Escrito por MARIA JOÃO SIMÕES
Ó noite, flor acesa, quem te colhe?
Sou eu que em ti me deixo anoitecer,
Ou o gesto preciso que te escolhe
Na flor dum outro ser?
Sophia de Mello Breyner
O olhar atento e a escrupulosa escuta são modos ou caminhos fundamentais para sentir e para estar no mundo, isto nos diz insistentemente e de mil maneiras Sophia. E esta sabedoria tem sido salientada e explicada pelos críticos que se demoraram na interpretação da escrita da escritora de «Coral», desde Eduardo Lourenço, na sua introdução à «Antologia Poética», a Silvina Rodrigues Lopes ou, mais recentemente, Fernando J. B. Martinho e Carlos Mendes de Sousa – para citar apenas alguns dos mais conhecidos hermeneutas da poesia de Sophia.
O encanto e a musicalidade prendem quem lê a poesia de Sophia que é singela e até aparentemente simples, mas que guarda uma pureza alcançável apenas aos grandes poetas.
A crítica tem reconhecido que muitas destas características também surgem na produção contística de Sophia. Mesmo as suas narrativas que, à partida, não são dirigidas a um público mais jovem mantêm uma certa simplicidade de orquestração narrativa e seguem uma linha cronológica linear; porém, não deixam de mostrar uma grande densidade simbólica. A profundidade dos seus contos emerge dessa procura constante da beleza das coisas, dos fenómenos e dos eventos que caracteriza a autora, mas sobretudo da intensidade do sentir, da fina sensibilidade transmitida pelas suas personagens, da infiltrante partilha do sensível, parafraseando nós aqui Jacques Rancière. Com efeito, como esclarece este filósofo, a estética partilha um terreno comum com a política e com a vida quotidiana – um terreno constituído pelo lado sensível da atividade humana. Tal não quer dizer que essa partilha se faça sem tensões, pois há sempre “uma distribuição polêmica das maneiras de ser e das “ocupações” num espaço de possíveis. A partir daí é que se pode colocar a questão da relação entre o “ordinário” do trabalho e a “excepcionalidade artística” (Rancière, 2009, p. 63).
A relevância dada à captação da existência através da perceção sensível aproxima Sophia de várias tendências da filosofia existencialista. Esta aproximação tem sido reconhecida por vários críticos, entre os quais se contam Fernando J. B. Martinho e Clara Rocha. No seu estudo sobre os «Contos Exemplares», Clara Rocha (1978, p. 13) nota que há “reminiscências da filosofia existencialista” em determinados temas de Sophia e, em particular no tema da “viagem” e no tema do “absurdo”, embora este último tema seja contrabalançado pelo tema da “esperança” de raiz cristã. Por seu turno, F. J. B. Martinho (2013, p. 14) afirma que certos termos repetidamente utilizados na escrita de Sophia, tais como “desespero”, “absurdo”, “desencontro”, “náusea”, “nojo”, põem “em evidência que a poeta não permaneceu imune a um certo ar do tempo típico dos anos 40 e dos anos 50, em Portugal e noutros países, muito marcado, como se sabe, pelas filosofias da existência”.
No caso português, o sentido de divulgação difusa e variada das filosofias da existência é apontado bem cedo, ou seja, logo em 1946, por Luís Cabral de Moncada ‒ no texto introdutório à sua tradução da obra «Filosofia Existencial», de Otto F. Bollnow ‒ onde, a propósito do existencialismo, o tradutor afirma:
Os jornais falam dele nas suas crónicas literárias e na sua secção impressionista dos fait-divers captados nas mesas dos cafés. Fala-se dele a sério e a brincar. Fazem-se conferências que não ficam desertas. O público intelectual mais nervoso espevita a orelha. Topam-se na rua pessoas que, uma ou outra vez, nos desfecham à queima-roupa a pergunta: mas que é afinal o Existencialismo? Outros, mais timoratos, no sector tradicionalista, sabendo-lhe a proveniência germânica, como que se persignam, desviando obliquamente o olhar e traindo assim um “complexo”, quase freudiano, de quem tem o diabo. (Moncada, 1946, p. viii)
Segundo Miguel Real (2011, p. 313), neste texto, “não filosófico mas muito jornalisticamente avisado, Luís Cabral de Moncada enquadra a emergência do existencialismo em Portugal na explosão e “inquietação de ideias” posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial, revolucionando política e socialmente os antigos costumes europeus e portugueses”. A própria tradução da obra contribuirá para a divulgação do pensamento existencialista.
