A Língua Portuguesa como objeto da Filosofia

Manuel Cândido Pimentel

[Constitui uma representação pueril querer admitir a existência do pensamento sem a língua ou fora de uma ordem de linguagem, o que nos pode desde já servir à ideia de que não há filosofia sem língua ou de que a filosofia fala a língua, filosofia que é sempre a máxima expressão do pensamento de um povo ou de uma cultura, pois que a filosofia é o saber das articulações do sentido em busca do melhor sentido, indo da plurivocidade da metáfora para a univocidade do conceito.]

1. Conversando com o Minotauro

Porque cada um fala uma determinada língua natural, possui um sentido intuitivo da língua como instrumento de que dispõe para comunicar com outros. Esta dimensão da instrumentalidade de uma língua é aquela que praticamente assoma no conceito que dela faz a inteligência adormecida, que é o senso comum. Para este, a língua delineia os contornos da sua pregnância comunicacional no mundo dos instrumentos, que são utensílios, e cuja forma de existência é funcional ou consiste em estar aí, ao alcance da mão, para o uso dos seres humanos. Trata-se de um investimento pré-cognitivo e pre-tético que não excede os pressupostos pragmáticos da posse instrumental, do seu uso e ação. O carácter de instrumentalidade da língua não diz, porém, o que ela seja, mas tão-só que a língua não é ela mas para que serve.

Jose Ramon Diez Rebanal
Jose Ramon Diez Rebanal

O saber sobre o que é a língua só pode ser procurado ao nível da linguisticidade da própria língua. A pergunta pelo logos da língua tem, em parte, a ver com o que é linguístico na língua, enquanto ela é sistema ou estrutura de relações estáveis fora de todo o tempo, e tem a ver também com o que dela emerge, tanto quanto no que ela submerge e ela encobre, muito, pois, além da linguisticidade do dizer ou da palavra que fala (não nego aqui a distinção de Saussure entre langue [língua] e parole [fala] ou de competance [competência] e performance [execução], na indicação de Chomsky) e talvez mesmo além desse não-tempo da próprio língua, que não é redutível ao linguístico mas que não tem forma de ser, estar ou exprimir-se a não ser linguisticamente, que é do domínio do que Heraclito chamava o koinòs lógos, o logos comum às existências que acordaram e se acenderam no fogo inteligível do próprio logos, que as inteligências descobrem no desabrochamento da razão e da linguagem em comum.

O próprio mundo dos instrumentos alumia-se se descemos à raiz do koinòs lógos onde se ilumina a própria linguagem – palavra ou fala, enquanto ela é o sistema que reúne a língua e o dizer ou é essa instância de silêncio radical onde o pensamento fica (ato contemplativo), escuta e ausculta. Assim, quem interrogar o que é o mundo do utensílio, verá que este e a língua, como instrumento nele, se transfiguram num cenáculo que recebe inundações do logos, que anunciam a própria instrumentalidade como algo cuja razão não subsiste nela mesma ou que é insuficiente para gerar a unidade mesma do mundo dos instrumentos. Tal como qualquer instrumento, a língua necessita de um mais além que explique o seu ser essencial.

A fronteira entre o “ser” e o “dizer” está nesse fio que o labirinto da linguagem tece e destece continuamente. Também aí, na mesma fronteira, o acontecimento principal de que há que reter o principal significado é este: que o fio, unidade e diversidade do ser no dizer, está por toda a parte e em toda a parte nasce e acode, exprime-se e morre, para nascer e de novo acontecer, e assim sucessivamente. Esse acontecimento é o sentido. O que há a reter é precisamente isto: que a língua e a fala são, nas ordens que instituem, densidades, estremecimentos, conformações de sentido. Conquanto a fala negue a organicidade do sentido na linguagem, fá-lo precisamente graças ao sentido, pelo que o absurdo, por exemplo, só é possível pela correlação com o sentido, sendo interessante observar que a afirmação do sentido carece de qualquer antónimo, enquanto o mesmo não se passa com o absurdo, cuja compreensão se faz na relação direta com o sentido, ainda que na insinuação de uma ausência de este.

