A lusofonia e a universalidade nas cartas de Agostinho da Silva

Constança Marcondes Cesar

[A fim de podermos considerar a importância da difusão da língua e da cultura portuguesas, é preciso compreender as contribuições que trazem e os valores que comportam.
Procuraremos pô-las em relevo, estabelecendo analogias com as contribuições bem conhecidas por todos, da cultura grega na Antiguidade e a da cultura francesa na Modernidade. Valores como democracia, liberdade e vida criadora foram transmitidos a nós por Atenas; valores como igualdade, fraternidade e, uma vez mais, a liberdade foram traduzidos no mundo moderno e contemporâneo pela França.]

Um povo é uma cultura que se expressa por meio de uma língua, na qual se inscrevem seus valores e sua contribuição criadora para a humanidade.

Agostinho da Silva, pensador luso-brasileiro,[1] nascido em 1906 e falecido em 1994, elogiando a língua portuguesa e propondo a unificação dos povos lusófonos numa grande comunidade, buscou durante toda sua vida promover o reconhecimento recíproco e uma troca de experiências em vista da construção de um mundo mais humano. Esse pensador escreveu muito sobre esse tema[2], mas é nas Cartas[3], enviadas a amigos nos últimos anos de sua vida[4], que podemos encontrar um resumo da sua proposta bem como, exposta de modo muito claro, a idéia inspiradora de toda a ação cultural que empreendou em toda a parte onde ele viveu.

Portugal representou um papel importante no mundo moderno na época dos Descobrimentos: unificou o mundo sob a égide do espírito, fundando cidades e evangelizando os povos. As navegações tiveram como consequência o estabelecimento de diálogos interculturais e ovas relações entre o Oriente e o Ocidente.

Os povos de línguas ibéricas foram um dos pilares da vida do espírito no século XV, graças à grande obra de difusão da cultura, do comércio, das ciências e das técnicas do mundo ocidental. Esta obra foi inspirada, em Portugal e na Espanha, pelo pensamento de um discípulo de Santo Agostinho, Joaquim de Flora, que, no início do século XIII, propôs uma interpretação da história na qual anuncia o surgimento de uma nova idade do mundo a Idade do Espírito Santo.

O Espírito Santo, símbolo da vida criadora, da sabedoria e do amor, da unificação dos povos e do conhecimento das línguas, foi objeto de um culto popular muito difundido na época das grandes navegações.

Na perspectiva de uma interpretação metafísica da história pode-se dizer que as idéias de Joaquim de Flora inspiraram a aventura das descobertas realizadas pelos povos ibéricos[5]. E que o culto popular do Espírito Santo, ainda hoje celebrado em toda a parte, no Brasil e nos Estados Unidos, inspirou a tarefa de evangelização paralelamente à aventura marítima.

É principalmente sobre este alicerce, profundamente estabelecido na cultura portuguesa, que se apresentam os valores-chave deste povo: vida criadora, espírito e amor. Agostinho da Silva acredita que os povos lusófonos, por seus valores, pela fé, a esperança e o amor que os caracterizam são capazes de provocar a instauração de uma nova época fundada na fraternidade e na vida criadora, um reino de ecumenismo e de liberdade.

A construção dessa nova época começará pelo trabalho concertado de diferentes pessoas, reunidas numa Fundação, cuja finalidade é descrita por Agostinho nas suas Cartas.

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Esta Fundação, disseminando centros culturais em países lusófonos, permitiria abrir na Europa, na África, no Brasil, no Japão, na China e na Índia, novas possibilidades de diálogo intercultural fecundo, fundado em uma língua comum, nos países em que os portugueses se estabeleceram desde o século XVI. Esta língua comum seria o meio de difusão de valores essenciais da cultura portuguesa e européia, valores universais que se exprimem por meio da língua. Trata-se, para nosso pensador, de continuar o grande projeto que inspirou toda sua atividade cultural no Brasil, durante 25 anos. Esse projeto foi objeto de uma primeira apresentação na Coleção de folhetos, publicada em Lisboa em 1971, por ocasião da estadia de nosso autor na Bahia.

É nesses escritos que Agostinho da Silva fala da criação de centros de estudos capazes de ligar os países lusófonos. Ademais ele mesmo desencadeou a instalação destes laços por ocasião de sua atividade no Brasil, país que ele considera, nos seus escritos, como “um ponto de encontro entre Europa, Ásia e África”[6], dado que constitui um polo de coexistência de diferentes raças: a indígena, a dos negros de África, e a dos brancos da Europa.

