“De olhos bem abertos”: breve evocação de Sophia de Mello Breyner Andresen

“De olhos bem abertos”: breve evocação de Sophia de Mello Breyner Andresen

29 Outubro 2019

Conduzida por PEDRO BARROS a MIGUEL SOUSA TAVARES,
intervencionada por MARIA LUÍSA MALATO

Transcrição de partes da entrevista feita a Miguel Sousa Tavares, a propósito do lançamento de «Cebola Crua Com Sal e Broa: da infância para o mundo» (2018) em Amarante (23 de Fevereiro de 2019).

Intervenientes: Miguel Sousa Tavares (MST), Pedro Barros (PB), Maria Manuel Alvito (MMA).

Olhos abertos do navegador
Mudam aqui a luz a sombra a cor
E também faces e gestos que modulam
Segundo elaboradas estranhezas
Outro o recorte da vaga e do penedo
Caudas de dragões seguem os barcos

Sophia de Mello Breyner, Navegações (Obra Poética, 2011, p. 691)

PB: Era absolutamente essencial para nós, no Centro de Estudos Amarantinos, que pudéssemos fazer esta apresentação. O Miguel estudou, na primeira classe, em Amarante, em Jazente. Está ligado a nós, eu diria até que fala de nós, fala da nossa terra, fala dos locais que conhecemos e, portanto, era absolutamente essencial podermos também reconhecer que ele é um dos nossos. […] Honrou-nos com um dos dezasseis capítulos desta obra; o primeiro é dedicado a Amarante e à sua vivência no Carvalhal e em Jazente com os amigos. […]

Tudo começou a 25 de junho de 1950, quando o Miguel nasceu – foi num domingo. […] Há neste dia, 25 de junho, três acontecimentos que são curiosos e que […] eu gostaria de partilhar com todos. Neste dia, começou a Guerra da Coreia. Aquela tensão na península da Coreia não é de agora e, neste dia, começou a Guerra da Coreia, que terminaria a 27 de julho de 1953. Também neste dia, tivemos um acontecimento dramático para os nossos irmãos do Brasil: a final do Campeonato do Mundo de futebol, uma final que estava ganha. […] 200.000 pessoas, todas preparadas para a festa do Brasil e [o Uruguai dá a volta e vence] […]. E, finalmente, tivemos o 9.º Circuito de Vila Real, o circuito automóvel de Vila Real. O Miguel tem também, como sabem, uma paixão por automóveis; portanto, pelo futebol e por automóveis. Provavelmente, o tio Manuel Alvito terá estado neste Circuito de Vila Real, o primeiro a ser ganho por um piloto estrangeiro. […] O Miguel veio para Amarante [por causa] da madrinha, mãe da Manuela [Alvito], D. Maria dos Prazeres, mais conhecida por D. Maria do Carvalhal. O tio Manuel [Alvito], [seu] marido, foi buscá-lo ao comboio e o Miguel retrata-o no livro, [falando] precisamente da empatia que se gerou entre os dois, de imediato, e como ele foi uma companhia permanente; de tal forma que, mais à frente, D. Manuel Alvito pensou em adotar o Miguel. Na família eram já cinco irmãos, o Xavier já tinha chegado, e, portanto, punha‑se a hipótese de D. Manuel querer adotá-lo. D. Manuel Alvito […] foi presidente do Amarante Futebol Clube na época de 44/45: o Amarante tinha deixado de ter atividade em [19]42 e, portanto, ele retomou a atividade do clube. D. Manuel, pela paixão que tinha pelos automóveis, foi ele também um corredor […]. O Miguel conta no livro que foi com D. Manuel ao Circuito da Boavista, ver o Grande Prémio de Portugal, e recorda-se perfeitamente dessa ocasião. […] Penso que, de alguma forma, [esta breve informação] traça aquilo que é a família de Amarante que o Miguel partilhou, que aqui ficou e permaneceu pela vida inteira. O Miguel continuou aqui a vir, mesmo não morando em Amarante. […]

(dirigindo-se a Maria Manuel Alvito, no público)

Pedro Barros (esq.) e Miguel Sousa Tavares (dir.)

PB: O Miguel passou a ser um irmão?

