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Escrito por MARIA JOSÉ MAGALHÃES DA SILVA
& MARIA LUÍSA MALATO
Sobre os textos gentilmente cedidos à CNB pelos oradores da conferência/conversa realizada no Teatro Camões a 25 de janeiro de 2014, que reproduzem as suas intervenções [Sousa, C. M., Eiras, P. e Santos, J. P. (2014). Sophia e a dança. Lisboa: Companhia Nacional de Bailado].
Este pequeno livro é constituído por três artigos sobre o tema “Sophia e a Dança”, e procura dar a conhecer a importância da dança na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Como é dito na folha de rosto, é o resultado do trabalho de investigação levado a cabo por Carlos Mendes de Sousa, Pedro Eiras e José Manuel dos Santos, convidados pela Companhia Nacional de Bailado para uma conferência/conversa, realizada a 25 de janeiro de 2014, no Teatro Camões. Os autores foram convidados de forma criteriosa, não só pelo seu patente interesse na obra de Sophia, como também pela sua ligação ao diálogo entre as duas artes em causa: a literatura e a dança. Carlos Mendes de Sousa, professor na Universidade do Minho, especialista em literatura brasileira e poesia portuguesa contemporânea, é responsável pela mais recente edição da obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen num único volume, na Editorial Caminho em 2010. Entre os muitos estudos que tem sobre a poeta, distinga-se “Sophia e a dança do ser”, publicado em 2013 no âmbito do Colóquio Internacional sobre a obra de Sophia de Mello Breyner (2011), estudo que serviu de base para o texto aqui editado. Pedro Eiras, professor de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, tinha também já prefaciado uma edição das obras de Sophia, e é um profundo conhecedor dos estudos interartes, sendo responsável pela orientação de várias teses nesta área. José Manuel dos Santos, escritor e programador cultural, apresentara em 2011, também no Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen, uma curiosa comunicação intitulada “Sophia e a felicidade”.
Comecemos pela forma do livro. Os artigos encontram-se publicados em formato de livreto, quase folheto de cordel, tamanho A5. A capa (em papel pouco mais pesado que o usado no interior) usa o pormenor de uma foto de Sophia, ampliado até ficar um pouco desfocado: desta forma, mar e rochedos lembram ilhas e a espuma das ondas a bater nas rochas cria uma névoa a lembrar os fatos das bailarinas. Esta capa, tão cuidada e simples, é um indício do que podemos ler. É uma publicação de apenas 20 páginas, mas o tamanho desta obra não nos deve enganar quanto à sua pertinência. Sugere-nos uma folha de cena, distribuída aos espetadores nas grandes produções dramáticas. Quem a leva para casa não a destrói, porque a folha de cena ajuda a ver/ler, ainda quando as cortinas já se fecharam. Sugere também um folheto de cordel, outrora feito para um público mais democrático, o público imprevisto que não foi ao espetáculo no Teatro Camões.
Cremos útil a leitura desta pequena obra pelo interesse e insuspeita complexidade que a relação entre a poesia de Sophia e a dança revela. Julgamos também o tema raro, para Sophia como para outros poetas ou escritores, porque sendo comum a relação entre poesia e música, não é usual este confronto entre a poesia e o que na dança vai para além da música: o gesto, o movimento. É por tornar este diálogo acessível que esta pequena monografia nos parece útil, pois nos permite percorrer a obra da poeta numa nova perspetiva, muito para além dos clichês com os quais muitas vezes os leitores comuns se deparam, exemplificada até pelas considerações recomendadas aos alunos de Português e Literatura Portuguesa, no ensino básico ou secundário. A poesia de Sophia não é uma poesia que se preste a lugares-comuns. Mas sob este aspeto engana: parece simples, e frequentemente caímos no erro de achar que a simplicidade exclui a complexidade.
Em ano de comemoração do centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner, pareceu-nos pertinente precisamente ir buscar este conjunto de artigos para quem se interessa pela obra de Sophia de Mello Breyner Andresen: todos e cada um de nós, bastando que cada um de nós queira ser enganado pela sua simplicidade. Mas também o cremos exemplar para o estudioso/ investigador que se interesse por novos ou inusitados caminhos de análise comparatísticas, nomeadamente pelas pistas que propõe ao cruzar duas artes distintas ou o pensamento literário com o pensamento filosófico.