Esta ação cultural, desenvolvida primeiro no Brasil, inspirou a criação de muitos centros de estudos em diferentes universidades brasileiras: o Centro de Estudos Afro-Oriental, na Bahia; o Centro de Estudos Portugueses e o Centro de Estudos Clássicos, em Brasília. Agostinho da Silva foi também responsável por importantes ações culturais em outras universidades brasileiras, nos estados de Goiás, Santa Catarina e Paraíba.

A finalidade dessas ações culturais foi, primeiro, a unificação dos povos lusófonos, a partir do estabelecimento de uma colaboração mais estreita entre as universidades dos países de língua portuguesa[7].

A idéia de uma comunidade dos países lusófonos levou Agostinho da Silva a propor o estabelecimento de uma cultura geral pluriforme, lusófona, cujo objetivo seria o de ajudar o homem contemporâneo a realizar sua vocação de ser humano: vocação de se consagrar à vida criadora, nos campos das ciências, das artes, da cultura. Trata-se, para os povos lusófonos, de ajudar a humanidade a viver de modo mais livre, mais poética; trata-se de mostrar que a humanidade se exprime em cada homem, que ela “é uma só e única humanidade” e que esta unidade representa, no plano do espírito, o que outrora o mar representou: graças às navegações, a humanidade foi enfim compreendida como “um único Mar”[8], dado que os oceanos se comunicam entre si.

Foi esta ação e este grande projeto de unificação dos homens no plano da vida do espírito que nosso pensador retoma nas Cartas, quando aborda o tema de uma Fundação. Conta nessas Cartas que, tendo atingido a idade da aposentadoria, no Brasil, voltou a Portugal, onde vivia da aposentadoria paga pela universidade brasileira de Santa Catarina, na qual trabalhara; dispunha também de uma bolsa do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (ICALP) e do apoio de alguns amigos. Ora, era com a bolsa do ICALP de um lado e de outro lado com o que conseguia economizar da sua aposentadoria e das contribuições de alguns amigos, que ele constituiu os primeiros fundos para o que chamou de “Fundação”. Quer dizer que vivendo de modo muito pobre, voluntariamente, conseguiu obter o dinheiro necessário para a criação desta Fundação[9].

“Fundação”: a palavra significa, diz Agostinho, que alguma coisa começou a existir. A palavra lembra também, diz nosso pensador, os fundos, o dinheiro[10] – dado por ele mesmo e por alguns amigos que partilhavam o mesmo ideal da lusofonia. A Fundação tem por missão, primeiro, ligar os grupos de pensadores lusófonos disseminados no mundo, depois grupos de pensadores das culturas ibéricas e, enfim, pensadores de outras culturas[11].

Todos estão convidados a serem co-fundadores, associados, companheiros neste empreendimento; e cada um, onde quer que esteja, realizando seu trabalho, pode contribuir.

Esta Fundação será constituída por todos os que, sozinhos ou com outros, tratem de resolver problemas de sobrevivência, de conhecimento, de ajuda mútua. Trata-se de ajudar todos os seres humanos a terem o que comer, a encontrarem um abrigo, a poderem se vestir; em suma, trata-se de estabelecer ações concretas, pontuais, para ajudar todos os homens a terem uma vida humana. A fim de atingir esse objetivo, a Fundação começou seu trabalho ajudando uma pequena escola de crianças muito pobres, no Brasil. Tratava-se de organizar esta escola como cooperativa de alunos, como apoio da prefeitura. Tratava-se também de obter a terra e de cultivá-la, a fim de assegurar a sobrevivência dessas crianças e de suas famílias. Esta pequena escola é, na perspectiva de nosso autor, um símbolo e um anúncio de uma vida melhor para todos[12].

A Fundação contém em germe três outras organizações. A primeira, uma comunidade de pessoas de língua portuguesa, reuniria os povos da Península Ibérica, da América Latina, de África e das regiões do Oriente onde os portugueses outrora se estabeleceram ou visitaram. A propósito desta comunidade, Agostinho da Silva sublinha que o português já é uma das línguas oficiais da Organização da União Africana[13].

Uma segunda organização seria dedicada à promoção da liberdade dos homens, dos animais, e à conservação da vegetação da paisagem.

Uma terceira organização seria dedicada à difusão da mensagem e da cultura dos povos da Península Ibérica no resto do mundo.

