos, ler e, sempre, dar por descobrir-se.

Arte tempo: uma escrita inquieta

Publicado em 1988, sob a chancela das Edições Rolim, e reintegrado no volume Espaço do invisível V, dez anos depois, o pequeno ensaio Arte tempo constitui mais um dos títulos monumentais da fase de maturidade de escrita de Vergílio Ferreira. Década altamente produtiva, os anos de 1980 foram o cenário de obras como os romances Para sempre (1983), Até ao fim (1987) e Em nome da terra (1990)4; os ensaios Um escritor apresenta-se (1981)5 e Espaço do invisível IV (1987); além da publicação dos cinco volumes dos diários de Conta-corrente, vindos a lume, respectivamente, em 1980, 1981, 1983, 1986 e 1987.

Num período tão fecundo como este, marcado por textos que consagraram o estilo inconfundível da escrita de Vergílio Ferreira, é de se esperar que Arte tempo esteja impregnado de ressonâncias de outros textos vergilianos que o cercam, gerando com isto um salutar diálogo inter e intratextual com outros discursos ensaísticos e ficcionais. Talvez, por esta razão, Celina Silva tenha concluído que

Arte tempo constitui uma memória lapidar de outros textos pela mesma voz produzidos “quando a reflexão (lhe) era particularmente um modo de (se) entender”, corporizando uma cerrada e circular combinatória de reflexões que, ao longo de todo um percurso literário, pontuam um relevante cultivar da palavra, a um tempo singular e universal (SILVA 1995: 485).

Interessante, aqui, observar o uso da expressão “memória lapidar”. Ainda que o seu emprego aponte para uma proposta coerente de leitura do texto ensaístico baseada num jogo polifônico e dialógico, privilegiando, assim, uma intratextualidade de discursos anteriores e próximos à obra de 1988, gosto de pensar que esta mesma memória também possa ser responsável pela produção de reflexos especulares de um EU, que, inevitavelmente diante do espelho, ao contemplar-se e interrogar-se, acaba por se questionar e por convidar o leitor a um (auto-)questionamento. Com isto, corporiza também uma “cerrada e circular combinatória de reflexões” (ibidem), cuja reação se consolida em angústia e alarme diante da escrita.

A partir do próprio título escolhido por Vergílio Ferreira para o seu pequeno ensaio, percebe-se uma ligação subtil com Carta ao futuro, em virtude do tema nuclear que une as duas linhas de pensamento (a Arte), e do Tempo que, na obra de 1988, se debruça não sobre um futuro desconhecido, mas sobre uma perspectiva mais ampla e geral. Além disto, soma-se a declaração do autor, quando, nas linhas iniciais de Arte tempo, alude à questão que norteia as suas argumentações e criações reflexivas:

Retomo aqui uma questão que me pus há quarenta anos, ou seja quando a reflexão me era particularmente um modo de me entender. […] Num breve ensaio de que este parte, imaginava então um homem que perdurasse pelos milénios e que à pergunta respondesse com uma outra sobre qual belo. Tendo vivido pela emoção, tendo vivenciado as múltiplas formas de arte e recolhido em si a sua memória, como entender que esse homem imaginário tivesse uma resposta? Descobrisse uma unidade na diferenciação? Aceitasse que um mesmo vocábulo poderia harmonizar a contradição? (FERREIRA 1988: 9).

Ou seja, quarenta anos depois da primeira abordagem6, o autor de Carta ao futuro retorna ao tema da Arte. Repetição? Tautologia? Insistência? Cansaço? Absolutamente. A retomada do tema da vivência da arte impregna o discurso de Arte tempo com novas leituras e interrogações sobre a condição humana diante de uma contingência alarmante, além de experimentar o incansável prazer daquele “encantamento de habitar de novo a arte e da maravilha que é sua” (FERREIRA 1998a: 136), como afirma em “Do impossível repouso”7, e evidenciar o diálogo especular entre os dois ensaios, dando ao leitor a sensação de que, na verdade, “eles são na verdade um só” (ibidem).

