O tempo tem alma de caricaturista. Vai esculpindo no nosso corpo o que temos amplificado. Com o tempo, o nariz ou as orelhas grandes tornam-se desproporcionados, o queixo afilado afina, ou os olhos encovam. Tornamo-nos o nosso mapa físico: ele dá forma às montanhas construídas pelos sorrisos diários, e escava os vales profundos das vezes em que chorámos. O tempo sulca com rugas os caminhos para outros sorrisos e outras lágrimas: o corpo já sabe onde dobrar. Traça um roteiro para nos lermos. Linhas secas, se sempre fomos avaros. Linhas fluentes, se em nós houve generosidade. O gesto que repetimos ao longo dos anos foi ensinando aos músculos o ritmo da música que dançámos. A gravidade é o peso do dedo que nos viu barro…
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Finalmente, o ritmo da minha pulsação abranda. O trepidar da terra batida faz oscilar o meu olhar por entre as árvores mais ou menos densas que desenham manchas de verdes vivos. Consigo ver o vale que a partir daqui se precipita e os dorsos das montanhas a ondular ao fundo. Perco-me na imensidão da paisagem de terra e céu fundidos. Volto a concentrar-me na estrada, guiada por muros de granito por entre os quais espreitam as videiras carregadas de uvas negras. Continuo a subir e o coração aperta. Estou a chegar a casa. Já quase não me lembrava deste ar puro que me invade o peito. Por entre as folhas rendilhadas vejo a grande fachada, geometricamente recortada e que se impõe sobre o terreiro que nos recebe. O vento traz-me uma mistura de cheiros e memórias e o fumo doce que sai da torre da cozinha conduz-me ao topo da escada. Entro e sinto o calor da lareira que me aquece a alma. (more…)
Este número da Pontes de Vista é dedicado a Amadeo e a todos os insolentes.
Deve ser efetivamente “insolência” o pecado maior dessa gente que não segue os caminhos habituais. Que mais se lhe há de chamar? “Há gente que chama ao meu estado uma pretensão para sair fora do vulgar – […] Eu sei o que agrada em geral – eu na generalidade desagrado”: isto constata Amadeo.
Insolente Amadeo devia ser. Na sua raiz matricial, o INSOLENTE nega: não é (IN-). A que “não é” ele afeito? O “in-SOLENTE” não é afeito ao que se declina “por costume”: soleo, soles, solere, solitus sum, “eu tenho por costume, tu tens por costume, ter por costume, o que está acostumado a”, “o que segue o costume, os costumes”… Não, eles, os insolentes, são os que não são os do costume. Desconhece-os quem os confunde com os “presumidos”, porque não os domina a ideia de que têm uma identidade fixa. Ou quem os confunde com os “arrogantes”, só porque não rogam favores aos seus semelhantes: rogam antes favores à vida. O nosso insolente assume-se como peregrino, viajante, nómada, CAMINHEIRO… É o que se move pela necessidade de saber ver. Segue a disciplina da EDUCAÇÃO VISUAL, e só a ela lhe obedece: olha para si como se olhasse um estranho, olhando os outros como se se reconhecesse neles. Caminha à feição do terreno, sem culpa do que é ou do que faz. Como se o MAPA lhe indicasse os caminhos por onde ele não foi ainda. Trabalha-se noite fora e dia adentro. Pega no bordão e levanta-se, sem ter por certa a fortuna. Crendo mesmo perdê-la…
E vai.
“CAMINHEIRO”, assim se apresentará AMADEO DE SOUZA-CARDOSO a sua mãe, numa carta que lhe envia mal chega a Paris. “Eu tenho mais fases do que a lua”, escreve ele de Manhufe, numa carta à mulher, quando ela ficou em Paris e ele veio a Portugal. Tem de andar entre cá e lá: é esse o seu território.
Em Paris, escreve à irmã: “Aqui respira-se, em Portugal abafa-se”. Em MANHUFE, escreve para um saturado PARIS, que o aborrece igualmente: Maravilha-se em todo o caso com a ruralidade cíclica: “a cada passo parávamos maravilhados com a beleza grandiosa deste país gigante”. De que “país gigante” fala Amadeo? Do Marão, sim, certamente, talvez mais do que de Portugal. E, todavia, podia também assim falar de Paris, da hiperbólica urbanidade da mudança: “Que belo quadro seria se eu conseguisse projetar sobre um écran, ao mesmo tempo, toda a iluminação elétrica, todos os anúncios luminosos, todos os automóveis que passam com uma enorme garrafa de champanhe ou um anúncio do Chat Noir numa grande capital do mundo”! O seu PAÍS é ainda o território do “paisano”, o homem que abrange um espaço reconhecível pelo seu olhar, mas esse olhar pode ser mais ou menos abrangente.
