Sophia e Poesia: «..caminho no passeio, rente ao muro mas não caibo na sombra»
29 Outubro 2019
Escrito por MARIA CELESTE NATÁRIO
A obra de arte faz parte do real
e é destino, realização, salvação e vida
Sophia de Mello Breyner
O poema autêntico é a
invocação de um mistério
Eudoro de Sousa
Será o ser que permite que a poesia nasça,
para nela se encontrar e, assim,
nela se fechando, abrir-se como mistério
Martin Heidegger
É num plano ontológico que temos lido a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen por nela nos parecer estar presente, de modo patente ou latente, não só a procura da verdade das coisas, mas algo mais ainda: a revelação da falsidade das coisas. Com efeito, a sua poesia é, ou apresenta-se ao nosso olhar, como um caminho de desocultação, simultaneamente no sentido de uma verdade, como da sua essência, numa acepção próxima da ideia de desocultação do ente de sinal heideggeriano, particularmente evidente nas suas concepções de arte – entendendo-se esta como o “pôr-se em obra da verdade” e sendo “a beleza um modo como a verdade enquanto desocultação advém”.1
Sob este aspecto ontológico, verdade, divino e sagrado constituiriam em grande medida modos equivalentes de referência ao real. Escreve Sophia: “a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”.2 A ideia de uma poesia de sentido essencial como existencial dialoga por via do que se pode designar como “poesia pensante”, querendo nós aqui significar um sentido mais amplo, ou mais abrangente, de uma leitura do mundo, em que a linguagem poética diz o real, mas em certa medida o extravasa, permitindo-nos, num horizonte mais teórico, criar relações, pontes, com o universo especulativo, que de uma filosofia existencial ou de uma ontologia fundamental pode receber novas leituras, como neste poema é manifesto:
Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.
Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.
Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser3
É de notar que Sophia se coloca ela mesma como alguém que se “encontra dentro”, no sentido em que não é uma observadora externa, alguém que faz uma leitura “de fora”, mas sim “dentro” do próprio universo, pelo que, podemos dizer, ela é também universo. Ou seja, o seu “verso” ou os seus “versos” são constitutivos do “uni-verso”, porque eles decorrem de uma con-vivência e de certo modo também de uma co-criação. E é por isso que Sophia refere constantemente que a sua poesia integra e é caminho para o real… E que real é este? Um real sentido e vivido (por símbolos, imagens, atitudes), onde há sempre uma excedência que aponta para mais longe. Aí, o mundo ou o real que a palavra poética abrange atira-nos para um oceano de pressentimentos que a todo o momento nos invade e surpreende pela sua opaca transparência. Além desta, sentimos também uma tensão que radica não só na própria linguagem que a diz como no próprio mistério da vida, o que não deixa de ser evidenciado pela palavra “poética” mas que também nos coloca face à questão do Ser.
Nessa medida, o pensamento de Sophia vive impregnado de uma clara luta pela busca de um sentido, cuja acepção encontramos em várias leituras do pensamento existencial, em que Heidegger mais uma vez pode ser referido, designadamente na sua concepção de linguagem como algo que “persegue o real”. Este fascínio da linguagem, sobretudo dos poetas, é conhecido, e tem sido uma constante na análise da situação humana, porque ela mesma é um acontecimento pela sua ambiguidade sempre presente. Desde os gregos, e hoje mormente em Heidegger, que por sua vez refere Rilke, Trackl e Hölderlin, a poesia é vista como “essência da linguagem” e interpretada como a “casa do ser”. Mas considerada a poesia como a função mais plena, como topologia do ser e dizer, o lugar da essência é também por Heidegger designado como “poetar pensante”. E é esta ideia que nos parece significativa para sublinhar a nossa interpretação. A essência é o que na existencialidade do ser “presente” se oculta, pela ressonância ao apelo do ser, que decorre do pensar no “jogo do mundo”. Neste sentido, o ser que é “re-colhimento” em Heidegger é também logos, assumindo em Sophia algumas idênticas formulações.
