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JOSÉ CARLOS PEREIRA é licenciado em Filosofia, e doutorado em Estética pela Universidade de Lisboa. É Professor auxiliar na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, e diretor da Revista Arteoria, pertencente à Secção Francisco de Holanda do CIEBA. Publicou, entre outros títulos, «As Doutrinas Estéticas em Portugal: do Romantismo à Presença» (Hespéria, 2011), e «O Valor da Arte» (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016). Como investigador, pertence ao CIEBA (Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes da Universidade de Lisboa), ao CEFI (Centro de Estudos em Filosofia da Universidade Católica Portuguesa) e ao Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. É também investigador estrangeiro associado do Projeto Integrado de Pesquisas sobre Processos de Criação, Heranças, Apropriações e Sincretismos em Artes Visuais, do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (Brasil).

JOÃO FARIA FERREIRA está a concluir a licenciatura em Estudos Artísticos, com Menor em História da Arte, na Universidade de Coimbra (UC), o que acumula com a ocupação de genealogista profissional. Tem investigado sobre a Imprensa em Coimbra no século XVIII, a obra de Amadeo de Souza-Cardoso e cinema de terror. Foi co-realizador da curta-metragem “Mesa” (2008) e realizador de “Chá e Biscoitos” (2012).

ISABEL CARVALHO (Porto, 1977) é artista plástica, editora e investigadora. Nos últimos anos, o seu trabalho artístico tem-se desenvolvido em torno das artes visuais, da escrita e da edição, caracterizando-se por uma forte componente de investigação – cruzando abordagens científicas e especulativas como metodologia. Participou em projetos expositivos e editoriais de referência internacional. A par do trabalho artístico dedica-se ao ensino de disciplinas de Desenho e Ilustração.

HELENA DE FREITAS é Historiadora de Arte e Crítica de Arte, autora de livros e ensaios sobre artistas portugueses do século XX, de Cursos de Arte Contemporânea Portuguesa e tem colaborado regularmente em revistas da especialidade. Curadora da Fundação Calouste Gulbenkian desde 1987, onde, a partir de 2001, coordenou o trabalho de investigação para o Catálogo Raisonnée de Amadeo de Souza-Cardoso. Directora do Museu da Pintora Paula Rego em Portugal, Casa das Histórias Paula Rego, Cascais, entre 2010 e 2013. Vive e trabalha em Paris, em destacamento na Delegação em Paris da Fundação Calouste Gulbenkian, onde é curadora desde 2016.

FILOMENA VASCONCELOS é Professora Associada da Faculdade de Letras U. Porto, nas áreas de Teoria e Crítica Literárias e Literatura Inglesa.  É editora da revista digital sobre literatura infantil e-f@bulations (FLUP, Porto, 2007 – ), sendo igualmente colaboradora regular da Routledge – Francis &Taylor (UK, USA) no periódico The European Legacy. Entre outras publicações do foro crítico-literário, tanto nacionais como internacionais (Routledge e Cambridge Scholars), refiram-se os livros de ensaios Imagens de Coerência Precária (Porto, 2004) e Considerações Incertas (Porto 2008). Na tradução, e no âmbito do Projecto  FCT Shakespeare para o século XXI, salientam-se as peças Ricardo II (Porto, 2002), O Conto de Inverno (Porto, 2006) e Romeu e Julieta (Lisboa, 2013). A pintura é um gosto antigo que a acompanha desde sempre, como uma vida paralela, e com as intermitências de uma prática autodidata que nunca se quis sobrepor às exigências do trabalho académico.

Maria Luísa Malato

Este número da Pontes de Vista é dedicado a Amadeo e a todos os insolentes.

Deve ser efetivamente “insolência” o pecado maior dessa gente que não segue os caminhos habituais. Que mais se lhe há de chamar? “Há gente que chama ao meu estado uma pretensão para sair fora do vulgar – […] Eu sei o que agrada em geral – eu na generalidade desagrado”: isto constata Amadeo.

Insolente Amadeo devia ser. Na sua raiz matricial, o INSOLENTE nega: não é (IN-). A que “não é” ele afeito? O “in-SOLENTE” não é afeito ao que se declina “por costume”: soleo, soles, solere, solitus sum, “eu tenho por costume, tu tens por costume, ter por costume, o que está acostumado a”, “o que segue o costume, os costumes”… Não, eles, os insolentes, são os que não são os do costume. Desconhece-os quem os confunde com os “presumidos”, porque não os domina a ideia de que têm uma identidade fixa. Ou quem os confunde com os “arrogantes”, só porque não rogam favores aos seus semelhantes: rogam antes favores à vida. O nosso insolente assume-se como peregrino, viajante, nómada, CAMINHEIRO… É o que se move pela necessidade de saber ver. Segue a disciplina da EDUCAÇÃO VISUAL, e só a ela lhe obedece: olha para si como se olhasse um estranho, olhando os outros como se se reconhecesse neles. Caminha à feição do terreno, sem culpa do que é ou do que faz. Como se o MAPA lhe indicasse os caminhos por onde ele não foi ainda. Trabalha-se noite fora e dia adentro. Pega no bordão e levanta-se, sem ter por certa a fortuna. Crendo mesmo perdê-la…

E vai.

CAMINHEIRO”, assim se apresentará AMADEO DE SOUZA-CARDOSO a sua mãe, numa carta que lhe envia mal chega a Paris. “Eu tenho mais fases do que a lua”, escreve ele de Manhufe, numa carta à mulher, quando ela ficou em Paris e ele veio a Portugal. Tem de andar entre cá e lá: é esse o seu território.