Amadeo nunca renega o ambiente de província em que foi dado à luz, Manhufe, ou Portugal, donde tem de fugir para respirar. Da mesma forma que nunca renega Paris, para onde voltaria não fosse a morte apressada. Contradiz-se? Se CONTRADIÇÃO há é a CONTRADIREÇÃO do “caminheiro”, que nunca para e que não segue ninguém: “Eu, por exemplo, nem a mim mesmo me sigo, nem na fratura, nem na visão artística… tudo o que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito”. Trabalha-se somente. Noite fora, dia adentro. Em muitas telas ao mesmo tempo. Tantas que depois da sua morte serão algumas destruídas, por serem insólitas, insolentes, ilegíveis, estapafúrdias, imorais. E todavia elas registavam uma certa forma de religiosidade, a da ALMA FÍSICA que se aperfeiçoa no MOVIMENTO, aproximando-se do Deus que existe em si e no que o rodeia. Coisas pequenas, porque Deus está em tudo: na mosca sobre o prato, nas montanhas que parecem dorsos de mulher, no salto de um coelho sobre a erva, no voo descompassado de dois gansos, numa cozinha cubista, nas formas geométricas das sombras, num jarro com pincéis, nos grafemas dos anúncios, nas partes de um violino que ganha vida, nas velas dos barcos que iluminam o mar… Amadeo poderia dizer ainda: “Não sabiam que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”… AMA A DEUS.
Umas palavras de Agustina Bessa-Luís sobre Amadeo de Souza-Cardoso resumem talvez esse Amadeo coletivo que nos interessa aqui VER, e sobre o qual nos interessa ESCREVER. Continua Agustina no seu «Dicionário Imperfeito»: “O que Souza-Cardoso pintou tem menos significado esteticamente do que o movimento que transcendeu uma educação, a tradição, em suma”. Cremos que somos o que fizeram de nós. Mas não seremos nós o que de nós fizermos? O que interessará talvez, tudo pesado, talvez sejam ambas as coisas: a capacidade de nos superarmos. E todavia, alheamo-nos de nós. Por comodidade, por conformidade, por apatia, “somos o que somos”.
O Amadeo que ecoa em Agustina é o que lhe lembra o caminho comum e solitário, talvez um pouco menos solitário só por nele terem passado outros caminheiros. Agustina imagina Amadeo: “Penso nele com emoção, sobretudo se o vejo nesses lugares de nascimento onde eu própria nasci. Tão eventuais e sossegados, onde não parece mexer uma folha sem o precedente de uma folha que mexe”. Eis o país em que todos nós vivemos, independentemente do país em que nascemos, Manhufe, Portugal, ou Paris… O Marão, Portugal ou Paris são um invisível “país gigante”. Nesse país, mal o caminho está feito, logo a urze o cobre, logo a multidão o silencia ou a onda o varre. Se um caminho é a repetição dos passos de quem o frequenta, quem o verá mal a urze o cobre, mal a multidão o ignora, mal a onda o varre? INVISÍVEL. E de repente, AMADEO: “o salto compacto e desmesurado, aquele olhar para o interior de si mesmo como para o estranho mais consumado”.
Assegura, todavia, Agustina que é da força desse salto INSÓLITO, que sai uma estranha trilogia: “a revolução dos COSTUMES, a obra de ARTE e o delgado fio que nos liga à FELICIDADE”. Nisso acreditamos também. Por isso é este número da PONTES DE VISTA dedicado a AMADEO DE SOUZA-CARDOSO, exemplo maior de todos os caminheiros insolentes que existiram, existem e persistem.
Carlos Magno
Maria Celeste Natário
C. Magno: É possível ler o «Amadeo» do Mário Cláudio sem conhecer nenhuma obra de Amadeo?
Mário Cláudio: Não, acho que não, sinceramente. É possível escrever, e isso eu fi-lo, sem simpatizar com o homem Amadeo. Tive sempre uma certa antipatia por aquela figura. (more…)
Este texto é uma versão reduzida, revista e adaptada do ensaio escrito em 2016 para o catálogo da exposição «Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918)» apresentada em Paris, no Grand Palais. A linha curatorial da exposição centrou-se na valorização do seu reconhecimento internacional em tempo de vida e desenvolveu-se à volta de conceitos chave como a sua “identidade plural” e o “carácter polissémico do seu trabalho”. (more…)
“Haverá outra ideia mais misteriosa para um artista
do que a concepção da natureza espelhada nos olhos
de um animal? Como é que um cavalo vê o mundo,
ou uma águia, ou uma corsa, ou um cão…?”
Franz Marc [1]
“As montanhas têm um estilo de linhas
que dá vontade de lhes passar a mão pelo dorso.”
Amadeo de Souza-Cardoso [2] (more…)
Na incapacidade de selecionar um quadro de Amadeo de Souza-Cardoso que represente a sua identidade artística na totalidade das mais variadas manifestações e correntes artísticas em que se inscreveu, escolhi focar-me numa pintura que disto mesmo parece falar: «Sem título (Clown, Cavalo, Salamandra)». (more…)
Esquemas do ritmo cíclico percorrem as intensidades mais fortes e radicais, oscilações de prazer e de dor, no decurso, em simultâneo, da estrutura linear simplificada das hagiografias – primeiro impõe-se o mal e depois o bem. Eles aproximam-se da representação da natureza a que escritor e pintor, por intermédio de outrem algures distante no tempo e na geografia, tão bem sabem que não lhes pertence mas da qual fazem parte. Sem malícia, a bravura e a docilidade das relações humanas, o amor radicalizado no sacrifício, são caracterizações a que a natureza é indiferente. (more…)
Em carta a Manuel de Laranjeira – datável, segundo José Augusto França, de fins de 1908 ou princípios de 1909 – Amadeo de Souza-Cardoso dizia sentir um “desdém flaubertiano” para com a mediocridade que o rodeava (1972: 20). (more…)