A LÍNGUA: PÁTRIA OU EXPATRIAMENTO?

Paulo Borges

[Uma língua, mais do que um conjunto de convenções, é decerto a expressão de um sopro espiritual e vital, mas também a sua condensação numa estrutura verbal e conceptual, semântica e sintáctica, que condiciona a percepção da realidade e configura um regime de consciência onde essa riqueza e abundância patente na etimologia indo-europeia de real se reduz ao mundo de sentidos, significações, juízos e valorações que um determinado regime linguístico constrói, com um intuito predominantemente utilitário, ao serviço dos interesses humanos dominantes.]

Bernardo Soares escreveu no Livro do Desassossego: “Minha pátria é a Língua Portuguesa”, o que tem sido usado como ornamento em todo o tipo de discursos de circunstância e conveniência cultural e política e invocado para fundamentar patriotismos e neonacionalismos linguísticos vários, como o recente avatar lusófono, omitindo-se nisso, como em todas as simplificadoras instrumentalizações ideológicas dos grandes pensadores e escritores, o contexto bem pouco nacionalista ou mesmo patriótico, no sentido convencional, em que a afirmação se insere: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve com ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja, independentemente de quem o cuspisse” [1].

Mas a questão que aqui nos move é outra. Pode uma língua, portuguesa ou outra, ser uma pátria ou é antes um lugar de expatriamento e exílio? Ou pode ser ambas as coisas e um lugar de passagem entre uma e outra, dependendo da perspectiva e do uso que dela se fizer? Inclinamo-nos para esta última possibilidade.

Uma língua pode ser uma pátria imaterial no sentido em que é o processo em aberto que simultaneamente resulta de uma história e cultura comunitárias e a matriz que estrutura as suas representações verbais e conceptuais e substancial parte do seu imaginário simbólico. Nesse sentido confere um sentimento de identidade e pertença aos seus falantes que os distingue de outras comunidades histórico-culturais, sendo passível de ser considerada ou ideologizada como um poderoso factor identitário. Todavia, sempre que isto acontece, tende-se à abstracção de substancializar como existente em si e por si algo que na verdade, como o mostra o seu devir histórico-cultural concreto, é interdependente das osmoses, diálogos e traduções inerentes à relação de uma comunidade de falantes com outras comunidades de falantes de outras línguas pertencentes ao mesmo ou a diferentes ramos e famílias linguísticas. A história das relações entre os povos não é a história da (não-)relação entre entidades isoladas e separadas dotadas de essências intrínsecas inafectadas pelas interacções e trocas inerentes à sua convivência existencial. Felizmente, a história real e vital dos povos e das línguas transcende as fronteiras artificiais ou estáticas dos seus territórios e instituições, sendo uma história de transumâncias, migrações e metamorfoses. Isto é particularmente evidente nas comunidades linguísticas com vastas, duradouras e muito diferenciadas experiências e relações histórico-culturais, à escala planetária, como a portuguesa e a lusófona. Neste sentido, o entendimento habitual da afirmação pessoana é redutor do que o próprio Fernando Pessoa pensava sobre a vocação universal da cultura portuguesa, a partir da sua diáspora histórica: “ser tudo, de todas as maneiras”, transcendendo “a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé” na plena realização de todos os possíveis humanos. A língua portuguesa era na verdade para si o sopro matricial desse sincretismo cultural, neocivilizacional e até neoreligioso a que, segundo o imaginário mitoprofético da tradição judaico-cristã e portuguesa chamou “Quinto Império” [2], mas sem outro “imperialismo” senão o de “poetas”, esses que “vêem, e anunciam a geografia imaterial por vir” [3], jamais será cartografável em mapa algum.