MMA: Passou, completamente. O único, aliás, que eu teria e tive […]. Não foi [adotado], porque o pai do Miguel não deixou, pura e simplesmente (risos).

PB: Mas continuaram a ter uma relação muito próxima, […] a fazer férias juntos, na Granja, durante muitos anos…

MMA: Sim, sim, certamente.

PB: O que é que leva a que ainda hoje continuem a ser irmãos?

MMA: A amizade que temos um pelo outro. Desde sempre.

PB: Se eu lhe pedisse que explicasse (às pessoas que não conhecem o Miguel)… Porque existe, por aí, uma certa imagem do Miguel, conflituoso…

MMA: Conflituoso, não. Frontal, verdadeiro, direto, corajoso.

PB: Como definiria [então] o Miguel?

MMA: Inteligente, dinâmico, corajoso, muito frontal.

PB: Isto tem alguma coisa a ver com a família? Com o pai, nomeadamente…

MMA: O pai do Miguel era um homem fantástico, de uma inteligência rara, com um interesse extraordinário. Ouvi-lo falar era um deleite para o espírito. Era um homem extraordinário. Assim como a mãe. Portanto, ele tem bem a quem sair.

PB: Acha que ele merece que o tratemos “como um dos nossos”?

MMA: Ele merece, evidentemente que merece. Penso que ele gostará… Nós gostaremos, com certeza. Muito.

PB: O Miguel quer comentar? […]

MST: Não tenho muito a comentar. Sinto-me um pouco embaraçado. Faz-me lembrar o primeiro dia que cheguei a Amarante e ao Carvalhal. Dormi no quarto onde ainda hoje durmo quando lá vou. E quando abri a janela de manhã, era como se estivesse noutro planeta. Nunca tinha saído de Lisboa e estava numa casa estranha, no meio de gente estranha. Abri a janela. E estava uma assembleia de putos, como eu, à espera que eu acordasse, porque lhes tinham dito que tinha chegado outro puto de Lisboa muito estranho. Abri a janela e estavam todos a olhar. E eu também fiquei estarrecido: não sabia o que havia de fazer. E mostrei-lhes uma bola de futebol, o meu presente, que me tinham dado na véspera, em Lisboa, [porque] tinha feito 6 anos. Os tipos disseram “Ah!”. E então aquilo parecia aquele filme, «2001: Odisseia no espaço» […] Atirei-lhes a bola e fomos jogar futebol. Foi o meu primeiro contacto com os amarantinos: temos alguma coisa em comum […].

PB: Da Escola de Jazente, onde o Miguel andou, onde aceitou praça em [19]56 [se guarda este documento]: “Miguel Gonçalo Andresen de Sousa Tavares, nascido a 25 do mês de junho de 1950, na freguesia de Santo Ildefonso, concelho do Porto, distrito do Porto, residente no Lugar do Carvalhal, freguesia de Jazente, concelho de Amarante, filho de Francisco José de Sousa Tavares e D. Sophia de Mello Breyner Andresen, é seu encarregado de educação D. Manuel Alvito, casado, proprietário, residente no Carvalhal, Jazente… “ […]. O Miguel retrata [neste seu livro] a condição dos seus colegas: era o único que ia de botas para a escola, os outros iam quase todos descalços. Isto era o país que nós tínhamos nessa época, um país miserável. Um país onde as pessoas se alimentavam mal, onde a condição da sobrevivência era a luta diária. Estamos longe disso?

MST: Felizmente estamos. Acho que é difícil explicar às novas gerações até que ponto Portugal era um país miserável, subdesenvolvido em todos os aspetos, culturalmente… Em tudo… É muito difícil de explicar. Acho que é um abismo aquilo que nós mudámos, do ponto de vista social, económico e mesmo cultural – não tem nada que ver, é completamente diferente. Nem vale a pena elaborar muito sobre isso.

PB: Este livro tem um título diferente. Admite que os seus amigos e as suas amigas em Lisboa tenham ficado um pouco chocados com “cebola crua, com sal”?