A grande questão baseia-se na sua preocupação de refletir a Arte como manifestação de uma determinada concepção histórica do belo. Na sua perspectiva, tais argumentações sobre a beleza estão sujeitas ao tempo e, por conseguinte, a orientação estética passa diretamente pelo atrelamento à sua época histórica. A pergunta “qual belo?” torna-se inevitável.

Ora, segundo o pintor Wassily Kandinsky, “Toda obra de arte é filha do seu tempo e, muitas vezes, mãe de nossos sentimentos” (KANDINSKY 1991: 21), logo, se a obra de arte está ligada ao tempo em que foi produzida, não o está menos de quem a produziu. Ao artista cabe, portanto, a função de mínimo-múltiplo comum de seu tempo, porquanto se a obra criada reflete a beleza, a emotividade e a marca de uma criação individual (ou uma concepção delas), ela não menos traz em si os traços inconfundíveis de quem a criou.

Em consonância com esta forma de pensar do pintor russo, encontra-se o autor de Arte tempo, na medida em que, para além dos fatores acima mencionados, também potencializa as tendências do seu tempo, da época em que lhe foi dada a possibilidade de criar. Conforme explicita, “A emotividade sedimento o que é do nosso contacto e pode assim definir-se nas linhas precisas do que nos sugere beleza. […] A beleza de um rosto é uma nossa criação, fundada no contacto ou participação dos elementos que o constituem” (FERREIRA 1988: 11-2).

Independentemente da época em que foi criada, a obra de arte estabelece uma relação direta e especular com o seu criador. E, no caso de Vergílio Ferreira, esta ligação está fincada na arte da palavra, seja ela a romanesca, seja a ensaística: “[…] ela [a arte] é a projecção de nós próprios, a realização do que em nós é confuso, a explicitação e escolha do que em nós é vasto e indeterminado” (idem: 15). Mas, a literatura – a arte da palavra e que por ela se move – é uma arte ingrata, porque ela é o dizível do indizível; porque, como o diz Vergílio Ferreira, “é ridículo este esforço para captar na palavra” (1985b: 62) o instante da revelação criadora. Ou seja, criar pela palavra é estar naquele constante estado barthesiano de desassossego, posto que os signos que circundam a cabeça em “roda-livre” (BARTHES 1989: 143) não podem ser ancorados.

Neste sentido, se a Arte é inesgotável, infinita, múltipla nas suas realizações e vivências, como restringi-la às barreiras do tempo? Não seria isto uma atitude paradoxal? Ao apontar a solução, Vergílio Ferreira revisita as linhas de sua Carta ao futuro nas argumentações do seu ensaio de 1988, esclarecendo que o tempo prende a arte no esteticismo de uma época, mas a eleva para além dele, finalmente vencendo-o. Assim, a arte passaria de paciente a agente e a sua existência estaria fincada para além do tempo do homem, porque a ele transcenderia. Esta possível saída, chamou-a Vergílio Ferreira de “sentimento estético”, posto que reconheceu “que há no homem uma necessidade ou predisposição para que a obra de arte exista” (FERREIRA 1988: 20). Depreende-se, portanto, que o existir da arte vergiliano, expresso em Arte tempo (“Todo o homem é artista no modo primeiro de o poder ser. Toda a arte é uma concretização de um apelo confuso para que a beleza exista”; idem: 24) não se distancia da noção de “sentimento estético” de Carta ao futuro, pois, segundo o seu autor,

O “sentimento estético” da vida […] é a qualidade do que nesse mundo é vida, é a sua exaltação, e portanto invenção plena de beleza. O sentimento estético da vida não é um museu de estátuas e de telas e de ficções literárias: é a dimensão de uma vivência profunda, o reconhecimento do que supera o imediato, olhe descobre a harmonia obscura, nos permite uma última comunhão (FERREIRA 1985b: 88).

Destarte, Arte tempo e Carta ao futuro, não obstante os 30 anos que os separam, relacionam-se especularmente, posto que seu autor inicia intencionalmente o primeiro texto com o assunto que encerrou o segundo. Mais, porém, do que a sensação de continuidade que esta recuperação temática possa acarretar, há-de se perceber uma preocupação de Vergílio Ferreira em sublinhar que o sentimento estético do homem é a sua apetência para o universo da arte. E nisto, também, sobressai uma herança divina, na medida em que, ao criar, ao proporcionar vida e existência a uma obra, o sujeito mais se afirma como homo creator.