O papel de nosso pensador, idealizador desta Fundação (mais utópica que real, durante a vida do filósofo), seria, primeiro, o de estabelecer um diálogo permanente com cerca de 700 pessoas, para incitá-las a realizar ações concretas em vista do estabelecimento de um mundo melhor. Essas 700 pessoas, na perspectiva de nosso autor, constituem em número um grupo análogo ao das pessoas que desencadearam, no momento da expansão marítima, a difusão da cultura portuguesa[14]. Quer dizer que Portugal, no século XVI, mudou o mundo com as poucas 700 pessoas envolvidas na expansão marítima; com um número análogo de pessoas, pode-se começar uma nova expansão, ao nível da vida do espírito, bem como um tempo novo para a vida da humanidade atual.

Nosso pensador exerceu assim um papel de animador, que favoreceu a realização dos outros homens. Tratava-se, para ele, “de integrar o problema individual (…) em alguma coisa de maior amplitude, que possa englobar outras pessoas”[15] em um projeto comum.

A contribuição de Portugal à cultura pode assim restituir ao país sua grandeza e importância passadas, na medida em que estariam religados, num primeiro momento, os países lusófonos, em seguida os ibéricos e, finalmente, os de todas as outras línguas[16]. De fato, para Agostinho da Silva, a palavra é um meio privilegiado para unificar os homens e estabelecer acordos entre os povos e as culturas.

A língua é o veículo de construção de uma comunidade mais humana, onde a economia não estaria fundada no trabalho dos homens ou dos animais; onde a educação seria um meio de realização do conhecimento; onde a política seria votada à abolição das classes sociais, à realização do bem de todos[17].

A Fundação não terá estatuto, regra, sede, nem muito dinheiro; será, antes de mais nada, uma inspiração e uma ajuda a todos os que buscam realizar sua vocação e ajudar os outros a encontrar seu caminho, na mais profunda liberdade. O que a Fundação busca é uma revolução: uma revolução pessoal, tendo repercussões no mundo de cada um. Os modelos desta revolução são, segundo Agostinho da Silva: São Paulo, São Francisco, Buda, Ramakrishna. O que nosso pensador propõe ao homem de hoje, é uma regra de vida, um sentido ético da existência. Trata-se de cultivar a simplicidade, o despojamento, a disciplina, como os mestres espirituais o fizeram; mas sem se retirar do mundo, com “calma, bom humor, paciência, entusiasmo, fé no triunfo [dos ideais], e com uma confiança absoluta nas qualidades do homem […]”. É preciso saber esperar o momento propício, “mas escolhendo o próprio caminho e não esquecendo nunca o objetivo [a atingir]; é preciso estar sempre aberto a todas as idéias e sempre acolher todos os estímulos”[18].

Agostinho da Silva foi um dos inspiradores da criação de uma Comunidade dos Países Língua Portuguesa. Propôs a criação de um Conselho Internacional de Língua Portuguesa, seguido da criação de Conselhos Internacionais de Economia, de Educação, de Organização Política, de Filosofia, que possam desvelar elementos comuns da cultura dos povos lusófonos[19]. É preciso, diz êle, buscar a unidade de pensamento e de ação que possa contribuir para a construção de um mundo mais humano: é a tarefa dos povos lusófonos.

Nosso autor diz: “[…] há um futuro para todos os países da língua [portuguesa] e para os países de expressões ibéricas. E, para eles, graças ao que saberão ser [e] não só por aquilo que saberão dizer, [há uma] saída criativa para todas as dificuldades nas quais o mundo de hoje se acha mergulhado. [Esta saída será encontrada através] da ação mais simples e talvez mais difícil de todas: ser o que se é, cada respeitando e compreendendo o que os outros são[…]”. E ainda: “é preciso manter a fé e a esperança no homem, na certeza de que toda a humanidade poderá, um dia ‘admirar e louvar o esplendor da Vida’”[20].

Agostinho da Silva considera esse projeto como um modo de superar a grande crise contemporânea. Esta crise aparece através do esgotamento das fórmulas da economia, da planetarização da técnica, e na nova configuração geopolítica do mundo. Ele observa que não há mais só uma Península Ibérica, mas duas: a segunda é a América Latina, e as duas juntas unificam os dois oceanos: o Atlântico e o Pacífico, aproximando assim a Ásia, a Europa, a América e a África[21].