MST: Chocar amigos e amigas nunca foi coisa que me preocupasse muito. Ou leitores. Agora, o título, por acaso, foi difícil de arrancar. E eu sou um bocado paranoico com títulos, porque custa-me muito começar a escrever sem já ter um. Este saiu quando já o livro estava, praticamente, na gráfica. Já tinha experimentado uns 30 ou 40 que não resultavam e este saiu, de repente, como se fosse uma revelação. Estava lá e fazia todo o sentido, porque eu acho que, tal como digo na contracapa, não é impunemente que uma pessoa cresce, num momento decisivo da vida, a comer cebola crua com sal e broa… Isso, de certa forma, é uma coisa formativa na vida de uma pessoa. […]

PB: A certa altura, este livro esteve para se chamar «Olhar»?

MST: Não. Esteve para se chamar «De olhos bem abertos».

[…] no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor

Sophia de Mello Breyner, Dual (Obra Poética, 2011, p. 578)

PB: É que a mãe do Miguel, numa citação que faz, a certa altura dizia que “viajar é olhar”. Isto é uma viagem: é uma viagem aos tempos da sua juventude, aos tempos que viveu a seguir e, portanto, pensei que fosse um bocado nesta linha de “viajar é olhar”.

Miguel Sousa Tavares

MST: Não, não, não. Isso seria se fosse um livro de viagens, e eu já escrevi alguns, mas não. «De olhos bem abertos» era no sentido de que eu tive – e tenho, continuo a ter – […] o privilégio de fazer jornalismo toda a minha vida e o jornalista é aquele que testemunha aquilo que vê; o olhar é a minha câmara fotográfica privada. […] A certa altura, cansei-me das fotografias e percebi que o olhar era o mais importante de tudo. E essa frase da minha mãe, que foi dita quando estávamos os dois a viajar em Roma… Aqui entre nós, ela estava sentada numa esplanada, a beber chá (ela bebia litros de chá por dia) e eu já estava farto de estar ali, queria ir dar uma volta e ela queria ficar; preguiçosamente, continuar. E disse: “Miguel, viajar é olhar”. Pronto, ok. Mas a frase fazia sentido: de facto, é olhar. Não quer dizer que se fique sentado o dia inteiro a olhar para a mesma coisa, para a mesma praça, mas olhar é muito importante. O olhar é mais do que olhar para as coisas. É olhar para aquilo que vemos, para as pessoas, para a cara das pessoas, para os sinais, para aquilo que identifica. Esse olhar, eu apurei-o muito enquanto jornalista e utilizo-o também muito enquanto escritor […].

PB: O Miguel, neste livro de dezasseis capítulos, dedica, como já disse, um capítulo a Amarante e, depois, ao reencontro com a grande cidade, com Lisboa, de onde tinha vindo. No Colégio São João de Brito, onde a experiência foi outro choque…

MST: … um choque mau.

PB: Mau. […] Depois o Miguel faz Direito [na Universidade de Lisboa] e vive aquilo que foi o final do Estado Novo, o grande anseio [pela] revolução, [pela] mudança, [pela] liberdade. A palavra “liberdade” está significativamente escrita várias vezes no livro: é em torno da palavra “liberdade” que a escrita do Miguel anda muito. Em casa, o ambiente era de oposição ao regime, de luta: o pai, várias vezes preso, perseguido pela PIDE. Por casa do Miguel, passava aquilo que era a intelectualidade do tempo, não só portuguesa, mas também estrangeira. Como era esse ambiente em casa?

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner, Mar Novo (Obra Poética, 2011, p. 341)