A angústia diante da aparição, em Carta ao futuro, passa a ganhar uma outra feição em Arte tempo, não acarretando, porém, uma distorção da imagem original. A inquietação, agora, no ensaio de 1988, é a do artista que se defronta com a redutibilidade da palavra, com as amarras da temporalidade que fazem com que os signos se tornem cerceadores de um determinado real: “A arte literária inventa na palavra o que a excede, mas fixa-o ao mesmo tempo” (FERREIRA 1988: 21).

Experiência angustiante, porquanto o mesmo instrumento de criação é o de fixação de uma realidade temporal. Sentiu-a na pele o autor de Arte tempo, quando nas décadas de 1930 e 1940, por exemplo, a palavra dos neorrealistas se quis engajada e engajante. Entendeu-a Vergílio Ferreira, como também compreendeu que naquela proposta não cabiam as suas indagações. Assim, em Mudança (1949), a palavra vergiliana vislumbrava um horizonte outro, muito além daquele que a realidade ideológica pretendia fixar. Significativo o seu título, porque revela a letra eternamente inquieta e inquietante na criação literária de seu autor.

Tal inquietude também se faz refletida nas linhas de Arte tempo. Retomando o mesmo tom confessional de Carta ao futuro, Vergílio Ferreira extravasa a sua angústia diante da mortalidade, contingência a ser vencida pela busca incessante de uma palavra (con)sagradora da arte. Mas, como, se o risco dos signos em rotação constitui a certeza de uma arte que se mostra equívoca, porque tenta fixar o que não pode ser fixado e dizer o indizível? Mesmo apelando para a metáfora – “o indizível, mesmo do dizível” (idem: 26) –, o deslocamento da palavra ratifica a sua insuficiência e incapacidade. Torna-se, então, improvável de saber o belo, porque a condição humana é temporal e emotiva: “A arte termina na forma, mas é na emoção que começa” (idem: 28).

Por estar dentro da dimensão humana, a criação artística precisa estar mergulhada na emotividade, pois sem ela não há a descoberta fulgurante do artista diante de sua aparição, não há a revelação do oculto, do submerso, do imprevisto, enfim, não há aquela evidência salutar de um reflexo especular, de um envolvimento por inteiro do criador com a obra criada. Aí reside a sua originalidade, dizer o não dito pela primeira vez. Aí ele busca a ideia virginal, criando do nada à semelhança do gesto divino. Do Caos ao Cosmos, o homem revela-se e desvela-se diante do espelho da criação:

A obra de arte, na sua forma mais imediata, é um dedo apontado para o que não víamos e que assim verdadeiramente se criou. […] Assim o artista cria na sua revelação e como tudo o que é revelado, o que ele revela emerge do oculto e imprevisto. E todo o problema da originalidade se funda aí. Ele é um modo de dizer o não dito ou sentido como dito pela primeira vez para que a sua verdade nos atinja e a revelação se nos evidencie (idem: 30).

Em nosso entender, é a sensibilidade vergiliana, diante do ato criador, que faz de Arte tempo um reflexo especular inconfundível de Carta ao futuro, na medida em que, para o escritor português, a grandeza da arte “vem ainda ou, sobretudo, da figuração da vida no que nela é mais profundo e portanto na figuração da beleza que doura e envolve toda a aparição” (FERREIRA 1985b: 86).

Assumindo o risco de criar com um material precário – a palavra – o homem ainda assim alimenta o desejo de perdurar, de buscar o absoluto, transferindo a perenidade da arte para si próprio, numa espécie de tentativa especular desesperada e obsediante: “Toda a obra que nos atinge vivemo-la no absoluto e o tempo espera suspenso na sua duração” (FERREIRA 1988: 40).

Destarte, o tempo ampliaria não só a obra de arte, mas também a sua transfiguração do real. A voz do homem, a “voz intérmina” (idem: 45), no dizer de Vergílio Ferreira, ainda manteria a esperança de ecoar num espaço ad infinitum, numa eternidade possível para além do seu tempo:

A arte é assim um modo inocente de sermos, um modo de nos reencontrarmos conosco na completude de uma adesão, a transcendência de todo o imediato para o espaço maravilhado do encantamento, para o outro de nós que está antes e depois de todo o quotidiano e comerciável. A intemporalidade da arte e a da nossa vivência, mestra e ordenadora e senhora da razão (idem: 40).

