A História da Igreja em Timor-Leste: 450 anos de evangelização (1562-2012)

Ximenes Belo, A História da Igreja em Timor-Leste: 450 anos de evangelização (1562-2012)

 1.º Vol. 1562-1940, Porto, Fundação Eng.º António de Almeida, 2013

Maria Luísa Malato

[A Historiografia, política ou literária, colhe muitas vezes utilidade em ser feita por autores que não se assumem como historiadores. É o que  nos revela este livro de Ximenes Belo sobre a historiografia da igreja em Timor, de 1515 a 1940, uma reflexão delicada sobre as ambiguidades dos agentes históricos e dos seus narradores, uma viagem por um espaço linguístico, uma homenagem à cultura, feita também ela de pensamentos, palavras, atos e omissões.]

História da igreja em timor leste revista pontes de vista 01A Historiografia, política ou literária, colhe muitas vezes utilidade em ser feita por autores que não se assumem como historiadores. É que o género científico, como sucede com o género literário, segue regras que o confinam. Compreende-se que o género historiográfico seja cultivado por especialistas, que se circunscreva a um determinado universo temático, que as fontes citáveis sejam em geral impressas, ou manuscritas se citada a biblioteca e a cota, que, por idênticas causas, se não considerem testemunhos orais não acessíveis, que as informações míticas só sejam relevantes se confirmarem as documentais escritas, que se não repitam afirmações ou se estabeleçam nexos de causalidade confessadamente subjetivas, etc… Mas se é compreensível esta retórica do género científico, ela não deixa de eliminar da historiografia um conjunto de informações míticas, conotativas, subjetivas, e muito úteis para perceber a História de uma instituição ou a História de um país. Diríamos até que precisamos sobretudo desse tipo de informação (mítica, conotativa, claramente subjetiva), para perceber objetivamente (isto é, com desejo de objetividade) as causas e os efeitos dos acontecimentos políticos, em particular, ou do processo constitutivo do conhecimento histórico, em geral.

Saúde-se pois a importância deste primeiro volume da História da Igreja de Timor-Leste, da autoria de Carlos Ximenes Belo, que se debruça sobre a maior parte dos 450 anos de evangelização cristã (1562-2012), reunindo documentação esparsa que incide sobre a presença dos missionários em Timor, do século XVI até 1940. D. Carlos Ximenes Belo, Bispo de Dili nos últimos anos do vívido período da invasão indonésia de Timor, Prémio Nobel da Paz de 1996, é bem conhecido do público português. Editou já várias obras de índole historiográfica (Subsídio para a Bibliografia de Timor Loro Sae, ou Antigos Reinos de Timor-Leste). E todavia o autor começa por dizer, logo na introdução desta História, que não se considera um “historiador” diplomado, ensinado pela Universidade a “obedecer aos critérios da ciência e da disciplina”. As razões por que escreve são assumidamente difusas e não exclusivamente historiográficas. Em primeiro lugar, o autor exprime a vontade, desde os anos 90, de comemorar os centenários de 1562 e 1662, datas da fundação da primeira missão dominicana em Solor e do nascimento do Bispo Manuel de Santo António, o primeiro Bispo a residir na ilha de Timor. Assume pois a escrita da História como uma forma de homenagem, ou de homenagens: à ordem dos dominicanos, aos missionários cristãos, aos que permaneceram fiéis à terra timorense, tendo nela nascido (como ele próprio, a 3 de fevereiro de 1948, em Wailacama, no concelho de Baucau) ou tendo-se por ela afeiçoado (como Ximenes Belo vai referindo sobre os que por essa terra enfrentaram a resistência dos elementos ou das gentes). A segunda razão que Ximenes Belo evoca é explicitamente paradoxal, servindo-se o autor de um oxímoro: escreve por hobby e por necessidade. Escrever a História da Igreja em Timor é responder com prazer a um vazio doloroso: a falta de livros acessíveis sobre a História de Timor Leste. E termina Ximenes Belo com uma terceira razão para este livro de História: tenta ele ser uma dádiva aos cristãos de Timor. Uma dádiva não é confundível com uma mera homenagem: uma dádiva pressupõe ainda um testemunho que se quer passar às gerações futuras. Vale a pena (sobretudo se formos amantes da argúcia dos paratextos) refletir sobre o diálogo que se estabelece entre o Prof. Doutor João Marinho dos Santos, o historiador da Universidade de Coimbra que prefacia o livro, e D. Carlos Ximenes Belo, o seu introdutor. Reconhece Marinho dos Santos o quanto a História diplomada deve à “força da subjetividade”, à recusa do “imperialismo da totalidade dos factos e dos acontecimentos”, ao “sentimento humanista” que das palavras de Ximenes Belo emanam. É um prefácio subtil, ciente do indispensável fio da navalha que faz correr o sangue de quem escreve sobre o ignorado. Com efeito, um dos interesses desta obra é levar-nos a gostar da imperfeição histórica.