MST: Era desafiador, era desagregador, ao mesmo tempo. Para uma criança… Todas as crianças precisam e gostam de uma ordem… Nesse sentido, aquela casa era uma desordem. Lembro-me que, quando o meu pai morreu, o Manuel Alegre, que era muito amigo dele e da minha mãe, escreveu uma coisa muito bonita, que terminava dizendo: “Espero que o Francisco continue, lá em em cima, a desorganizar a ordem estabelecida das coisas”. E era um bocado isso, quer dizer, o meu pai era um desestabilizador da ordem das coisas. Ele, por exemplo, tinha um complexo que eu chamava de “complexo de Lavradio”: os Lavradios eram uns aristocratas do século XVIII que se tornaram célebres por andarem sempre à pancada com a polícia. O meu pai não podia ver uma farda, era uma coisa que o punha fora dele, não sei porquê. Via um polícia e parecia que logo se queria atirar a ele. Tinha uma rejeição inata pela autoridade (que me passou bastante, devo dizer) e que era uma coisa desestabilizadora. E não arranjou nada melhor do que enfiar‑me num colégio de Jesuítas, onde era tudo baseado na autoridade, ainda por cima na autoridade não explicada. E depois admirava-se que eu tivesse permanentemente de castigo e acabasse por ser expulso, por ter dado uma estalada num padre. Foi um murro, não foi bem uma estalada. Havia essa desordem, mas ao mesmo tempo era uma desordem criativa, porque… Eu era novo demais na altura e, enquanto fui novo demais, a desordem marcava mais do que a criatividade… Só depois, a partir de certa altura, começou a marcar-me mais o privilégio de perceber que tinha coisas que os outros não tinham. É que, de facto, passavam lá por casa pessoas extraordinárias. Lembro-me do João Vasconcelos, o João Pascoaes, que era pintor; lembro-me de uma sessão lá em casa, em que estava o João Pascoaes e estavam também vários outros pintores que ficaram a pintar, até às 5 da manhã, tudo o que havia, todos os papéis. Uns estavam bêbedos, outros ainda não, outros viriam a estar. À saída, já não tinham mais papéis onde pintar e havia um quadro de eletricidade à saída da porta da rua que tinha uma tampa de madeira branca. O João agarrou em duas canetas de feltro, uma azul e outra encarnada, pintou um risco azul, outro encarnado, e assinou: “João Mondrian” (piada ao pintor Mondrian, que fazia uns riscos parecidos) […]. Já ninguém os conseguia tirar lá de casa, porque eles não se iam embora. Personagens dessas havia várias por lá sempre a passar: cantores, músicos, isto, aquilo, aqueloutro. O José Escada, que era um grande pintor, ia para lá vender quadros, a 50 escudos na altura. Tudo aquilo era uma desordem. Parecia um abrigo, às tantas dos sem-abrigo. Lembro‑me de aparecer a mãe do João César Monteiro, o cineasta. Ele já era maluco; a mãe ainda era mais maluca. Ela foi lá pedir dinheiro à minha mãe porque o filho tinha morrido e ela não tinha dinheiro para o funeral. O meu pai e a minha mãe, muito comovidos, deram-lhe dinheiro para ela enterrar o filho. Era pura e simplesmente mentira. Só descobriram quando um amigo dos meus pais lhes telefonou “‒ Então morreu o César, apareceu cá a mãe dele a pedir dinheiro para o funeral”… Só então se descobriu, o filho estava vivo. Era assim. Tinha [alguma] graça. O poeta Ruy Cinatti, grande amigo dos meus pais, quando voltou de Timor, não tinha onde ficar. E então ficou lá em casa. Nós achámos isto muito estranho, mas o meu pai convenceu‑nos que era o nosso irmão mais velho, que tinha voltado de Timor. Ele tinha mais trinta anos do que nós, não cabia na cabeça de ninguém, mas, pronto, era o nosso irmão de Timor. Ele, louco varrido também, contava histórias fantásticas. E as pessoas iam e vinham, malucos extraordinários. Aquilo, de facto, era extraordinário. Como eu disse, ficavam até às 5 da manhã, discutiam política, cantavam músicas, dançavam, sei lá… Acordávamos. Depois tínhamos de nos levantar às 6 e meia para ir para a escola. Íamos cheios de sono.

Acordo quando os muros são o medo,
Acordo quando o tempo cai contado,
E no meu quarto entra o arvoredo,
E se desfolha ao longo dos meus membros.

Acordo quando a aurora nas paredes
Desenha nardos brancos e macios,
Acordo quando o sono vos convence
De que sois rios.

Sophia de Mello Breyner, Coral (Obra Poética, 2011, p. 190)

PB: Depois temos os episódios da Faculdade de Direito, rebaldaria completa nessa altura.

MST: Em que sentido?