Escreve: “[…] considero o Brasil, no Ocidente, e a China, no Oriente, como centros de renovação e fundamentos do futuro, no que concerne à economia e à organização social, da mesma maneira que vejo a Península, a América Ibérica, a África e os países do Oceano Índico como fontes de reabilitação humana para esta Euro-América […]”[22], que perdeu sua alma.

A língua portuguesa, mãe e pátria de todos os que em toda a parte no mundo são os lusófonos, é a Arca da Aliança que contém valores tais como o amor, a fidelidade a si mesmo, a coragem, a liberdade e a inventividade característicos das culturas que se exprimem nessa língua.

Esses novos polos do diálogo intercultural, inter-racial, inter-religioso, têm como denominador comum a lusofonia.

O que Agostinho da Silva propõe é análogo a um empreendimento já em curso em um outro campo: a difusão da língua francesa foi, durante muito tempo, o veículo de valores como a cultura e a liberdade, valores que a França disseminou no mundo. Esse papel, que tem muitas afinidades com o que Agostinho propôs aos centros de estudos que ele fundou, já é levado a efeito, no âmbito da língua francesa, pela Aliança Francesa e pela Associação das Sociedades de Filosofia de Língua Francesa. É um papel análogo que nosso pensador prevê para os países lusófonos, mas ampliado, dadas as implicações que tem nos campos econômico, político e espiritual. O diálogo entre os países lusófonos fará surgir, diz ele, uma enorme força política e cultural que poderá contribuir de modo decisivo para a inscrição de valores mais humanos no mundo vindouro.

Em resumo, pode-se dizer que, na perspectiva de nosso autor, é preciso que os países lusófonos comecem a estabelecer relações entre si, por meio de intercâmbios culturais, econômicos e políticos. Depois, é preciso que ampliem esse diálogo, estabelecendo relações com os outros povos ibéricos e com os povos da América Latina; enfim, que estabeleçam relações com os povos que falam as outras línguas do mundo.

Os versos do poeta Hölderlin, que Agostinho conhecia muito bem, pode resumir o grande projeto da lusofonia que nosso pensador propôs: “nós, homens, somos um diálogo”.

Bibliografia

PINHO, Romana Valente, O essencial de Agostinho da Silva, Lisboa, Imprensa Nacional, 2006.

SILVA, Agostinho da, Dispersos, org. Paulo Borges, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1988.

[1] Para uma biografia de nosso autor, ver o livro de Romana Valente Pinho, O essencial de Agostinho da Silva, Lisboa, Imprensa Nacional, 2006.

[2] Podemos assinalar exemplos desta perspectiva nos seguintes escritos: “É urgente unir as Universidades de Língua Portuguesa”, “Ecúmena”, “Bahia: coleção de folhetos”, “Exortação à Portuguesa Língua”, “Sobre a Cultura Portuguesa”, que encontramos no livro organizado por Paulo Borges, Dispersos, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1988.

[3] No que concerne às “Cartas”, Idem, pp. 795-846.

[4] As Cartas foram escritas entre 1986 et 1987.

[5] Ver, sobre esse assunto, as atas do congresso sobre a obra de Joaquim de Flora, realizado em San Giovanni in Fiore em 1989; ver também os diferentes números da revista Florensia, publicada pelo Centro Internacional de Estudos Joaquimitas, em San Giovanni in Fiore. A difusão das idéias de J. De Flora contribuiu muito para inspirar o empreendimento das navegações. Esta difusão ocorreu em Portugal, na Espanha, na Itália, na França e teve um papel decisivo no desencadear da aventura. Em San Giovanni in Fiore encontramos estudos publicados pelo Centro Internacional de Estudos Joaquimitas sobre esse assunto.

[6] Agostinho da Silva, “Bahia: coleção de folhetos” in Op. cit., p. 493.

[7] “É urgente unir as universidades de língua portuguesa”, entrevista realizada por Orlando Raimundo, Diário Popular, 5 de Maio de 1986 in Idem, pp. 121-3.

[8] “Confirmação” in Idem, p. 688.

[9] “Cartas” in Idem, p. 795.

[10] Idem, pp. 796-7.

[11] Idem, p. 797.

[12] Idem, p. 800.

[13] Ibidem.

[14] Idem, p. 796.

[15] Idem, p. 801.

[16] Ibidem.

[17] Idem, p. 802.

[18] Idem, p. 803.

[19] Idem, pp. 805-6.

[20] Idem, p. 846.

[21] Idem, pp. 823-4.

[22] Idem, p. 827.