Em Paris, escreve à irmã: “Aqui respira-se, em Portugal abafa-se”. Em MANHUFE, escreve para um saturado PARIS, que o aborrece igualmente: Maravilha-se em todo o caso com a ruralidade cíclica: “a cada passo parávamos maravilhados com a beleza grandiosa deste país gigante”. De que “país gigante” fala Amadeo? Do Marão, sim, certamente, talvez mais do que de Portugal. E, todavia, podia também assim falar de Paris, da hiperbólica urbanidade da mudança: “Que belo quadro seria se eu conseguisse projetar sobre um écran, ao mesmo tempo, toda a iluminação elétrica, todos os anúncios luminosos, todos os automóveis que passam com uma enorme garrafa de champanhe ou um anúncio do Chat Noir numa grande capital do mundo”! O seu PAÍS é ainda o território do “paisano”, o homem que abrange um espaço reconhecível pelo seu olhar, mas esse olhar pode ser mais ou menos abrangente.

Amadeo nunca renega o ambiente de província em que foi dado à luz, Manhufe, ou Portugal, donde tem de fugir para respirar. Da mesma forma que nunca renega Paris, para onde voltaria não fosse a morte apressada. Contradiz-se? Se CONTRADIÇÃO há é a CONTRADIREÇÃO do “caminheiro”, que nunca para e que não segue ninguém: “Eu, por exemplo, nem a mim mesmo me sigo, nem na fratura, nem na visão artística… tudo o que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito”. Trabalha-se somente. Noite fora, dia adentro. Em muitas telas ao mesmo tempo. Tantas que depois da sua morte serão algumas destruídas, por serem insólitas, insolentes, ilegíveis, estapafúrdias, imorais. E todavia elas registavam uma certa forma de religiosidade, a da ALMA FÍSICA que se aperfeiçoa no MOVIMENTO, aproximando-se do Deus que existe em si e no que o rodeia. Coisas pequenas, porque Deus está em tudo: na mosca sobre o prato, nas montanhas que parecem dorsos de mulher, no salto de um coelho sobre a erva, no voo descompassado de dois gansos, numa cozinha cubista, nas formas geométricas das sombras, num jarro com pincéis, nos grafemas dos anúncios, nas partes de um violino que ganha vida, nas velas dos barcos que iluminam o mar… Amadeo poderia dizer ainda: “Não sabiam que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”… AMA A DEUS.

Umas palavras de Agustina Bessa-Luís sobre Amadeo de Souza-Cardoso resumem talvez esse Amadeo coletivo que nos interessa aqui VER, e sobre o qual nos interessa ESCREVER. Continua Agustina no seu «Dicionário Imperfeito»: “O que Souza-Cardoso pintou tem menos significado esteticamente do que o movimento que transcendeu uma educação, a tradição, em suma”. Cremos que somos o que fizeram de nós. Mas não seremos nós o que de nós fizermos? O que interessará talvez, tudo pesado, talvez sejam ambas as coisas: a capacidade de nos superarmos. E todavia, alheamo-nos de nós. Por comodidade, por conformidade, por apatia, “somos o que somos”.

O Amadeo que ecoa em Agustina é o que lhe lembra o caminho comum e solitário, talvez um pouco menos solitário só por nele terem passado outros caminheiros. Agustina imagina Amadeo: “Penso nele com emoção, sobretudo se o vejo nesses lugares de nascimento onde eu própria nasci. Tão eventuais e sossegados, onde não parece mexer uma folha sem o precedente de uma folha que mexe”. Eis o país em que todos nós vivemos, independentemente do país em que nascemos, Manhufe, Portugal, ou Paris… O Marão, Portugal ou Paris são um invisível “país gigante”. Nesse país, mal o caminho está feito, logo a urze o cobre, logo a multidão o silencia ou a onda o varre. Se um caminho é a repetição dos passos de quem o frequenta, quem o verá mal a urze o cobre, mal a multidão o ignora, mal a onda o varre? INVISÍVEL. E de repente, AMADEO: “o salto compacto e desmesurado, aquele olhar para o interior de si mesmo como para o estranho mais consumado”.

Assegura, todavia, Agustina que é da força desse salto INSÓLITO, que sai uma estranha trilogia: “a revolução dos COSTUMES, a obra de ARTE e o delgado fio que nos liga à FELICIDADE”. Nisso acreditamos também. Por isso é este número da PONTES DE VISTA dedicado a AMADEO DE SOUZA-CARDOSO, exemplo maior de todos os caminheiros insolentes que existiram, existem e persistem.

Helena de Freitas

Este texto é uma versão reduzida, revista e adaptada do ensaio escrito em 2016 para o catálogo da exposição «Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918)» apresentada em Paris, no Grand Palais. A linha curatorial da exposição centrou-se na valorização do seu reconhecimento internacional em tempo de vida e desenvolveu-se à volta de conceitos chave como a sua “identidade plural” e o “carácter polissémico do seu trabalho”. (more…)

Marta Soares

Haverá outra ideia mais misteriosa para um artista
do que a concepção da natureza espelhada nos olhos
de um animal? Como é que um cavalo vê o mundo,
ou uma águia, ou uma corsa, ou um cão…?”
Franz Marc [1]

As montanhas têm um estilo de linhas
que dá vontade de lhes passar a mão pelo dorso.”
Amadeo de Souza-Cardoso [2] (more…)