Toda a filosofia, qualquer que ela seja, é saber sobre ou acerca do sentido. Este é prévio a todo o enigma, prévio a todo o mistério, prévio a toda a admiração. Assim, quem pergunta, quem interroga, quem admira, pergunta, interroga e admira porque a pergunta, a interrogação e a admiração têm suporte no sentido e desde o sentido se orientam os atos de perguntar, interrogar e admirar para o objeto a que respeitam.

A fórmula ontológica de Leibniz, segundo a qual se questiona por que há o ser e não o nada, tem a sua verdade firmada nesta, que poderia reescrever-se segundo uma fórmula hermenêutica: Porque há o sentido e não o nada? Quem ouse pensar que a fórmula é estritamente linguística note o quanto há de organicidade de sentido no corpo humano (lugar, aliás, de múltiplas linguagens) e quanto de sentido necessita a minha vida para que eu sobreviva aos embates da sorte e do absurdo. Nos limites, ganha fortuna a ideia camusiana do suicídio como questão filosófica extraordinária, e em face da sua possibilidade, apenas no heroísmo do sentido se guarda a resposta. Assim se poderá estabelecer: Quem mata o sentido morre!

2. A filosofia fala a língua

Vale a pena que transitemos agora do significado angular e existencial do sentido para a língua e a linguagem enquanto dimensões onde o sentido é gerativo, isto é, ele é gerado pelos vastos processos de interação linguística, que vão das estruturas de uma língua para os processos da sua verbalização criadora e temporal, o que põe a questão interessante, mas poderosa, da relação intrínseca ou extrínseca da língua com o pensamento, que não independe para mim dessoutra relação entre a linguagem e o conhecimento. Comecemos por esta última, recordando, em primeiro lugar, que a formulação do conhecimento é feita mediante enunciados linguísticos, o que impõe reconhecer que, de um modo geral, as formas humanas do saber e da sapiência se expressam linguisticamente, podendo ou não fazê-lo na linguagem natural, que é a linguagem do nosso uso quotidiano e aquela de que aqui sobretudo me ocupo.

Além disso, a compreensão que o sujeito atinge de si, a reflexão que a subjetividade desenvolve sobre ela mesma ou do pensamento (cogito) sobre si próprio, são mediadas pela função linguística. É uma imagem impossível um cogito possuindo-se diretamente sem a mediação de uma linguagem. Finalmente, e como nota mais distinta, a relação do pensamento com a realidade implica a mediação da linguagem no processo de apreensão e de compreensão que aquele faz desta, donde ser o ato cognitivo ou noético intrinsecamente linguístico, pelo que, em consequência, as estruturas da língua atuam em comum com as estruturas cognitivas. Assim, toda a apreensão cognitiva é necessariamente linguística, e de tal modo o é que não é possível determinar nos processos noéticos e de verbalização do pensamento o que seja uma estrutura cognitiva independente das estruturas linguísticas.

Dito isso, torna-se agora mais fácil compreender a relação da linguagem com o pensamento ou vice-versa, residindo a questão em investigar se em relação ao pensamento é possível distinguir o processo do pensamento puro do processo secundário da sua verbalização, isto é, saber se se trata ou não de um único processo do pensamento realizado numa dada língua. Não é manifestamente possível admitir que entre o pensamento e a língua não exista diferença. Autores como Ferdinand de Saussure, Adam Schaff e Noam Chomsky são unânimes em concordar numa visão não monista do problema, não confundindo pensamento e língua, não sendo, no entanto, possível admitir que o pensamento seja alguma coisa (um «cogito») sem que nele se exerça a estrutura da língua. Constitui uma representação pueril querer admitir a existência do pensamento sem a língua ou fora de uma ordem de linguagem, o que nos pode desde já servir à ideia de que não há filosofia sem língua ou de que a filosofia fala a língua, filosofia que é sempre a máxima expressão do pensamento de um povo ou de uma cultura, pois que a filosofia é o saber das articulações do sentido em busca do melhor sentido, indo da plurivocidade da metáfora para a univocidade do conceito.