Heidegger, considerado pelo rigor filosófico do seu discurso, acaba por, na sua “criação filosófica”, pensar esta “essência/ existência” à luz de conceitos (como os de «Ser e Tempo», 1927), indo depois considerar a metafísica tradicional como um entrave ao pensar do “sentido originário do ser”. Tal busca levou-o à valorização do poetas – Hölderlin, sobretudo –, pois que neles se encontrava melhor “a Palavra que diz o ser”. A sua ontologia fundamental, na sua aproximação entre Filosofia e Poesia, vai, pois, pela descoberta da linguagem dos poetas – desde os primeiros “físicos” gregos, como Heraclito, Parménides e Anaximandro, até aos seus contemporâneos, sobretudo Hölderlin e Rilke –, referir a Poesia como uma forma de pensar original porque originária. Como escreveu a este respeito George Steiner4:
O pensamento em poesia e a poética do pensamento são feitos de gramática, de linguagem, em movimento. Os seus meios e limites são os do estilo. O inefável, no sentido directo dessa palavra, circunscreve-os a ambos. A poesia aspira a reinventar a linguagem, a fazê-la nova. A filosofia esforça-se por fazer a linguagem, rigorosamente transparente, por purificá-la de ambiguidade e confusão. Mas é o discurso humano que continua a ser a matriz total.
Será a partir daqui, deste pensar original porque originário, que relemos a arte poética (ou a Poesia?) de Sophia: na relação com as coisas, na relação com o real, trespassado de mistério e do Mistério do Inefável também revelado pela própria linguagem e pela palavra. Os pressentimentos do que nomeia constituem o que pensamos poder ir ao encontro do “mais profundo” sentido e busca do real na obra de Sophia: a busca da “casa do ser”. Escreve Sophia, em “Arte Poética III”5:
A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira (…).
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.
Se alguma dúvida prevalecesse sobre a incansável busca de Sophia, veja-se ainda o seguinte poema:
Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
que me foge de repente.6
Crawford Jolly, arte urbana de Kenny Random
Não por acaso, “Destino”, “Realização”, “Salvação” e “Vida” foram expressões usadas por Sophia para caracterizar a obra de arte, consequentemente e de igual modo a sua própria poesia. Todas remetem para um real, vital, inevitável e salvífico. Na sua poesia, a beleza é sobretudo o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela “não pode ser separada”, acrescentando ela, significativamente, que não é de “beleza estética” que fala, mas de “beleza poética”. E esta “beleza poética” o que significaria? Pensamos que poderíamos acrescentar aqui uma outra dimensão, talvez um outro tipo de beleza, aquela que a poesia (e poucas mais artes) permitem atribuir à vida, seja pela unidade da linguagem entre a forma e o conteúdo, seja porque “poeticamente o homem habita a terra”. Porque é nessa unidade improvável, porta de acesso ou de busca, que o “princípio original” permanece, onde “a luz mais que pura”, decerto de uma “sabedoria inicial”, poderia desvelar-se (ou ressuscitar?).
Sophia está no mundo e é lá que quer estar, mas é também aí que ela é – que ela se sente, pensa, “enleva” e se diz. Não fala propriamente de si, mas da existencialidade e do ser. Será neste sentido que, por exemplo, pensamos poder interpretar-se a sua poesia como sendo “uma arte do ser” (ibidem, p. 891), não de uma ciência, ou teoria estética, mas sim do ser. Como ela escreve: “[a poesia] pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar” (ibidem, p. 891).
Da inteireza do ser, duma coisa mais funda, duma fidelidade mais pura, era feita a sua poesia, a beleza poética, a vida com que se comprometeu ou a vida que lhe exigiu e ensinou a “olhar melhor”, além da superfície do real, e descer para ainda subir ao mais profundo. Por isso, escreveu Sophia sobre esse fio: “caminho no passeio, rente ao muro mas não caibo na sombra” (ibidem, p. 889). Não sabemos se alguém pode caber na sua sombra, mas Sophia não, nunca caberia. Para ela, “a sombra é uma fita estreita”, mas é ainda penetrável. Por isso, escreve, nesta extraordinária imagem: “mergulho a mão na sombra como se a mergulhasse na água”. O caminho de Sophia exigia-lhe mais que aprender a “modelar” numa “medida humana” meras formas mais ou menos repetidas. Ela tinha de mergulhar, penetrar no espaço e no tempo. Não lhe bastava olhar para as ânforas existentes nas lojas de Creta ou de Lagos, apenas pensando que, quando cheias de água, lhe dariam de beber: “Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber”.