E nisso se unem os seus dois públicos possíveis: os historiadores de profissão e os leitores comuns dos livros de História. Há problemas significativos que podem interessar a ambos. Como o da periodologia, que não deve tomar na História, cremos nós, mais importância do que a que lhe pode ser dada pelos efeitos retóricos, mnemónicos ou didáticos da Disposição: ajudam a agrupar fenómenos que o nosso discurso mais facilmente pode memorizar, compreender ou enfatizar. Os quatro períodos que compõem esta História de 450 anos são certamente discutíveis: apresentam-se não raramente sobrepostos, mas refletem, grosso modo, os grandes momentos religiosos da descoberta e colonização da Insulíndia. Mas é neles evidente a confluência ou o conflito entre os projetos religiosos e os projetos políticos, a compatibilidade ou incompatibilidade desses projetos com os interesses económicos. O que interessa nesta imperfeita periodologia é a sua enorme utilidade científica. A partir dela, repararmos na pseudo-objetividade das tabelas periódicas do discurso histórico. No Oriente, ainda mais do que em África ou na América, é difícil separar a história da Fé e do Império que fomos dilatando. Os frades desta História ora são missionários ora políticos; ora soldados, ora médicos; ora botânicos ora pedreiros… “Eu serei arquitecto, eu serei alvenar”, teria dito Frei António da Cruz, ao construir uma fortaleza para defesa dos naturais de Solor. Mas não é a História de lugares ocidentais igualmente feita por agentes e ações polimorfos?

Há depois a diversidade dos testemunhos. Ximenes Belo não esconde, nem evidencia, o seu carácter opinativo. O livro dispensa-nos a “boa consciência histórica”, recusando-se a uniformizar a focalização, omnisciente, do historiador com o olhar de Deus. Por entre evidências, citações, histórias comprovativas, o autor transcreve opiniões opostas, acentuando a subjetividade de todas as fontes: X opina que D. Manuel de Santo António era “santo”, Y di-lo “insolente”, e Z retrata-o como um “ambicioso”, acabando D. Manuel de Santo António por ser afinal um fiel caleidoscópio, sujeito a várias “focalizações internas” e parecendo ser o “historiador” um cineasta ciente dos pontos de vista e ângulos da câmara, que se remete a uma “focalização externa”.