PB: A oposição ao MRPP, as lutas na Associação de Estudantes, isso tudo…

MST: Isso, sim. Mas fora isso era muito chato; a Faculdade de Direito era muito, muito chata. Era chatérrima, não tinha graça nenhuma. Os professores eram chatos. Diga-se que, em termos académicos, era uma boa escola. Hoje em dia, vejo que os maus juristas não andaram na Faculdade de Direito de Lisboa e os bons andaram. […] Mas [andar lá] era profundamente chato: marcavam faltas, tínhamos de ir para lá [marcar o ponto] e eu adormecia invariavelmente nas aulas. Tinha umas colegas simpáticas que me davam um encontrão de ombros, e eu acordava. Tínhamos alguns professores engraçados: o Marcelo era um professor engraçado, por exemplo, o Galvão Teles, etc. Mas, na maior parte, só debitavam a sebenta. Não tinha grande interesse.

PB: Depois, a seguir, temos o “dia inicial inteiro e limpo”, que foi como a sua mãe retratou o 25 de Abril: como uma grande esperança. E temos aquele episódio do seu pai, que aparece à frente dos tanques. Vinham de Santarém e não sabiam qual era o caminho até ao Quartel da Graça. O Miguel estava lá, nessa altura e depois, quando o seu pai [foi fotografado] em cima da guarita, de megafone, imagem que todos conhecemos […].

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner, O Nome das Coisas (Obra Poética, 2011, p. 618)

MST: Um episódio engraçado que as pessoas não sabem é que na coluna do Salgueiro Maia vinha o meu [futuro] cunhado, que estava a fazer tropa em Santarém. Era então namorado da minha irmã, viria a casar-se com ela. O Maia acordou a camarata, às 2 ou 3 da manhã, já não me lembro, e disse: “‒ Vamos a Lisboa derrubar o regime. Quem é que quer vir?”. Toda a gente disse “‒ Eu, eu, eu!”. Não ouviram a segunda parte, só ouviram a primeira – “Vamos a Lisboa”. E lá vão eles todos. Em Lisboa, o meu cunhado encontrou o sogro… Vinha de um torneio de bridge, ainda de noite, e depara-se com a tropa na rua. Viu tropa, fardas… (cheirou-lhe a fardas boas) e foi perguntar o que é que se passava. E o Maia disse: “‒ Vimos derrubar o regime. Ando à procura do Quartel do Carmo, que não sei onde é…”. E ele [Francisco Sousa Tavares] respondeu: “Venham atrás de mim”. […] Eu tinha mudado de casa, em Lisboa, e não tinha ainda instalado a campainha. Não havia telemóveis, na altura, e não tinha telefone sequer. E nessa noite, acordei com um amigo meu a dar murros na porta, às 6 da manhã, a anunciar-me que havia um golpe de estado. Fui para a rua, telefonei para casa da minha mãe e [ela] disse: “‒ E o seu pai está lá metido, e o Francisco (… que era o nome do meu cunhado) também. Está aqui a Sofia (… que era a minha irmã) a chorar. Vá já para lá”. E eu fui. Encontrámo-nos todos lá. A coisa parecia um chá de família, quase.

PB: Aliás, há aquela história de quando vão à aldeia, ao Alentejo…

MST: A Monsaraz, é. Costumava ir muito para lá, passar os fins de semana com aquela que viria a ser minha mulher. Mas o episódio que refere acontece dois dias depois da Revolução, quando se deu a libertação dos presos políticos em Caxias. O meu pai vai lá, porque tinha uns clientes dele que estavam presos na PIDE. Eu estava a estagiar (… ainda não tinha acabado o curso, mas já estava a estagiar com o meu pai) e fui com ele. E a minha mãe, que era então presidente da Comissão de Socorro aos Presos Políticos, foi nessa condição. Aparecemos pois os três, na televisão, a libertar os presos políticos. Uns tempos depois, quando calhou ir a Monsaraz passar um fim de semana, uma senhora dizia-me assim: “‒ Ah! Eu logo percebi que isto é coisa boa. Está lá a sua família toda metida…” (risos). Para mim, até hoje… (enfim, fica-me mal dizer isto, porque tenho três filhos…) o dia mais feliz da minha vida foi o 25 de Abril. E, se calhar, não vou viver outro assim. Foi, de facto, fantástico. Guardo ainda, em minha casa, duas cápsulas de G3 disparadas para o ar no Largo do Carmo, a certa altura, para acalmar a multidão ou por entusiasmo dos soldados. Apanhei-as e guardo-as comigo como recordação desse dia, um dia mesmo fantástico. Nesse dia, eu ia ser testemunha de um colega meu da Faculdade de Direito, que ia ser julgado no Tribunal Plenário. Eu ia ser testemunha, num julgamento, quando percebi que tudo ia mudar, que o país ia dar uma volta e… foi incrível.