Quando questionada sobre as suas influências, Sophia revela sobretudo as suas influências poéticas, nomeadamente Antero, Pessoa, mas também Homero, Dante, Shakespeare, salientando ainda as leituras de Byron e a descoberta de Rilke. Numa entrevista de 1987, dada ao Diário de Notícias – Cultura, Luís Figueiredo Tomé pergunta diretamente à escritora se se considera uma heideggeriana, no sentido em que o filósofo diz que “a existência de Deus é indemonstrável” e que “o homem não é senhor do existente, o homem é pastor do ser”. A resposta de Sophia revela a sua integridade, pois logo afirma que a sua “leitura dos filósofos foi sempre muito fragmentária, anárquica e bastante vagabunda” (Andresen, 1987, p. vi). Diz claramente que a sua preferência vai para a poesia e não para a filosofia, considerando que têm “discursos diferentes”. Mas também diz conhecer os pré-socráticos, salienta a importância da «Origem da Tragédia» de Nietzche e de certos temas de Heidegger — nomeadamente a noção de “aletheia” com os seus sentido de “verdade e de “desvelamento” — porque iam ao encontro do que procurava.
Provavelmente terá havido um conhecimento mais indireto através de conversas entre o círculo de amigos com os quais Sophia contactava, pelos autores que então eram lidos e comentados. Foi em 1948, por exemplo, que Salette Tavares publicou a sua tese de licenciatura intitulada «Aproximação ao pensamento concreto de Gabriele Marcel», onde aborda a importância da “filosofia do concreto” do dramaturgo e filósofo francês, mostrando o seu contributo para a filosofia coeva (Tavares, 1948, p. 3). Destaca ainda a presença da intuição no seu pensamento e a relevância do tema do “mistério do ser” – que dá título a uma das suas obras – bem como das “noções de amor e participação devida ao cristianismo” (ibidem, p. 8). No seu pensamento, seria ainda fundamental a dicotomia entre Ter e Ser, como demonstra a ensaísta (e futura poeta).
Sophia intuiu e trabalhou alguns destes temas, captando-os como uma antena, como nos diz na “Arte poética II”: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é a arte de ser. […]. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça” (Andresen, 1968, p. 231). A sua formação cristã viabiliza o seu sentido esperançoso, mas, como explicou, desde a sua adolescência se encaminhou para uma interpretação particular da presença de Deus, procurando o seu Corpo na terra, pois, em seu entender, “o Cristianismo é também uma relação com a imanência” (cf. Andresen, p. 1985).
Se as grandes referências de Sophia não são maioritariamente filosóficas, como a própria poetisa nos disse, elas são sobretudo artísticas, como será expectável. Revela-nos a autora de «Dual» como a cativou a força da pintura de Picasso, mas também a intensidade luminosa de Amadeo de Souza Cardoso com a qual bem cedo sentiu empatia. Os poetas são, porém, determinantes em Sophia e desde logo Camões e Antero, ainda que, segundo afirmou repetidamente, a grande revelação para ela tenha sido Rainer Maria Rilke.
Ora, as primeiras traduções dos poemas de Rilke realizadas por Paulo Quintela, o seu grande tradutor, começaram a ser publicadas em 1942, mas o ilustre professor já em 1939 tinha publicado a tradução da “Primeira Elegia de Duíno”, no número 8 da Revista de Portugal, com um comentário e análise do poema. Convém relembrar que a Revista de Portugal, fundada em Coimbra por Vitorino Nemésio, viu alguns dos seus colaboradores (que inicialmente estavam em Coimbra) partirem para Lisboa ou para o estrangeiro, continuando a colaborar na revista. Tal é o caso, precisamente, de Vitorino Nemésio, reiteradamente referido por Sofia, o qual virá a ser professor da Faculdade de Letras de Lisboa, que, como se sabe, Sophia frequentou. Por seu turno, Delfim Santos, depois de diferentes estadas no estrangeiro a estudar em várias escolas alemãs e inglesas (antes e depois de realizar o doutoramento em Coimbra, no ano de 1940), irá integrar o quadro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa a partir de 1943, tendo sido, como é sabido, um dos grandes difusores de Heidegger através de artigos publicadas na Revista de Portugal e na Revista Portuguesa de Filosofia.