O primeiro artigo, intitulado “Sophia: tudo me é uma dança”, da autoria de Carlos Mendes de Sousa, debruça-se sobre três esferas de relação entre a dança e a obra de Sophia. A um nível biobibliográfico, Carlos Mendes de Sousa faz-nos um levantamento (por poemas, memórias, entrevistas e outros depoimentos de Sophia) de elementos comprovativos do seu amor pela dança. A um nível mais literário, debruça-se sobre “o modo como a dança entra na poesia” (p. 4), e consequentemente as marcas desta ligação entre a poesia e a dança ‒ ligação formal e semântica, literária e filosófica ‒ que podem conceber-se como amplos alicerces sobre os quais assenta a sua poética. Por fim, analisa o modo como esta relação entre poesia e dança se relaciona ainda com a afirmação do poder da linguagem que, como a dança, se concebe como força de “consubstanciação com a realidade” (p. 7). Poesia e dança procuram, na amplitude do espaço, um gesto justo, certo, ética e esteticamente. Quer tenha por paradigma a cultura da Grécia Antiga, quer tome por argumento a filosofia de Heidegger (e, avessa a rótulos, Sophia declara-se “muito heideggeriana” quando, em 18 de novembro de 1969, escreve a Jorge de Sena) a dança, como a poesia, é uma coincidência entre o nosso ser e os seres (p. 8), um processo de despersonalização. Significativamente, Carlos Mendes de Sousa toma como ponto de partida uma entrevista de Sophia a Armanda Passos, publicada em fevereiro de 1982, em que Sophia relembra um momento de particular beleza poética – o 25 de Abril de 1974 – e recorre ao léxico da dança para o descrever (p. 2). E termina também com uma entrevista, a que Sophia deu a Richard Zenith, em Outubro de 2001, quando a impossibilidade de dançar a limita a um movimento da mão que faz oscilar as pétalas de uma jarra (p. 9). A entrevista é o género em que a máscara do eu poético mais se pode aproximar da do eu biográfico. Também as memórias familiares, em particular as dos filhos, recordam Sophia em gestos e poses que remetem para uma ligação de facto muito próxima de Sophia a esse mundo quase onírico, do bailado. Esta ligação com a dança teria uma manifestação “direta nos domínios da dicção e da corporalidade” na obra poética, mas também nos contos dedicados às crianças. Carlos Mendes de Sousa refere como exemplos «A Menina do Mar», «A Fada Oriana» e o «Rapaz de Bronze», nos quais, de modos diferentes, a dança surge ou ligada diretamente à caracterização das personagens (no caso de «A Menina do Mar» e de «A Fada Oriana») ou insinuada na própria construção do texto, qual coreografia de palavras (como em «O Rapaz de Bronze»).
Carlos Magno
O estudo de Pedro Eiras, “Como se de novo fosse criada cada coisa”, encontra-se divido em quatro partes, centradas na coincidentia oppositorum, e abrindo sucessivamente em ampliações dessa conciliação de opostos: o dia e a noite; o real e a invenção; a consciência e a inconsciência; a vida e a morte. A primeira, “Uma tensão contida nas próprias coisas”, parte do diálogo entre a noite e o dia, discorrendo sobre como o próprio ato de escrita, o modo como a poesia surge em/a Sophia, pode ser comparado à encenação de um bailado. Em “Inventar o Real”, o autor parte de um princípio fundacional da poética de Sophia, a semelhança entre a vida, a poesia e a dança, para compreender a similar conceptualização do tempo e do espaço, entre a busca de um equilíbrio e a aceitação da sua disciplina. A terceira parte, “A Dança, Consciência do Mundo”, fala consequentemente de um tempo ‒ inventado e prévio, uno e dual. A dança, como a poesia, pressupõe quer um movimento universal, pré-existente, anterior à sua própria criação, quer uma procura desse movimento. Escreverá Pedro Eiras belissimamente: “assim o maquinista se torna aprendiz da marioneta: porque a marioneta é obediência absoluta à gravidade, atenção extrema a um ritmo. Mas o maquinista pode, por seu turno, aceitar o chamamento perfeito da gravidade, se ouvir a marioneta e, através dela o movimento da origem, o primeiro capítulo do mundo” (p. 14). Por fim, em “A Dança”, o autor antevê uma outra vertente desta conexão entre a poética de Sophia e a dança: em Sophia “a morte dança”. E ainda que não se trate aqui da macabra “dança da morte”, citando o poema “Goyesca” (Andresen, 2015, p. 162), Pedro Eiras interroga-se sobre a natureza desta morte presente na poesia de Sophia: morte, fim de vida, ou morte latente, o “esqueleto” de Pascoaes? (Pascoaes, 1987). A (omni)presença da morte deixa-nos pistas de análise que só aparentemente foram antes silenciadas: é que a morte em Sophia repete com outros trajes a dança da noite, ou o processo de aceitação da marioneta, mestre do maquinista. O último artigo intitula-se simplesmente, como o libreto, “Sophia e a Dança”. Nele, José Manuel dos Santos elenca e analisa os vocábulos enquadráveis no campo semântico do gesto e do movimento, ao qual se associa a ideia de dança. É dos três textos o que, apesar da sua brevidade, se centra mais no vocabulário dessa relação entre a literatura e