Defende Saussure que é precisamente a língua, que ele define como um sistema de regras semânticas e de relações gramaticais, independente dos locutores da língua, que dá ordem à massa amorfa do pensamento, pelo que o surgimento das ideias e a distinção entre elas só pela língua se dão. Schaff faz uma defesa cerrada da união orgânica do pensamento e da linguagem, numa tal interdependência que tanto o pensamento como a linguagem interferem nos processos de conhecimento e não podem manifestar-se sob forma pura. Finalmente, Chomsky, o mais filósofo dos linguistas, por cuja obra manifesto simpatia, concebe a linguagem como uma faculdade do pensamento, mas faculdade sui generis, pois que, necessitada sempre pelo pensamento, sem ela não poderia este manifestar-se.

Na lição de Chomsky, ideia que aceito, o espírito humano possui um poder cognitivo inato que estabelece o domínio dos princípios e conceitos que determinam a interpretação da realidade e todo o domínio da experiência cognitiva. Assim, sob o ponto de vista estrutural, concebe Chomsky aquilo que designou por gramática universal (GU), a existência de estruturas universais inatas, como, por exemplo, a relação sujeito-predicado, comum a todas as línguas, hipótese que é de uma elegância sedutora e jamais destruída pela crítica do empirismo linguístico. Sobre ela repousam os fundamentos da gramática generativa, que é a teoria linguística que Chomsky constrói entre 1960 e 1965, colaborando com outros linguistas. Tal teoria pretende captar a essência dos mecanismos da criatividade do sujeito de linguagem, explicando a capacidade que ele possui para construir enunciados, emitir informações, compreender frases inéditas e aprender línguas. O par concetual a que já aludi (competance/performance) remete para o primeiro termo o sistema de regras universais interiorizadas pelo sujeito e para o segundo a capacidade do indivíduo criar enunciados de sentido a partir do sistema de regras universais. Assim, a GU é uma característica inata da mente humana, explicando ao mesmo tempo a unidade e a diversidade das línguas, já que ela é o que há de universal comum a todas elas.

O que fascina na hipótese cartesiana de Chomsky é sobretudo o modelo explicativo que propõe, que não ficou em Babel a unidade das línguas mas que esta unidade (que é o graal dos linguistas) acompanha originalmente cada língua e estruturalmente influi sobre o pensamento, o conhecimento e a compreensão do real, uma espécie de big bang linguístico cujo rumor ecoa e estrutura o universo das múltiplas línguas. É sobretudo este suposto transcendental que justifica a meu ver que a língua que a filosofia fala seja particularmente aquela filosofia daquela língua e não outra. A vexata quaestio das filosofias nacionais, que não é aqui o meu escopo, é uma falsíssima questão com que tantos se afadigaram, reduzindo-se o problema ao testemunho da presença da língua na filosofia, que é daquela que esta se adjetiva.

Outro problema diferente, bem sei, é o da vocação filosófica de uma língua. Problema, como aquele, inglório afinal. O que quer isso dizer? Que uma língua natural pode não ser adequada à expressão filosófica? Não há língua, tomada em sua origem comum com outras línguas, que não sirva à filosofia ou que seja inadequada à expressão filosófica. Têm valor residual os critérios de debate e de combate pelas filosofias nacionais que se situaram nas linhas de fogo da antropologia e da psicologia do “caso português”, pró ou contra, da caractereologia e da situação do homem português, por serem exteriores a uma investigação que cumpriria melhor se situasse nos argumentos em torno da língua portuguesa e atendesse primeiro à relação vincular da filosofia com a língua, expressa na afirmação de que a filosofia fala a língua.

Álvaro Ribeiro, António Quadros e Pinharanda Gomes não desconheceram o problema; e sobretudo António Quadros, quem, como Agostinho da Silva, foi muito sensível à dimensão linguística da cultura e da filosofia. Todos, porém, procuraram chaves para o problema situando-se já no aterro da historicidade da língua. Daí só podem vir respostas para a maior ou menor maturidade de uma língua para a filosofia, campo especial ainda para as teorias terminológicas ou vocabulares, segundo as quais a estatística dos termos e a especificidade de alguns termos garantem a realidade nacional da filosofia. Este é sobretudo o caso de Teixeira de Pascoaes e da sua tese da intraduzibilidade de determinadas palavras do vocabulário português, segundo uma conceção imagético-cognitiva, até mesmo onirista, tropológica e sentimental-afetiva da língua portuguesa. Pascoaes incarna na A arte de ser português uma versão anatomopatológica da linguística, o que se compreende, pois que, como poeta, estava naturalmente voltado para o poder sugestivo e semiopoético da fala (fala que é aqui o todo que reúne o fonema e o lexema, a sincronia e a diacronia, a competência e a ação).