Por isso, a quietude significaria a rendição do homem diante de sua condição; por isso, a grande aventura da criação artística é uma constante demanda por um Graal a ser alcançado; por isso, “quer o homem ultrapassar-se: não avançando pelo mundo, mas projetando-se para além do mundo” (JASPERS 1999: 52); por isso, ser impossível o repouso. Nesta perspectiva, quão próximo é o pensamento de Vergílio Ferreira do de Karl Jaspers, para quem “o instante de repouso no mundo não pode pôr-se como realização” (ibidem), porque “tudo continua” (ibidem).

Nesta busca contínua, deixou-nos o escritor português uma Carta ao futuro. No impossível repouso, planejou e orquestrou um feliz casamento entre Arte tempo. Dois ensaios, duas tentativas, pela palavra, de ultrapassar a sua própria contingência. Conseguiu-a seu autor, cuja vida foi uma constante viagem pelas trilhas literárias e cuja obra se tornou maior que ele próprio, afinal, como ele próprio bem gostava de frisar, “toda a grande obra excede quem a realiza” (FERREIRA 1998a: 139).

Uma conclusão (im)possível…

Chegar ao final de um percurso é sempre um desafio, ainda mais se o caminho é duplo e a bagagem densa. Metáforas à parte, a tarefa de analisar dois textos ensaísticos de fôlego, assinados pela pena de Vergílio Ferreira, é tarefa hercúlea. Assim, ao término destas reflexões, que em momento algum tiveram a pretensão de fixar-se como o caminho absoluto das obras vergilianas em foco, até mesmo porque, conforme observamos pelo pensar do autor, a palavra é precária e a busca da realização é contínua, resta-nos, apenas, apontar alguns possíveis resultados deste exercício de leitura, onde, mais uma vez, os ensinamentos de Vergílio Ferreira se confirmaram, tendo em vista que o repouso é sempre um desfecho impossível.

Publicados com um intervalo de 40 anos, os ensaios Carta ao futuro e Arte tempo são registros valiosos do pensamento de Vergílio Ferreira. A angústia, o pavor e o alarme presentes no momento de aparição do EU são sentidos em cada linha dos dois títulos, mesmo porque cada um deles se revela também como uma aparição do seu autor. Se na escrita de um pode ser contemplado o reflexo do outro, ambos oferecem ao leitor a imagem especular do escritor.

Do futuro desconhecido a um tempo para além dele, a Arte continua sendo o grande meio de redenção do homem. Mortal, finito, perecível, efêmero, ele tenta desvencilhar-se de sua condição precária e procura fixar no espelho da arte o seu reflexo permanente, o instante iluminado de revelação e criação.

Certa vez, o escritor argentino Jorge Luis Borges afirmou que “Grande repercussão tem as palavras” (BORGES 1986: 60). Parafraseando a sensível sentença do autor de Discussão, podemos pontuar que grande reflexão especular têm as palavras de Vergílio Ferreira. Talvez porque as saiba precárias e, mesmo assim, procure nelas buscar a transcendência de sua condição, a ascese da criação artística, posto que “a palavra é a expressão definitiva do homem” (FERREIRA 1978: 290).

Assim sendo, seu pensamento expresso em Carta ao futuro e Arte tempo sugere-nos a imagem de um jardim, cujos caminhos, ensaísticos ou ficcionais, sempre se bifurcam e se encontram. E não será esta imagem também tão próxima à do espelho que não nos deixa afastar da imagem refletida? Neste sentido, não será realmente possível ler nos bordados destas duas obras uma escrita no espelho que se move diante das inquietações e das angústias do próprio homem? Talvez, por isso, o movimento contínuo dinamiza as reflexões e as indagações; por isso, como nos ensinou Vergílio Ferreira, é impossível o repouso. E se não fosse, onde estaria, então, a esperança e a redenção do homem?

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