dança. Explícita e implicitamente é nuclear a ligação da sua poesia com a dança: José Manuel dos Santos cita vários instantes da sua poesia que “falam de dança” mas interessa-nos sobretudo quando, “falando de outras coisas, é ainda de dança que falam” (p. 17). O artigo oscila entre os poemas de Sophia e os autores que definiram a dança em termos semelhantes aos que Sophia atribui à poesia: “Para Sophia, a vida e a obra não se dividem nem se separam. Na dança, o nosso corpo é o papel da nossa escrita” (p. 18). O ritmo do texto é o da enumeração, da gradação, com frequentes sensibilidades às variantes de um oxímoro: “a unidade na multiplicidade” (p. 18). À dança associa-se uma ideia nietzschiana de leveza, de ausência de gravidade (Badiou, 1999), de “movimento ascensional”, de fuga à “dispersão e ao naufrágio”, no qual o “ser” se revela, na associação desse “bailado” aos restantes elementos, como essência, imanente à poesia e à vida (Sousa, 2014). Porque, em Sophia, poesia e vida não se desassociam, encontram-se em diálogo (luta?) permanente, entre o efémero e o infinito, e a criação poética revela-se uma necessidade e uma parte indissociável do “ser”. José Manuel dos Santos remata o seu estudo voltando àquela ideia de felicidade que com certeza o motivou: a felicidade que está “na physis e na imanência”, também elas unas e múltiplas. Concebidos como “conversa”, em diálogo, estes três artigos levam o leitor a refletir sobre essa característica etérea, onírica, mítica, que Sophia visa enquanto (ser) poeta: o gesto que é preciso, isto é rigoroso e necessário. Em forma de nereide, musa ou bailarina, povoado pelos mitos e divindades da Grécia antiga, executado pelas fadas, pelo mar e pelo vento, vamos encontrar espelhado na sua poesia um espetáculo de bailado em que todos se movem numa versificação marcada pela disciplina/liberdade de composição e por uma coreografia que traduz um ritmo e uma melodia inventadas, porque persistentemente buscadas. Não sendo propósito destes três estudos esgotar a bibliografia possível sobre Sophia e a dança, sentimos a falta de uma referência entre a poesia de Sophia e a de Teixeira de Pascoaes, autor de «O Bailado». Ainda neste domínio cremos profícuo um cruzamento da obra de Sophia com a de Pascoaes, fruto até das leituras de Sophia desde a adolescência. Escreve Pascoaes: “A dança chama-se vida? O que me seduz é o par vertiginoso e os seus movimentos em linhas doidas, agitadas.” (Pascoaes, 1987, p. 41); “A vida é o bailado das horas, a corrida vertiginosa do Tempo […]” escreve Pascoaes (1987, p. 42).1 Sophia parece responder-lhe: “[…] E no seu bailado levada / Pelo jardim deliro e divago […]”. (Andresen, 2015, p. 129)2; “Quem como eu em silêncio tece/ Bailados, jardins e harmonias? (Andresen, 2015, p. 168)… Une-os desde logo esta ideia de que “A vida é um bailado que se continua na morte – um bailado eterno!” (Pascoaes, 1987, p. 39). Em Pascoaes, como em Sophia, a dança é também pré-existente ao tempo inventado pelo seu movimento, o seu “instante” é instante criador, é a “origem”, perene, anterior até à própria criação. Assim, existindo uma dança que é presente e uma que e anterior, terá o poeta, no ato de invenção/nomeação do mundo, de aceitar a pluralidade e rejeitar a unidade. A poesia ‒ oráculo, recetáculo dessa dança primordial que existe antes do próprio tempo ‒revela precisamente esse “ritmo primordial”, nasce com/dessa dança que é “escuta, aceitação” do peso “da gravidade das coisas”, e, por isso “plural, como o ser.” (Eiras, p. 14). Existe em Sophia, como em Pascoaes, essa “consciência múltipla”, que liga a dança “ao ritmo e à despersonalização” (Santos, p. 18). Em ambos, a dança não é uma metáfora decorativa, “um ornamento extrínseco ao viver da poesia” (Sousa, p. 5). Ao contrário do que escreve Farguell, cremos que não há, pelo menos na comparatística portuguesa, muitos estudos interessantes que tenham nascido “com a exigência de compreender a dança como metalinguagem crítica da civilização de uma dada época”. Ou que entre eles sejam mais importantes “aqueles que se confrontaram com a relação entre motivo e metáfora da dança em textos, na medida em que é investigado o modo como o motivo da dança pode ser compreendido como metáfora da sua apresentação” (Farguell, 2001, p. 14).3 Muitos outros aspetos intertextuais e interdiscursivos se podem revelar úteis a quem estuda poesia e/ou dança e/ou pensa sobre muitas coisas somente. Mas também por isso se devem ler livros como este: dão-nos amplas pistas de estudo só porque não vemos neles, depois de os ler, o que com nitidez passámos a precisar de ver.Notas:
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Pascoaes, T. (1987). O Bailado. Lisboa: Assírio e Alvim.
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Andresen, S. M. B. (2015). Obra Poética. Porto: Assírio e Alvim.
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Farguell, R. W. M. (2001). Figuras da Dança. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, trad. M. Filomena Molder et alii.