Só no trânsito do terreno da fala para a relação vincular da filosofia com a língua é que se garante a universalidade da ideia de que a filosofia fala a língua, ou uma língua que a filosofia tem como expressão e meio, veículo e objeto de sua preocupação. A importância da língua para a filosofia é, pois, única, e a ela se reduz o problema das filosofias nacionais. Se, por outro lado, é a língua que nos habita, que imane e se casa com as estruturas da cognição e do pensamento, é também a língua que inventa os povos e as pátrias.

Contrariamente à aceção de Pessoa, a língua não é pátria mas mátria, para adotar uma criação do excecional génio que foi António Vieira. A sua condicionalidade matricial aproxima a língua da terra, uma terra ageográfica, que pode ser lusa e lusófona, portuguesa ou brasileira, africana ou asiática, de cá ou emigrante, língua de sete partidas, cuja universalidade quis António Quadros que se refletisse na filosofia ou com cujo mapa-múndi sonhou Agostinho da Silva para berço de fraternização de povos e raças.

3. Pensar a língua e a linguagem

Pela sua evidência, não há que encarecer por argumentos e fundamentos a importância dos fenómenos da língua que ocorrem historicamente e nos confirmam no terreno da sua evolução e destinos. Pinharanda Gomes, num texto de 1965, “A autonomia filosófica da língua portuguesa antes do século XVIII”, incluído em Filologia e filosofia (1966), e na Introdução à História da filosofia Portuguesa (1967), mostra-se muito preocupado com a autonomia filosófica da língua portuguesa, o que não é questão despicienda, que se ergue historicamente do seio da fala e da cultura.

A maturidade filosófica da nossa língua, contra opiniões contrárias, aconteceu antes do século XVIII, recuando até ao século XIV, para a primeira obra de carácter filosófico que é a Arte de trovar, ou Poética fragmentária, que precede o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, e seguindo depois para o século seguinte com o livro A corte imperial e, de D. Duarte, o Leal conselheiro (1428). A língua portuguesa exprime-se nas suas potencialidades filosóficas nestas obras, sendo sobretudo o Leal conselheiro um texto onde o português adquire subtilezas de análise fenomenológica da vida afetiva, como o tratamento do humor merencórico ou de sentimentos como o nojo e a saudade, a tal ponto que do Rei-filósofo se poder dizer ser ele o primeiro filósofo de língua portuguesa. É sobretudo ele que demonstra a ductilidade do português para a expressão filosófica.

A língua não é – particularizemos: de um modo geral, as línguas ibéricas (castelhano incluído), e, entre elas, o caso singular do português, cuja independência, para o ponto de vista pátrio e cultural, assinalou evoluções paralelas ao castelhano – a língua não é, dizia, uma simples estrutura adjacente à cultura nem a cultura é um sistema independente da língua e do pensamento que linguisticamente pensa numa dada língua. A valoração filosófica e o enriquecimento estrutural, dinâmico e vocabular da língua portuguesa, como para qualquer outra língua, depende obviamente da sua autonomia política pátria. O caso de outras línguas ibéricas que sofreram a asfixia do castelhano contam, por exemplo, uma história diferente de evolução. Para essa valoração entram também em linha de conta a produção filosófica dos autores e o trabalho incomparável da tradução, que é uma forma de enriquecimento vocabular da língua filosófica e um dos aspetos que não pode deixar de ser considerado no diálogo com outras línguas, povos e culturas.

Não se preocupar com a língua é amputar a compreensão da própria filosofia como expressão máxima do universalismo de uma cultura. Heidegger poderia confirmá-lo, entre outros, fora da nossa nacionalidade; no interior das nossas fronteiras, há tantos casos sobre a importância filosófica da língua e, em especial, sobre a importância filosófica da língua portuguesa (de Teixeira de Pascoaes a José Enes). E poderíamos até recuar no tempo: para D. Duarte, como vimos, ou para posteriores, como Domingos Tarrozo, ou lembrar a filosofia que toma por objeto a língua portuguesa, dispersa pela exegese, prosa e reflexão dos nossos antigos gramáticos, autores de gramáticas filosóficas, como é o caso da mais completa, a Gramática filosófica de língua portuguesa (1822) de Jerónimo Soares Barbosa, para quem a época viril da língua portuguesa começou com o reinado de D. Dinis (nasceu em 1261 e faleceu em 1325), cuja corte foi um dos centros intelectuais e literários mais notáveis da Península Ibérica e sob cujo reinado se tornou o português a língua oficial do país.

