Escrito por LIRANDINA GOMES
A linguagem lírica e as imagens poéticas de Sophia de Mello são marcadas por conteúdos geográficos como paisagem, lugar, cidades que têm um sentido do vivido, que representam ressonâncias imaginativas e afetivas da sua existência.
O interesse recíproco dos geógrafos humanistas/culturalistas pela literatura, poesia e outras artes e, dos filósofos, poetas e escritores pelo espaço e suas categorias analíticas como paisagem, região e lugar vai originar o que o geógrafo, escritor e poeta Kenneth White denominou “Geopoética”, em 1989. No mesmo ano em que criou o Instituto Internacional de Geopoética, K. White declarava:
[…] a geopoética oferece um terreno de encontro e estimulação recíprocos nao somente entre a poesia, pensamento e ciência, mas entre disciplinas das mais diversas, desde o momento que estão prontas para saírem de quadros na maioria das vezes restritos, e entrarem num espaço global (cosmológico, cosmopoético) interrogando-se sobre a questão fundamental. O que sabemos da vida na terra, o que sabemos da vida no mundo. (White, 1989, p. 1)
A geopoética propõe um ampla e profunda reflexão sobre a espacialidade humana, o “ser- e -estar no mundo”, sobre a vida na terra em consciência e essência. Isso pressupõe uma percepção integrada de si, da natureza e do mundo, que pode ser expressa por diferentes linguagens, ações, formas, expressões artísticas e culturais. Correlativamente, a linguagem poética é a expressão mais íntima do ser, como afirma G. Bacheralard, no livro «A Poética do Espaço», em 1957. Para ele, “a poesia é mais que uma fenomenologia do espírito é uma fenomenologia da alma, é uma linguagem direta do coração”. Segundo o filósofo, “a poesia surge então como fenômeno de liberdade, a poesia é o maior ato de liberdade” (Bachelard, 1993, p. 4-11). Parece-nos clara a ligação com a cosmovisão da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. No livro «Geografia», publicado em 1967, Sophia, na última secção, em “Arte Poética II”, escreve:
A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência, nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. (Andresen, 2014a, p. 113)
A linguagem lírica e as imagens poéticas de Sophia de Mello são marcadas por conteúdos geográficos como paisagem, lugar, cidades que têm um sentido do vivido, que representam ressonâncias imaginativas e afetivas da sua existência. Vivencia em diferentes espaços/tempos, trocas recíprocas entre a poeta e espaços louvados e amados. Para além da espacialidade humana diversos elementos da natureza foram fonte de inspiração para a obra literária e poética de Sophia de Mello. Podemos chamá-la assim de “poeta do espaço”. Na imagem poética, os elementos da natureza que se destacam são o mar com suas ondas, praias, brisas, areias, sons e mistérios e, a terra, com suas árvores, pássaros, cidades, casas, jardins, ventos e silêncios que conectam o mundo interior Sophia de Mello com o exterior. Esta dialética do mundo exterior/interior é declarado pela autora em “Arte Poética II”:
A poesia pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta. Pois a poesia é minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal, mas sim de uma vida concreta. Ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão. (Andresen, 2014a, p. 113)
Na fronteira do mundo real e o imaginário, a poesia de Sophia de Mello expressa a relação existencial do homem com a terra e a paisagem, um “estado de fusão afetiva vital e essencial”. A consciência cosmológica e espacial de Sophia de Mello converge com a abordagem do geógrafo E. Dardel, quando ele afirma que “a paisagem não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser com os outros homens, base de seu ser social” (Dardel, 1990, p. 32). Segundo Dardel, a paisagem pressupõe uma presença do homem, mesmo lá onde toma a forma de ausência. Nessa perspectiva o autor conclui que “a paisagem fala de um mundo onde o homem realiza sua existência como presença circunspecta e atarefada” (ibidem). Ora o poema “Eu me perdi”, de Sophia, expressa precisamente essa consciência espacial, e a relação visceral da poeta com a terra e o mar:
Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia, agiota fariseu
Ou cocote
Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra
Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar
(Andresen, 2014a, p. 37)
O mar representa o espaço privilegiado e a imagem dominante na construção identitária, poética e literária de Sophia de Mello. Entre a poeta e o mar, o mar e a poeta estabelece-se uma ligação natural e espontânea que interage e se projeta de dentro e para fora, transborda e se dissolve. Esta intimidade de Sophia de Mello com o mar é revelada em vários poemas a exemplo de “Mar Sonoro”, publicado no livro «Dia do Mar», em 1947, recentemente musicado pela cantora e intérprete baiana Maria Betânia:
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
(Andresen, 2014c, p. 30)
Freddie Collins
Dois temas são dominantes no livro «Geografia»: a atenção ao mundo circundante e vivido como uma antena, e o autorretrato da poeta. A fusão afetiva com a terra e o mar e o dilema existencial entre a eternidade e sua finitude são revelados em “Poema”:
A minha vida é o mar o Abril a rua
[…] A terra o sol o vento o mar
São minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada.