Mais importante todavia é outro aspecto da questão, que nos permite considerar toda e qualquer língua – porventura mesmo as consideradas sagradas, na sua inscrição terrena – como lugar de exílio e expatriamento. Uma língua, mais do que um conjunto de convenções, é decerto a expressão de um sopro espiritual e vital, mas também a sua condensação numa estrutura verbal e conceptual, semântica e sintáctica, que condiciona a percepção da realidade e configura um regime de consciência onde essa riqueza e abundância patente na etimologia indo-europeia de real se reduz ao mundo de sentidos, significações, juízos e valorações que um determinado regime linguístico constrói, com um intuito predominantemente utilitário, ao serviço dos interesses humanos dominantes. E estes visam primeiro que tudo a instituição de “coisas” e entidades definidas, organizadas e manipuladas pelo intelecto e pelo afazer humanos, destacando-as como objectos da tessitura viva e orgânica do corpo do mundo. Como diz António Ramos Rosa: “As coisas só na aparência têm limites / e cada uma é uma rede inextricável / e silenciosamente vertiginosa // mas nós temos necessidade de limites / e procuramos pela palavra e pelos gestos / rodeá-las de vagarosos contornos / para que se harmonizem com as nossas coordenadas” [4]. Neste sentido cada língua é uma poderosa delimitação do campo de todos os possíveis da consciência, tendendo a encerrá-la nas representações, conceitos e categorias do pensamento discursivo que obscurecem ou reduzem outras possibilidades da experiência humana, como a inefabilidade das sensações corporais, das emoções e sentimentos, das visões simbólicas ou dos estados meditativos e contemplativos de consciência pura, silenciosamente despida de objectos e representações. Cada língua, pelo menos no seu uso comum, tende a encerrar os falantes num mundo antropocentricamente construído, onde se camuflam as raízes arcaicas da linguagem humana nas osmoses com a comunidade da vida cósmica, nas suas inseparáveis, metamórficas e múltiplas emergências, minerais, vegetais, animais e afins às potências invisíveis tradicionalmente designadas como deuses, demónios ou espíritos.

Deste modo, uma língua, no mesmo lance em que configura a pátria histórico-cultural de uma comunidade humana, configura também o seu expatriamento e exílio do multiverso dos silêncios e falas cósmicas. Cada língua humana é um poderoso factor de constituição desse estado comum, normal ou normalizado, da consciência que se assume como padrão de referência para determinar o que é real – por contraste com o qual surgem os “estados alterados de consciência” – , mas que, como adverte Charles T. Tart, “não é algo natural ou dado, mas antes uma construção altamente complexa, um instrumento especializado para lidar com o nosso ambiente e com as pessoas nele”, sendo útil para fazer algumas coisas, mas inútil ou perigoso para outras [5]. O estado comum de consciência é construído mediante a selecção utilitária que cada cultura faz do vasto potencial de experiência inerente ao ser humano, escolhendo e desenvolvendo um pequeno número apenas das suas possibilidades, rejeitando outras e ignorando muitas. Nesta perspectiva, compreende-se que sejamos “simultaneamente os beneficiários e as vítimas da particular selecção da nossa cultura”, condicionada pelas línguas que falamos e nelas traduzida, ao mesmo tempo que se entrevê o enorme interesse dos estados alterados de consciência como a “possibilidade de usar e desenvolver potenciais latentes que residem fora da norma cultural” [6], que inclui a linguística. Deste modo se compreende também o sem sentido e o risco de se cultivar a língua, no seu uso comum e sem mais, como factor identitário, na medida em que isso consiste num reforço e numa cristalização do estado limitado de consciência que lhe é inerente, obstando à realização do dinamismo holístico da própria consciência, isso que Stanislav Grof vê como o potencial heurístico e curativo do holotropismo (a orientação para o todo) das “emergências espirituais”, como caminho por excelência para a evolução humana e a superação da crise de uma civilização doente por se haver falsamente cindico da vida, da natureza e do cosmo [7].

