[Foi um encontro com Eduardo Lourenço na Fundação Calouste Gulbenkian, num almoço que se prolongou tranquilamente pela tarde fora. No passado recente, esta conversa também poderia ter acontecido em Vence. Agora encontramo-lo quase sempre em Lisboa, ainda que Vence permaneça na sua geografia de afectos.
Falou-se de tudo um pouco, à boa maneira de Eduardo Lourenço: de Portugal e do mundo, da Europa e do espaço de língua portuguesa. Esta, a língua portuguesa, nos seus 800 anos, foi, aliás, o mote de conversa.]
Começou por se falar sobre as línguas em geral, de como elas “falam o mundo” mas, ao mesmo tempo, se constituem como “muralhas” entre os povos. Eduardo Lourenço relembrou o mito de Babel e a sua intrínseca ambivalência: se por um lado seria bom haver apenas uma única língua extensiva a toda a humanidade – “e um único Deus”, porventura –, a pluralidade de línguas, por outro lado, não deixa de constituir um enriquecimento do mundo, pelo acréscimo de mundividências – numa palavra, de Cultura.
Falou-se também dessa cisão, tão contemporânea, entre a língua da Cultura e a língua da Ciência, constatando-se que, mesmo no interior dessas duas áreas, há uma cada vez maior fragmentação interna. Já não há apenas duas Línguas. Também aqui se salientou que essa fragmentação tem dado cada vez mais lugar à incomunicabilidade – quer das pessoas comuns em relação às pessoas da Ciência, quer entre os próprios cientistas. A Ciência já não tem há muito uma única linguagem. A Ciência já há muito que não é Ciência?…
Questionámo-nos também sobre se a língua portuguesa não seria, privilegiadamente, uma “língua de afectos”. Eduardo Lourenço começou por negar, afirmando, de forma assertiva: “todas as línguas são línguas de afectos”. Ao longo da conversa, foi reconhecendo, porém, algumas singularidades – se não na nossa língua, pelo menos na forma como historicamente nos fomos relacionando com outros povos, referindo algumas diferenças relativamente a outras histórias europeias, nomeadamente a francesa, que Eduardo Lourenço tão bem conhece. Sim, todos ou quase todos os povos europeus criaram Impérios pelo mundo fora. Portugal também, sendo que o Império português ainda não foi, para Eduardo Lourenço, pensado em todas as suas latitudes – não por acaso, de resto, publicou recentemente um livro com o sugestivo título “Do Colonialismo como nosso Impensado”. A propósito desses textos eventualmente polémicos, agora republicados em livro, Eduardo Lourenço questionou-se sobre a sua repercussão. Será que os portugueses ainda não estão, como não estiveram no passado, preparados para pensar verdadeiramente sobre o que foi o nosso “Império”?…
Expressou ainda a sua funda preocupação sobre os acontecimentos recentes em Paris – os atentados ao “Charlie Hebdo”, no início de 2015. Sem ser pessimista, Eduardo Lourenço não esqueceu nenhum dos focos de instabilidade que se parecem multiplicar por todo o mundo. Vivemos, de facto, tempos particularmente “turbulentos”. Parece haver uma insensatez generalizada, um absurdo fascínio por ideais que pensávamos já estarem historicamente ultrapassados, que decorre, pelo menos em parte, do grau de incultura dos nossos governantes. A Cultura, uma vez mais…
A forma como tão rapidamente o mundo se altera! Deu-se o exemplo, um pouco casual mas nem por isso menos paradigmático, de Kadafi, ainda há poucos anos recebido com todas as honras em muitas capitais europeias, como se efectivamente ele pudesse estabelecer pontes, e por isso mesmo também “pontes de vista”… Como se podem enganar tantos e tanto na leitura dos sinais?… Eduardo Lourenço usou até a expressão “choque de civilizações”, sabendo, ainda que da forma mais sinuosa e paradoxal, estarmos condenados ao diálogo, à comunicação, ao uso da língua, mais precisamente, de línguas, e não de uma língua apenas. Emergiu de novo aqui a questão de saber se afinal não seria tudo mais simples se não houvesse uma única língua. Mais simples, certamente. Mas paradoxalmente não menos complexa…
Sobre a língua, a nossa língua, lamentou Eduardo Lourenço o afastamento cada vez maior – e não só a nível linguístico – entre o Brasil e Portugal, salvaguardando, porém, a relação próxima que ainda existe entre Portugal e os países africanos de língua portuguesa.