Se a hipótese acerta, a língua não é de simples carácter instrumental, mas traz nela e com ela o verbo do mundo, a presença nela da cultura, interferindo e fazendo parte da perceção e compreensão que o sujeito faz e tem do mundo e da experiência da sua evolução cognitiva. Sob o aspeto fenomenal das línguas, tem sentido evocar, como fazia Álvaro Ribeiro, a hipótese Sapir-Whorf. Implicará a relação pensamento e realidade a mediação da linguagem no processo de apreensão e compreensão do mundo? Será o acto de cognição intrinsecamente linguístico? As estruturas de uma língua atuam em comum com as estruturas cognitivas? É possível destacar, por sobre as formas da linguagem, o pensamento puro ou é apenas possível falar de linguisticidade do pensamento? Eis algumas das questões fundamentais a que já dei resposta aqui.

O problema de ser a realidade ou linguística ou translinguística tem atravessado a história do saber humano e continua a impor-se no horizonte hodierno das teorias do conhecimento e da linguagem. A hipótese de Sapir-Whorf, segundo a qual a estrutura da linguagem determina a estrutura do pensamento, impõe-se neste contexto. Constituirá cada língua o prisma pelo qual o mundo não pode deixar de ser conhecido e compreendido?

4. O esquecimento da linguagem

Um dos problemas mais graves da filosofia é o esquecimento da linguagem, familiar do ocultamento da relação intrínseca entre o pensamento e a língua, ou entre o pensar e o ser, ou entre o dizer e o ser. Globalmente, o esquecimento da linguagem é contemporâneo da descoberta de ser absurda a vida e absurdo o mundo. As filosofias do desespero e da angústia sem remissão são sob este aspeto ocultadoras do sentido e nascem sobretudo de uma má conceção da linguagem e da organicidade do seu sentido. A redução do sentido, que é o ser da linguagem, a jogos de linguagem (Wittgenstein), pelo despedimento da metafísica da linguagem, comum à filosofia analítica, esquece que o conceito transcendental de língua (que eu aceito), não é independente da compreensão fenomenológico-hermenêutica e ontológica da linguagem, sem a qual embarcamos no linguisticismo e no formalismo ou logicismo das estruturas.

Por outro lado, as ontologias agnósticas que, como a de Heidegger, se servem do ser para ocultar o ser de Deus, febrilmente fazem o inverso das filosofias analíticas, saltando da linguagem para os planos de origem dela, num movimento certamente correto que gera a beleza das análises heideggerianas e da profusa, intrigante por vezes, mas sempre sedutora visão da linguagem como a casa do ser ou do homem como o pastor do ser, expressões muito difíceis de esquecer, de tal modo se colaram à nossa pele que pensamos Heidegger como pensamos os Gregos, irresistivelmente.

A direção heideggeriana conduz o pensamento para o paganismo, saltando da assunção da linguagem como Verbum para a da linguagem como logos, pelo que a adveniência da verdade nele é anticristã, inteiramente oposta à do logos de Fílon de Alexandria. É somente o logos de Heraclito mas sem a justiça do logos hebraico e sem a esperança do logos cristão, que afloram na dialética de Santo Agostinho. Heidegger, ao fazê-lo, partilhou com muitos o esquecimento da linguagem, que ele julgou não ter feito na crítica que teceu à tradição do Ocidente, onde, segundo o filósofo germânico, se deu o esquecimento do ser. A libertação do Ocidente do esquecimento do ser, na proposta de Heidegger, é um fenómeno correlato agora do esquecimento de Deus, que nenhuma recuperação sacralizada dos limites da linguagem saberá restituir sem uma revinculação do logos grego ao verbum, ainda o lugar onde se tornará possível à filosofia pensar Deus.