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início

Sophia de Mello Breyner, O Nome das Coisas (Obra Poética, 2011, p. 619)

PB: Pouco depois, colocado na Comissão de Extinção da PIDE, percebeu que, afinal, as coisas não estavam em tão bom caminho…

MST: É curioso, porque, num espaço de meses (seis meses), eu estive várias vezes na Cadeia de Caxias [e em muito diversas circunstâncias]. A visitar o meu pai enquanto preso. Depois, já na Comissão de Extinção da PIDE, a interrogar PIDEs que tinham estado a interrogar o meu pai meses antes. E, depois, a interrogar presos do 11 de março, na qualidade de advogado deles […]. Três situações bem distintas. Eu entrava no Reduto Norte do Forte de Caxias com a sensação de que a História estava em movimento acelerado e que, qualquer dia, poderia ser eu o preso. Aliás, esse ano, esse ano e meio, entre abril de 1974 e o 25 de novembro de 1975, é um tempo-movimento uniformemente acelerado do ponto de vista político, independentemente das ideias que cada um tivesse na altura ou que tenha agora. Absolutamente emocionante. Quando aquilo acabou – e felizmente que acabou, porque não podíamos viver sempre assim, numa feira de loucura – eu, que era jornalista, pensei: “‒ Que chatice isto vai ser a partir de agora”. Porque, de facto, então, todos os dias, para quem trabalhava nos jornais, [o registo] era absolutamente emocionante. Desgastante, mas emocionante. Eu chegava ao fim do dia e só me lembrava do que diziam os jornalistas do Vietname: “‒ Temos o trabalho mais emocionante do mundo e ainda nos pagam para o fazer”. Era verdade.

Miguel Sousa Tavares

PB: Não espero que nos conte tudo, há coisas até que não se contam. Mas, naquele período, o Miguel teve acesso privilegiado a um conjunto de informações, depois desaparecidas. Refiro-me, nomeadamente, ao desaparecimento de muita da informação constante nos arquivos da polícia secreta e que, mais tarde, – sabe-se lá como – viriam a aparecer nos…

MBT: … nos arquivos Mitrokhin, em Moscovo. Quanto a isso, e independentemente da composição política desta assembleia, [posso dizer o que] eu vi, com os meus próprios olhos. Disse-o já, escrevi-o, fui chamado à PJ/ DCCI para o dizer, e repito-o: vi então o PCP roubar camiões de arquivos da PIDE, com a cobertura do MFA, da Marinha (que era quem tinha a guarda do Forte). Camiões de arquivos que depois apareceram em Moscovo e foram publicados no arquivo Mitrokhin. Portanto, passaram diretamente para Moscovo muitos arquivos secretos da NATO, muitos. Mas não só arquivos da NATO. Começaram por fechar uma ala do Forte de Caxias, onde só podiam trabalhar os tipos do PCP. Os outros não podiam. Eu não era de partido nenhum, tinha sido indicado pelo Partido Socialista e pela LUAR, mesmo não pertencendo a nenhum dos dois… Mas não era do PCP e deixei de ter comunicação com aquilo. Depois comecei a perceber porquê: os arquivos foram carregados. Disse-o, escrevi-o, publiquei, fui chamado para testemunhar, testemunhei e confirmei. Não aconteceu nada.

Heraclito de Epheso diz:

“O pior de todos os males seria
A morte da palavra”

Diz o provérbio do Malinké:

“Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento
Mas não pode
Enganar-se na sua parte de palavra”

Sophia de Mello Breyner, O Nome das Coisas (Obra Poética, 2011, p. 632)

PB: O Miguel defende no livro que o Partido Comunista tinha um projeto de instauração de um regime comunista em Portugal.