A esta luz se compreende que todas as tradições espirituais da humanidade, na mesma medida em que apostam na oralidade e/ou na escrita, para comunicarem o que por elas pode ser comunicado, incluam nisso a necessidade de um profundo exercício de descondicionamento da percepção do mundo estruturada pela palavra (e pela imagem) pensada, dita e escrita, que convida menos à sua incontida proliferação do que à sua desconstrução e silenciamento [8], não necessariamente definitivo, mas para daí renascer transfigurada como convite a silenciamentos, renascimentos e transfigurações cada vez mais eloquentes e profundos. E não só as tradições espirituais, mas todos os poetas, pensadores, artistas e cientistas que procuram recriar o dizer de modo a que transcenda os limites utilitários e redutores da abundância do real. Há aqui uma comum e decisiva instância poética da linguagem que pode ser despertada e agenciada nas línguas, de modo a perturbar e suspender o dizer humano e oficial do mundo, questionando-o, silenciando-o e transfigurando-o numa mais ampla escuta e interlocução com o sopro das falas cósmicas, que traz consigo a “Redenção” de (voltar a) compreender o “Verbo crepuscular e íntimo alento / Das cousas mudas”, a “língua estranha” das “Vozes do mar, das árvores, do vento” ou “do mar, da selva, da montanha” [9]. É um exercício radical do pensamento e da linguagem, que os recria a partir do silêncio e da escuta do coro universal das presenças e das vozes que é a sua matriz silenciada no uso comum das línguas. Disso depende a mais profunda transformação da sociedade e do mundo [10], que radica na mudança das representações inerentes ao sentido dado às palavras, como bem sabia Confúcio [11].

Sem esse exercício, a linguagem conceptual e verbal – e mesmo a das imagens simbólicas – é uma prisão e um exílio. Com ele, relativiza-se e dissolve-se no espaço entre as grades, que se transfiguram em pontuações do livre espaço do inefável. Sem esse exercício, qualquer língua é um mero sistema de configuração e compreensão do mundo que lhe sacrifica o (ir)real não dito, nem pensado, nem imaginado, porque indizível, impensável e inimaginável. Fernando Pessoa só não errou de todo ao escrever “Minha pátria é a Língua Portuguesa” porque o seu uso da língua era o de um fugitivo por entre as grades que sabia ilusórias, como tudo no mundo, a começar por si próprio. No seu uso comum a Língua Portuguesa é o modo como incompreendemos a Vida ao pensá-la, dizê-la e imaginá-la. Libertamo-nos disso quando no seu sopro nos abrimos à Saudade do que não pode ser pensado nem dito nem imaginado, como via de libertação e/ou recriação de todos os conceitos, palavras e imagens.

 

[1] Bernardo SOARES, Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p.255.

[2] “- O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?

– O Quinto Império. (…) Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? (…) Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa!” – entrevista de Fernando Pessoa a Alves Martins, Revista Portuguesa, nºs 23-24 (Lisboa, 13-10-1923), in Fernando PESSOA, Obras, III, introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, pp.703-704.

[3] Maria Gabriela LLANSOL, Onde Vais, Drama-Poesia?, Lisboa, Relógio D’Água, 2000, pp.45-47.

[4] António Ramos ROSA, As Palavras, Porto, Campo das Letras, 2001, p.75.

[5] Cf. Charles T. TART, States of Consciousness, Lincoln, Backinprint.com, 2000, p.3. Cf. também AAVV, Altered States of Consciousness, editado por Charles T. Tart, Nova Iorque, HarperSanFrancisco, 1990, 3ª edição revista e actualizada.

[6] Cf. Id., States of Consciousness, p.4.

[7] Cf. Stanislav GROF, A Psicologia do Futuro. Lições da Investigação Moderna sobre a Consciência, tradução de Selena Cruz, revisão de Luís Torres Fontes, Porto, Via Óptima, 2007, pp.17-18, 155-157 e 313-342.

[8] Cf. Michael A. SELLS, Mystical Languages of Unsaying, Chicago / Londres, The University of Chicago Press, 1994.

[9] Cf. Antero de QUENTAL, “Redenção”, I, Sonetos, organização, introdução e notas de Nuno Júdice, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, p.149.

[10] “O pensamento radical em nada é diferente do uso radical da linguagem. Não decifra, mas anatemiza os conceitos e as ideias, como o faz a linguagem poética com as palavras. O pensamento radical não é nunca depressivo. O pensamento depressivo está naqueles que só falam de transformação do mundo, mas que são incapazes de transfigurar a sua própria linguagem (Baudrillard)” – José Augusto MOURÃO, Quem vigia o vento não semeia, Lisboa, Pedra Angular, 2011, p.8.

[11] Cf. CONFÚCIO, Analectos, XIII, 3.