(Andresen, 2014a, p. 107)
A relação orgânica de Sophia de Mello com a terra, a água e os diversos elementos da natureza expressa a essência geográfica do ser-e-estar no mundo, denominado por Dardel (1990) de “geograficidade”. Pensando a dimensão espacial da existência e as relações essenciais que ligam a tudo nos cerca, Dardel considera que “o homem e a terra é uma coisa só”. Neste contexto, ele propõe-se estudar uma fenomenologia do espaço.
Atenta ao espaço circundante e às conexões com diferentes espaços (construído, aquático, mítico e aéreo), Sophia de Mello Breyner, no livro «Geografia», aborda um espaço-tempo que ultrapassa as fronteiras de Portugal em direção ao Atlântico Sul (Brasil) e ao Mediterrâneo (Grécia e Itália) onde regista ora um “encantamento” ora um “desencantamento” com os diferentes contextos e realidades geográficas. Os espaços geográficos são diferenciados, nos seus aspectos físicos, culturais e sociais, o que confere a cada lugar ou país uma singularidade. Na secção Mediterrâneo, no poema “No Golfo de Corinto”, a poeta retrata uma geografia mítica, de grande apelo imagético e sensorial, dominada pelos aromas e harmonia das formas dos deuses gregos:
A respiração dos deuses é visível:
É um arco halo uma nuvem
Em redor das montanhas e das ilhas
Como um céu mais intenso e deslumbrado
E também o cheiro dos deuses invade as estradas
É um cheiro a resina a mel e a fruta
Onde se desenham grandes corpos lisos e brilhantes
Sem dor sem suor sem pranto
Sem a menor ruga de tempo.
(Andresen, 2014a, p. 80)
No poema “Epidauro”, Sophia de Mello deixa-se penetrar pela magia da luz e sombras, pelas lacunas de silêncio e solidão inerentes à condição humana:
O cardo floresce na claridade do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde cada coisa é: trazida a luz/ trazida à liberdade da luz/trazida ao espanto da luz. Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia após os nossos anos de vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar (Andresen, 2014a, p. 83).
No livro «Geografia», na secção “Brasil ou do outro lado do mar”, Sophia de Mello retrata a diversidade paisagística e cultural do Brasil influenciada pelas representações e relatos das viagens coloniais. Esta realidade geográfica desconhecida, distante, exuberante e exótica revela a sua percepção do Brasil, nomeadamente no poema “Descobrimento”.
Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus deslumbrados
(Andresen, 2014a, p. 95)
Os oceanos que unem os povos e os continentes também limitam a liberdade de ir e vir, restringem as possibilidades dos encontros e das experiências. A poesia, segundo Sophia de Mello Breyner, permite o encontro e o reencontro, como se observa no poema dedicado a Manuel Bandeira:
Este poeta está
Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar
Relembrando
O antigo jovem tempo tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
As três mulheres do sabonete Araxá
E minha avó se espantava.
(Andresen, 2014a, p. 96)
No poema “Brasil 77”, Sophia de Mello exalta a grandiosidade brasileira nas suas dimensões humana, cultural, linguística e literária, dos seus poetas e escritores. Com exatidão repudia veementemente a realidade política e social do país nas décadas de 1960/70, demonstrando o seu compromisso incondicional com a justiça social e a liberdade, (in)conconcluindo nós aqui com um tema que se mantem atual e urgente no Brasil de hoje:
Brasil de canto e doçura/ Em vosso e meu coração/Brasil que une e mistura/ Todas as raças da terra/Brasil imensa aventura/ Em nossa imaginação/ Mas ao Brasil que tortura/ Só podemos dizer não/ Brasil dos Bandeirantes/ E das gentes emigradas/ Em tuas terras distantes/ As palavras portuguesas/ Ficaram mais silabadas/ Como se nelas houvesse/ Desejo de ser cantadas/ Brasil espaço e lonjura/ Em nossa recordação/ Mas ao Brasil que tortura/ Só podemos dizer não/Brasil de Manuel Bandeira/ Que ao franquismo disse não/ E cujo verso se inscreve/ Neste poema invocado/ Em vosso e meu coração/ Brasil de Jorge de Lima/ Bruma sonho e mutação/ Brasil de Murilo Mendes/ E Cecília a tão secreta/ Brasileira dos Açores// Brasil de Carlos Drummond/ Brasil do pernambucano/ João Cabral de Melo que/ Deu à fala portuguesa/ Novo corte e agudeza/ Brasil da arquitectura/ Com nitidez de coqueiro/ Gente que fez da ternura/ Nova forma de cultura/ País de transformação/ Mas ao Brasil que tortura/ Só podemos dizer não/ Brasil de D. Helder Câmara/ Que nos mostra e nos ensina/ A raiz de ser cristão/ Brasil imensa aventura/ Terra de renovação/ Mas ao Brasil que tortura/ Só podemos dizer não.
(Andresen, 1982)
NOTA: A autora escreve segundo a grafia vigente no Brasil.