MST: Não tenho [sobre essa matéria] a mais pequena dúvida, nenhuma. Aliás, isso está documentado. Hoje, a minha única dúvida, é saber se em Moscovo, na U.R.S.S. governada por Leonid Brezhnev, lhes deram luz verde ou não. Se eles acharam que tal era possível, ou não era possível. [Na altura, a princípio], os americanos cruzaram os braços. Embora o [Frank] Carlucci, em Lisboa, os tenha entretanto convencido a não cruzarem os braços ‒ “não, aquilo não está perdido para o Partido Comunista”, “não, vocês apostem no Mário Soares”… Foi Mário Soares ‒ que acabou financiado pelos alemães, em grande parte pela Fundação Friedrich Ebert (FES) ‒ quem conduziu efetivamente o contragolpe. Que o Partido Comunista quis tomar o poder em Portugal não tenho a mais pequena dúvida. Perguntei isso ao Álvaro Cunhal um dia, em entrevista, mas claro que ele me disse que não: “‒ Não, de modo algum, não quisemos” […]… Há um livro de um húngaro, François Fetjö (1909-2008), chamado «História das Democracias Populares após Estaline», onde vemos bem como, vinte e tal anos depois, o Partido Comunista Português reproduziu em Portugal exatamente os mesmos passos que foram feitos lá, [nos países da esfera soviética]: tomada de controlo dos Serviços Secretos, tomada de controlo da imprensa do Estado, Unicidade Sindical… Tudo, tudo, passo por passo. O objetivo final seria decapitar o Partido Socialista, o que efetivamente tentou fazer com o golpe de Manuel Serra contra Mário Soares. Só quando falharam aí, começou tudo a andar para trás. […]

PB: Mário Soares, para o Miguel, é a grande figura do século XX.

MST: Da nossa política.

PB: Amigo da casa, com muitas cumplicidades com a família, com o seu pai… E é alguém que o Miguel admira bastante. Como se relacionava com Mário Soares?

MST: De várias maneiras. Passei por várias fases. Boas, más, tudo. Uma vez, numa entrevista em direto, ele não gostou de uma pergunta que lhe fiz e deu-me um pontapé debaixo da mesa. Magoou-me, não sei como me aguentei sem dizer “ai” ou “vai à merda”. Passámos variadíssimas fases, mesmo depois, curiosamente, no final da vida dele… Eu costumava passar férias no Algarve, logo ao lado da casa dele. Quando a minha mãe era viva, eles visitavam-se muito […] e eu ia [levá-la]. Quando a minha mãe morreu, ele continuou a convidar-me para ir lá jantar. Eu lembro-me da última vez em que ele me telefonou, estava lá sozinho com a enfermeira e disse-me assim: “‒ Miguel, venha cá jantar. Mas tem de esperar que o João [o filho] não esteja cá, que ele está um chato”. Era um grande contador de histórias também. Tinha muita graça. Mas era um homem que eu admirava também porque tinha muita coragem, muita perseverança. Acho que ele conseguia ver longe e, naquilo que era essencial, não se enganava. Tinha certamente muitos defeitos, eu nunca escondi… Uma vez, comigo a entrevistá-lo, levantou-se e foi-se embora. Felizmente, não foi em direto, era uma entrevista gravada no Palácio de Belém. Foi-se embora aos gritos, a dizer: “Você veio aqui ofender‑me” e mais não sei quê. Eu, que já o conhecia, fiquei sentado. Olhei para o assessor dele e disse assim: “‒ Ó Carneiro Jacinto, o que é que tu achas? Um quarto de hora, ou meia hora?”. E o gajo diz: “‒ Hum, vinte minutos”. […] E ele voltou. […] De outra vez, contei-lhe uma anedota que ele adorou. Íamos no avião, já não sei a caminho de onde, e eu contei-lhe: “‒ Ó Senhor Presidente, sabe a anedota de quando o senhor morre e vai para o céu?” Ele disse: “‒ Não, não”. “‒ O senhor é ateu, mas, chega lá cima e resolve ir para o Paraíso. Pelo sim pelo não, é melhor do que o Inferno. Chega lá, e São Pedro diz-lhe: «Eh, pá, não pode ser, ó Dr. Mário Soares… O senhor cometeu tantos pecados no mundo, não pode ir para o Céu». O Senhor Presidente implora, implora: «‒ Olhe que eu também levei a democracia a Portugal! Olhe que eu pus Portugal na Europa! Olhe que não sei o quê…». E São Pedro: «‒ Eh, pá, está bem… Você entra, mas vai ter de levar uma grande penitência…» «‒ Então qual é?»… «‒ Você vai andar vinte anos de mão dada com a Madre Teresa de Calcutá! De manhã à noite. Você acorda com ela, toma o pequeno-almoço com ela, almoça com ela, janta com ela, dorme com ela. Não fala com mais ninguém a não ser com ela. De manhã à noite.». «‒ Tem de ser?». «‒ Tem de ser. Ou então é o Inferno.» «Ah, bom. Então, se é isso, vou com a Madre Teresa». O então o Senhor Presidente vem, de mão dada com a Madre Teresa, e nisto vê o Cavaco, de mão dada com a Madonna! Aí, o Senhor Presidente passa-se da cabeça… (esta anedota estou eu a contá-la a ele no avião), passa-se da cabeça, volta atrás e não se contém: «‒ Ó São Pedro, está bem que eu tenho alguns pecados… Mas o Cavaco é algum santinho para ir ali com a Madonna?». «‒ Calma, filho. Que aquilo é a penitência da Madonna.»“ (risos) O homem ia caindo do avião abaixo, foi um momento da maior felicidade: ele torcia-se a rir, torcia-se a rir de felicidade. […]