Gostaria de recordar neste ponto que a linguagem no Ocidente filosófico é um espaço de construção, de destruição e de vivência de sentido, o que precisamente marca o estilo de pensar na nossa contemporaneidade finissecular e dos inícios do século XXI, especialmente marcada pela nostalgia do infinito e de Deus, nostalgia que sucedeu à declaração da sua morte para a instauração existencialista da liberdade do homem. O problema de Deus, seja ele um problema filosófico, teológico, social, político ou económico, seja ele europeu, seja a Oriente, é o problema do máximo sentido como destino último da linguagem. Enquanto problema, não pode ser negado ou ignorado, pois que o que luz no fundo da linguagem é Logos, a palavra divina a que, como palavra essencial, se recolhe o poder da criação. No hinduísmo, por exemplo, a palavra original, o som primeiro, origina o cosmo.

O poder de criação pela palavra está intimamente ligado ao poder da articulação do mundo e das coisas pela linguagem, como é ele que designa a linguagem como ingrediente da própria realização do homem, da sua proficiência comunicativa, da sua eficiência inventiva nas sucessivas artes, da mão ao pensamento, da literatura à filosofia, das instituições à religião. O fundo da linguagem tem, assim, o seu carácter de sagrado, é o lugar onde vivem os deuses e o lugar do único Deus, de que aqueles são saudades, pelo que, a meu ver, qualquer movimento de paganização da linguagem, como fez Heidegger, alimenta a anamnese do Logos, simultaneamente Verbum.

Não esqueçamos a verdade de que o descobrimento da palavra no seu vínculo com a criação não é grega, e à luz desse vínculo se deve iluminar a essência mesma da linguagem. Neste aspeto, ao descartar tal vínculo, Heidegger acabou por afastar-se e desconhecer as possibilidades ontológico-hermenêuticas da criação, que estão, por exemplo, bem presentes no criacionismo do filósofo português Leonardo Coimbra. Aquilo a que eu chamo o esquecimento da linguagem, de que o esquecimento de Deus é a principal manifestação, mostra-se nesse movimento pagão de vitalização dos deuses no templo da linguagem do único Deus. O grande sacrifício que constituiu a imolação foi a do significado da criação, pelo que em Heidegger a linguagem não é mais do que demiurgia. Ser o homem pastor do ser é obrar no ser pelo mesmo processo da mimesis do demiurgo platónico, pelo que, mais talvez do que o pensasse, Heidegger é aqui platónico no entendimento das capacidades demiúrgicas do homem e da linguagem, não excedendo o que a tal respeito já havia dito o Crátilo de Platão.

Sob modo incorruptível, ao pensamento de língua portuguesa, ainda que na diversidade das posições teóricas dos pensadores, vacilando entre teísmos, panteísmos e ateísmos, agnosticismos e gnoses várias, é característica a vinculação do Logos e do Verbum, donde a verdade da centralidade especulativa do tema de Deus (pela existência ou inexistência) nos pensadores portugueses, desde D. Duarte, passando por Antero de Quental, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes, António Sérgio, Raul Proença, Álvaro Ribeiro, José Marinho, entre muitos outros, até António Quadros, Afonso Botelho e Agostinho da Silva, a que adrede ficam ligados os temas que lhe correspondem do infinito e da finitude, do bem e do mal, da vida e da morte, do tempo e da eternidade, temáticas existenciais perenes, que sempre atraíram os filósofos portugueses muito antes mesmo do existencialismo europeu, em meditações expressivas e tão antigas como as recolhidas no anónimo de A Corte imperial, no Leal conselheiro de D. Duarte, nos Diálogos de Amador Arrais, na Ropica pnefma de João de Barros, nos sermões de António Vieira e nas obras de D. Francisco Manuel de Melo.