Numa poesia que “persegue o real”, numa poesia que “parte do ar, do mar, da luz” (ibidem, p. 893), em relação com tudo e o todo, Sophia vê não só o “espantoso esplendor do mundo” como o “espantoso sofrimento do mundo” (ibidem, p. 893): implica-se, religa-se obstinadamente…
Dos dois mundos, de um mundo “onde a aliança foi quebrada” e “semelhante ao corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias” (ibidem, p. 890), Sophia escreve: “Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa” (ibidem, p. 890) e, com as palavras “escolhidas pela sua realidade”, “necessidade” e “poder poético”, estabelece-se a aliança.
“Muito heideggeriana”, assim disse Sophia sentir-se às vezes numa carta a Jorge de Sena. E, mesmo que em diferentes linguagens, as ressonâncias do ser-do-mundo de Heidegger como de Sophia surgem-nos, embora de diferentes formas, como possibilidades “evidentes” de verdade, de ser e tempo, que num pensamento-poesia, dizem do ser o ser pelo acolhimento possível da verdade. Por isso, “no espaço onde o ser se essencializa ou sentido do mundo se dá, moram o poeta e o pensador”.
O mistério que decorre da própria existência humana, de uma comunhão com o que nela existe, torna-se então vida. E por isso a poesia de Sophia coloca-nos num universo poético, num mundo vivido em sintonia, num mundo vivido a partir do que se habita, onde se sente um habitar num ritmo imanente da própria vida.
O inacessível torna-se então “próximo” (como diria Eduardo Lourenço), o que significa sentir a ausência dentro dos poemas (o que constitui a tarefa da metafísica: a de captar essa ausência). O que foi em grande medida o desiderato de Sophia com as suas “Artes Poéticas”, mesmo que tivesse afirmado que estas não servissem para explicar a sua poesia – sendo “apenas” o pensamento que está presente na sua poesia. Por isso, a sua poesia reenvia-nos sempre para o poetar pensante de Heidegger. As “Artes Poéticas” constituem-se como uma espécie de imagens em que o seu pensamento poético se expressa, como limiar de um pensamento que assume a palavra poética como condição de existência.
Nesta medida, e também em semelhança com Heidegger, poetar é fundar na língua a abertura ao Ser não contido no verbo, é abrir-se para uma zona de sombras entre mundo e linguagem, onde se cria a possibilidade de dizer o que as coisas na poesia podem não dizer, isto é, situarmo-nos no que Heidegger chamou “forma fundamento do poema”, assim permitindo uma aproximação ao papel da poesia como condição de existência da linguagem e do mundo, do próprio pensamento.
Há sempre um pensamento latente e estruturante na poesia. Estamos sempre face ao limiar entre poesia e pensamento e as “Artes Poéticas” podem ser lidas como um poema em que há sempre pensamento (ou vice-versa). São uma espécie de poema do pensamento que não é redutível nem ao pensamento nem à poesia.
A Poesia torna-se assim possibilidade de um dizer inaugural, de um dizer originário, a partir do que o pensamento permite, num diálogo entre Pensamento e Poesia – que conduzem, numa topologia do ser, a uma maior aproximação da verdade que em Sophia é o real. Aí onde ela mesma se procurou numa ligação directa com as coisas, os objectos, um luz e uma captação do essencial. Procurando, criando uma certa libertação íntima para aceder àquela liberdade que permitisse o acesso de “ser um com o universo”, o mesmo será dizer a ambição que designou como “o regresso total ao paraíso terrestre”.
NOTA: A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
Notas
Heidegger, M. (1990). A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, pp. 30 e 90, respectivamente.
Obra Completa: Arte Poética, Lisboa, Caminho, 2010, p. 95.
Andresen, S. M. B. (2015). “As Fontes”, in Obra poética. Lisboa: Assírio & Alvim, p. 106.
Steiner, G. (2012). A poesia do pensamento. Lisboa: Relógio d’Água, p. 227.
in Andresen, S. M. B. (2015). Obra poética. Lisboa: Assírio & Alvim, 893.
Andresen, S. M. B. (2015). “Itinerários”, in Obra poética. Lisboa: Assírio & Alvim, p. 168.