Na História como na vida, os extremos tocam-se. Esta História da Igreja lê-se por vezes como se fosse um romance de Luís Cardoso, de tão exata e imparcial que quer ser: diz uma crónica que havia uma lenda, os povos daquela povoação ainda hoje chamam ao local…, contavam que, uma carta anónima, não foi possível saber…. Transcreve-se a opinião do Pe. João Martins de que a terra de Timor é de origem vulcânica, mas não é essa uma opinião errada? Por vezes não há provas acabadas do que é verdade ou mentira, e a História é feita de artifícios, inverosimilhanças e malícias que a vida, ou o rigor, não nos permitem identificar. Ximenes Belo tem a humildade de um verdadeiro historiador: transcreve tudo, evidenciando assim o preconceito, e a pobreza das fontes. Dizemos, mas pouco estudámos. Estudámos, mas à superfície. Osório de Castro, Rui Cinatti têm obras fundamentais sobre os temas timorenses. Muitas das fontes sobre Timor estão em Portugal, nas bibliotecas portuguesas. Mas quem os lê nas universidades em Timor? Como podem ser lidos? E quem disse, quem estudou? Sobretudo foi gente de fora, “malai” como eu fui, quem disse e quem estudou. Está em português, mas também em francês, em flamengo, como vai estando em inglês. Timor foi, até há bem poucos anos, uma terra em que a cultura viva era a cultura oral. Poucos timorenses tinham acesso à universidade, muito poucos estudavam a(s) própria(s) língua(s), menos ainda escreviam e ainda menos eram lidos. Esta dádiva de Ximenes Belo às gerações futuras de Timor é o de alguém que sabe da importância quer da cultura oral quer da cultura escrita. Alguma utilidade haveria de uma edição em tétum, desta História, para ficar mais clara a ponte entre as várias margens do rio. Em momentos charneira (como os de hoje, em que a cultura oral vai sendo destruída), Ximenes Belo quer ser lido, continuado. E corrigido, mal menor e bem maior.

Por fim, ainda que muito fique por dizer, sublinhemos a presença das questões linguísticas nesta História da Igreja: o prazer da “língua”, a complicação da “língua”, ainda hoje assunto certo em Timor, terra de tantas línguas: tétum-praça, tétum téric, fataluco, macassai, mambai, bunac, quemac, tocodede, galole, waima’a, cairui, mediqui, idaté, habo, laclei, naueti, macalere…, a que se juntam o bahasa (indonésio), o português e, mais recentemente mas com crescente importância, o inglês. Ximenes Belo vai-nos insensivelmente ensinando línguas, i.e., formas de nos moldarmos a outras formas de ver. Dá-nos, ao longo de uma obra sobre a História da Igreja em Timor-Leste, o nome de árvores e animais em tétum, língua que a Igreja de Timor sobrepôs às restantes, por ser proibido o uso do português durante a invasão indonésia e para permanecer fiel à cultura dos timorenses: “hali”, nome em tétum do mítico gondão, “lafaic”, nome em tétum do crocodilo, o animal marítimo, de água salgada, que deu forma à ilha de Timor… E explica: ao mar do norte, geralmente mais calmo, chamam os Timorenses “Tasi feto”, ou seja, Mar-Mulher, e ao mar do sul, muito mais bravo, “Tasí mane”, Mar-Homem’. Sai-lhe o multilinguismo com naturalidade: “os missionários faziam as caminhadas a pé ou a cavalo e, nas zonas costeiras, de cora-cora”. E fala-nos do “lia-na’in”, do dono das palavras, daquele homem que conta histórias e apresenta os argumentos nos debates. E vai referindo sempre, enquanto escreve sobre muitas coisas, a importância dos livros, da instrução prática e teórica, das escolas e dos dicionários feitos pelos missionários. Aguarda-se o segundo volume desta obra neste ano de 2015: Em 1515 chegou a Timor o primeiro navio português. Pretextos. Timor é uma nação feita palavra a palavra, como pedra a pedra.

Seria injusto, até por causa dessa importância, não referir aqui o espírito de missão que demonstrou ter a Fundação Eng.º António de Almeida, ao editar esta obra. A capa – ao céu em fogo, como só acontece em Timor na época das chuvas, sobrepõe-se a catedral de Dili antes da destruição – di-la consciente de um público entusiasmado, ainda que talvez difícil, disseminado entre Portugal e Timor, entre a historiografia civil e a historiografia religiosa, entre o mundo profano e o mundo sagrado. E também entre os velhos e os novos públicos que deviam ler este livro. Pelo menos, em Portugal e em Timor.