A meditação sobre as línguas de fogo no cenáculo e a espiração do Paráclito, que veio a refletir-se em parte substanciosa da filosofia portuguesa, não nega a centralidade do conceito teológico-metafísico de Verbum, pois que a Terceira Pessoa é dada pela visão do Filho, que singularmente em determinados pensadores, como em Agostinho da Silva e António Quadros, se veio a radicalizar no culto direto do Consolador, em cujo Espírito se obraria um novo Reino e uma nova Era. A língua pátria, a língua de Portugal, surge como terra fértil para a seara do Espírito, ora vendo nela Agostinho da Silva a pátria dos múltiplos povos falantes do português, uma pátria lusófona, império do espírito, ora alimentando António Quadros a esperança de um dia, com Fernando Pessoa, redescobrir-se finalmente Portugal na Hora e numa paideia de gerações, a que chamou patriosofia, uma sabedoria da pátria para lusos e lusófonos nela redescobrirem o seu ser e estar de nação.

5. Conclusão sobre o verbo e a língua

A especulação filosófica sobre a língua portuguesa, aquela que mede o pulso do seu logos criador, tem destacado a tríade linguística dos verbos ser, estar e ficar como uma singularidade da própria língua, com reverberações para o pensamento filosófico, que a distinguem de outras línguas, nomeadamente do latim e do grego, onde tal tríade não existe, mas também do francês, do inglês e do alemão, que desconhecem sobretudo o estar, fazendo uso do verbo ser para expressar realidades que o português traduz pelo estar.

O estar e o ficar têm aliás uma semântica muito diferente da do verbo ser, de cuja realidade não diz o português que “está” ou que “fica”, exatamente por apresentar-se o ser de forma absoluta. Intuimos com exatidão o dinamismo da tríade observando que o pensamento português é menos atreito às formas do absolutismo e do totalitarismo, caracterizando-se menos por uma centração obsessiva no ser, como no pensamento alemão, e sendo mais sensível ao plano dos seres e da existência, a que dá atenção ontológica.

Num notável embora muito pouco citado estudo, incluído nas Atas do I Congresso nacional de filosofia (1955), intitulado “Expressão linguística da realidade e da potencialidade”, da autoria de Hernâni Santos Dias da Silva, filólogo, ganha aquela tríade adequada análise. O verbo ser, aoristo, significa pela realidade pura, fora de toda a duração, a quididade ou essência absoluta; quando digo que “O Ser é” ou “Deus é” formulo a absolutidade do Ser, a sua pureza irrestrita ao espaço e ao tempo e destes independente. Quando, porém, me refiro ao ser dependente das condições espácio-temporais, posso expressar a cópula por recurso a outros verbos, além de ser. Assim, posso dizer que “O homem é bom”, que “O homem está bom” e que “O homem fica bom”.

O verbo estar significa, então, pela existência atual e o ficar o processo de passagem do não-estar ao estado atual, como quando digo que “O homem está doente” e que “O homem fica doente”. Aqui, é muito interessante a observação de que a cópula expressa pelo ficar sai completamente fora do quadro judicativo aristotélico pela ideia que associa um progresso a chegar a um estado. Esta constatação demonstraria, a meu ver, que nem tudo no português é sucetível de ser aferido pelo juízo aristotélico e que o português guarda virtualidades além do categorialismo de Aristóteles.

É provável que a menor atenção filosófica dada ao verbo ficar se deva à nossa tradição aristotélica cujos vestígios nos nossos hábitos mentais persistirão como obstáculos à compreensão e tradução de uma realidade que não é ato nem potência, mas que, porém, se conta como realidade de movimento, processo, chegada a alguma coisa que não era e que ainda não é. A falta de sensibilidade de António Quadros ao verbo ficar, no seu livro O espírito da cultura portuguesa (1967), onde analisa os verbos ser e estar, a par do ter e haver, assim ignorando qualquer análise ao ficar, mostra como a sua filosofia do movimento é aristotélica como aristotélico foi o seu mestre Álvaro Ribeiro.

Hernâni Santos Dias da Silva dá-nos elementos para uma séria reflexão sobre uma estrutura mental do português que seria diferente do das outras línguas novilatinas, do próprio grego e do latim, idêntica à do sânscrito, melhor, do hindu. Como neste, o português introduz na expressão da cópula uma realidade nova ausente das outras línguas europeias, o aspeto. Admite, também, a hipótese de que o aspetivo possa ser de influência árabe e não indo-europeia. De todo o modo, seja por via indo-europeia seja por árabe, o facto é que se entremostraria aqui uma estrutura mental do português que é realmente diferente das línguas que lhe são próximas.