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
[…]
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

‒ Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Sophia de Mello Breyner, “Pátria”

(Mário Soares, Os poemas da minha vida, 2005, p. 134)

PB: Na parte final, nos últimos capítulos, o Miguel fala sobre a sua ligação ao Zeca Afonso, em Lagos, o pescador, o homem que lhe ensinou a pescar e o levava à pesca…

MST: O Zé Afonso, não era o cantor.

PB: O Zé Afonso. Iam à pesca da lula. Daquelas horas que passavam juntos quando iam para o mar – o Miguel ainda um rapaz novo – resultou uma amizade que se manteve até hoje. Eu diria comovente o retrato que faz dessa ligação, ainda hoje mantida. O que é que verdadeiramente o levava a ir com ele, à pesca?

MST: Primeiro, o fascínio de um miúdo que tinha então 11 anos. Ele tinha o dobro, teria 22. Há ainda o fascínio do mar, o fascínio da pesca, que ainda hoje tenho. Nós íamos à pesca à vela (ele na altura nem sequer tinha barco a motor). Depois, devo muito à minha mãe, que teve a coragem de sempre me deixar ir. Porque ela tinha medo e, às vezes, o mar estava mau. Ela deixava-me ir na mesma. Passávamos a noite inteira à pesca. A mim fascinava-me, como a qualquer miúdo, [aquela aventura]. Felizmente (ainda que eu ache que não teria ficado agarrado) não existiam jogos eletrónicos e essas coisas. O meu pai só deixou entrar a televisão em nossa casa quando eu já tinha uns 16 anos, o que também ajudou muito. Os Verões, nessa altura, em Lagos, eram praia, praia, praia, mar, mar e mar. Era apanhar caranguejos, camarões, aprender a mergulhar… Ir à pesca. Ser à noite era mais uma razão para a escapatória. E aquilo era mágico. Tenho saudades: assim como tenho a nostalgia de comer cebola com sal e broa, tenho a nostalgia do cheiro do Petromax no mar, daquele cheiro que [me deixava meio tonto]. E de comer escabeche. Que era o que sempre se comia porque não tínhamos como aquecer a comida. E no fim, para aquecer, o Zé Afonso dava-me um gole de aguardente de medronho, de que ainda hoje gosto imenso. Aquilo queimava […] Um puto de 12, 11 anos, beber um medronho era qualquer coisa. […]

No alto mar
A luz escorre
Lisa sobre a água.
Planície infinita
Que ninguém habita

Sophia de Mello Breyner, Poesia (Obra Poética, 2011, p. 47)

Terminou esta entrevista com uma homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen: leituras, acompanhadas ao piano, de “Arte Poética III”, “Pudesse Eu”,” Tudo me é uma dança” e “Quando”, de sua autoria, e ainda do poema de Teixeira de Pascoaes que lhe é dedicado, “À Sofia Breyner”. Os poemas de Sophia introduzidos à volta desta entrevista não fizeram parte do evento e são da responsabilidade de Maria Luísa Malato.

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