Mas não falámos apenas de países, falámos ainda de regiões –, desde logo, da Galiza, o berço histórico da nossa língua… Com a Galiza temos não apenas em comum a Língua como igualmente essa experiência avassaladora do Mar. “Da minha língua vê-se o Mar”, lembrou-se, citando Vergílio Ferreira. Se bem que – acrescentou Eduardo Lourenço – há vários mares. O de Sophia de Mello Breyner, por exemplo, é o Mediterrâneo, não o Atlântico, como é mais habitual entre nós. Falámos pois também do Mar, essa região de fascínio. O Mar foi, historicamente, e continua a sê-lo, motivo de doces agruras. Um obstáculo, um “abismo”, em que tantos portugueses, sobretudo na fase da Expansão Marítima, sucumbiram… Natural da Beira Interior, Eduardo Lourenço manifesta sempre que pode o seu fascínio pelo mar, força próxima e longínqua, que molda as nossas metáforas, os nossos provérbios, a nossa sagesse. A língua é, como salientou, “o grande traço de identidade dos povos”.
Sobre a língua e a identidade, como todos sabemos, Eduardo Lourenço tem uma particular autoridade. Por ser autor de uma obra vastíssima que está agora a ser integralmente recolhida para publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian, surpreende-se às vezes a si próprio: já não se “lembrava bem” de algumas coisas que foi escrevendo ao longo dos anos. Refere inclusive a existência de um diário, com “mais de duas mil páginas”, que se perdeu… Conversando sobre a sua obra, Eduardo Lourenço demonstrou particular afeição por “O Lugar do Anjo” e “Pessoa Revisitado”. Pessoa é, sabemo-lo, uma das paixões da sua vida. Nele terá encontrando o seu maior interlocutor, o desassossegado com quem sempre gostou de dialogar, com quem ele próprio se terá descoberto enquanto pensador e ensaísta, nessa reflexão conjunta sobre o mundo, a Europa e Portugal. Como diria Pessoa: “As nações são todas mistérios./ Cada uma é todo o mundo a sós”. Mas na sua errância entre a Europa e todo o mundo, Eduardo Lourenço continua a sentir-se inteiramente em casa, no seu país e nesta Europa do Sul – observando: “ainda bem que nascemos num país católico do sul da Europa”. Admirador dos filmes de Bergman, neles vê a contra-imagem da Europa do sul que tanto preza: é uma outra Europa, um outro mundo – um mundo frio, “hiper-kantiano”.
O seu sorriso afável e o seu olhar atento a tudo e todos são o rosto de um homem que preza a vida e a convivência. Com peculiar ironia, referiu estar já “no fim da linha”, “para além do fim da linha”, e que por isso vivia agora por “conta própria”, a “título póstumo”, mundo que não deixa de estar marcado pelas várias paixões a que permanece fiel: Portugal, Pessoa, a Europa, o Mar, Bergman. E ainda o cinema. A música. A Pintura.
No átrio do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, detendo-se diante de uma escultura de Rodin, manifestou o seu fascínio, falando mesmo de um “milagre” – o milagre da criação artística, o milagre que é podermos apreciar uma obra de arte… Perguntámos a Eduardo Lourenço se acreditava em milagres – “a vida é um milagre”, respondeu, com particular veemência.
“Discorrer partilhado” foi o título escolhido por Eduardo Lourenço.
Não se pode dizer de língua alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais exacto. É ela que nos inventa. A língua portuguesa é menos a língua que os portugueses falam, que a voz que fala os portugueses. Enquanto realidade presente ela é ao mesmo tempo histórica, contingente, herdada, em permanente transformação e trans-histórica, praticamente intemporal. Se a escutássemos bem ouviríamos nela os rumores originais da longínqua fonte sânscrita, os mais próximos da Grécia e os familiares de Roma. Juntemos-lhe algumas vozes bárbaras das muitas que assolaram a antiga Lusitânia romanizada, uns pós de arábica língua, que espanta não tenham sido mais densos, e teremos o que chamámos, com apaixonada expressão, o “tesouro do Luso”.Na nossa Idade Média o estatuto da língua era, como o das outras falas cristãs, um “falar” sem transcendência particular. Com o Renascimento, abertura sobre o universal segundo o modelo greco-latino, paradoxalmente, os “falares” europeus tornam-se “língua”, e a língua, signo privilegiado de identidade. Nascem os discursos hagiográficos da língua nacional, da bela língua italiana para Bembo, da altiva fala castelhana para Nebrija, da polida língua francesa para Du Bellay, da nossa nobre e suave língua portuguesa para Fernão de Oliveira, Barros, António Ferreira que a converte em objecto de culto e de orgulho. Diz-me que língua falas, dir-te-ei o estatuto que tens. Nenhum destes endeusamentos ou apologias da dignidade das línguas nacionais é inocente. Fazem parte do processo histórico em que culmina o sentimento nacional.Descobre-se que a língua não é um instrumento neutro, um contingente meio de comunicação entre os homens, mas a expressão da sua diferença. Mais do que um património, a língua é uma realidade onde o sentimento e a consciência nacional se fazem “pátria”. Eduardo Lourenço, “A chama plural”, in AA.VV. (Org. de António Luís FERRONHA), Atlas da Língua Portuguesa na História e no Mundo, Lisboa, IN-CM, 1992, pp. 121-124.