Voltando a Rainer Maria Rilke, como nos informa Arnaldo Saraiva, a poetisa tinha conhecimento da sua poesia mesmo antes das traduções portuguesas, pois possuía uma tradução francesa num exemplar com a data manuscrita de 1938 (Saraiva, 1984, p. 9). Como sublinhou Maria António Hörster, Sophia aproxima-se da poesia rilkiana, quer pela sua vertente intimista e misteriosa, quer pela grande atenção dada ao real (Hörster, 2001, p. 545). Retomando esta ideia, Alexandre B. Felizardo sublinha o modo como “Sophia empreende uma espécie de síntese das duas vertentes estéticas da poesia”, que, no caso de Rilke, se distribui por duas fases: a estética da “poesia-coisa” e uma estética da “palavra abstrata, irrigada pelo pensamento dissertativo e filosófico [e pela] busca da transcendência” (Felizardo, 2011, p. 1694). Assim, esta “mistura de presença e ausência, de concreto e de abstrato, de morte e permanência”, que marca a escrita de Rilke (cf. Horster, 1993, p. 165) e que marcará também a de Sophia, determinará a presença, na poesia da escritora portuguesa, de temas como o mar, a cidade, a natureza. Porém, em Sophia, algumas das questões mais transcendais vão ganhar cores que mostram a captação de ideias do existencialismo, visíveis em temas como a angústia, a escolha, a responsabilidade do viver aqui no mundo, a premência do agir e a procura de autenticidade e de verdade.
Joana Rêgo
É neste enquadramento (onde estão implicados os diversos cruzamentos de influências) que se destaca, em meu entender, o tema da escolha, o qual ganha uma dimensão alegórica no conto “História da Gata Borralheira”, incluído na obra «Histórias da Terra e do Mar», e no conto “A Viagem”, publicado nos «Contos Exemplares». No seu preciso e abrangente estudo sobre os «Contos Exemplares», Clara Crabbé Rocha, salienta a importância da alegoria na contística de Sophia, explicando como ela surge ligada à sua constante atenção ao real e se processa num movimento que vê o geral no particular, de acordo com o ensinamento de Goethe (Rocha, 1978, p. 31).
No conto “A História da Gata Borralheira”, a sua protagonista Lúcia, jovem de dezoito anos, vai a um baile numa casa rica com um antigo vestido da madrinha adaptado para ela e uns sapatos velhos e rotos. No baile, embora seja desdenhada pelas jovens elegantes por causa do seu vestido lilás e fora de moda, é chamada para dançar por um rapaz amigo da filha dos donos da casa. Porém, o que mais temia acaba por acontecer: um dos sapatos salta-lhe do pé e fica no meio do salão visto por toda a gente. Nessa noite, ela escolhe deixar o pai viúvo e os seus dois irmãos e ir viver com a sua madrinha. A sua opção de vida vai ser a de enriquecer, prometendo a si mesma que retornaria àquela mesma sala com um vestido bonito e com sapatos de brilhantes. No conto, repetidamente aparece o verbo escolher e a madrinha chega mesmo a dizer-lhe: “Viver é escolher. […] Se um dia escolheres um caminho diferente, vem viver comigo” (Andresen, 2006, p. 38). Lembrando-se desta frase tentadora da madrinha, Lúcia diz para si mesma que tem de “escolher” este “outro caminho”. Tal opção é colocada pela própria personagem em termos dicotómicos: ou viver pobre, mas num ambiente “quente, vivo e livre”, ou viver na riqueza, mas subordinada à “minuciosa tirania da tia rica” e aos seus “discursos de prudência e cálculo” (ibidem, p. 39). Ora a ideia da escolha é muito importante na filosofia existencialista, sendo verdadeiramente acentuada por Jean-Paul Sartre que, no seu texto «L’existencialisme est un humanisme», nos diz:
Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, ao mesmo tempo, o valor do que nós escolhemos […]. Se a existência precede a essência e nós queremos existir ao mesmo tempo que modelamos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para a nossa época […]. Consequentemente, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, uma vez que ela implica a humanidade inteira. (apud Ferreira, 1978, p. 198)
Em grande parte, é esta ideia que nos transmite o conto de Lúcia, uma singular gata borralheira do século xx, que é, ao mesmo tempo, uma personagem intemporal, pois é aquela que escolhe o caminho do “poder”. Com efeito, passados vinte anos, quando Lúcia regressa à sala do espelho onde estivera no seu primeiro baile, um ser desconhecido, que parece sair do espelho, virá cobrar-lhe o “preço do mundo” (Andresen, 2006, p. 50). Ora este rapaz misterioso encarna o sentido da justiça, não só social mas também universal, quando afirma explicitamente que qualquer escolha de cada um de nós tem peso e repercussão no tecido social e, num sentido sinedóquico na humanidade. Ele explica: “Lembra-te: a partir daquela noite de há vinte anos tiveste uma vida maravilhosa. […] Outros sofreram, foram abandonados, humilhados, vencidos. Tu, não. Tu venceste sempre. Dá-me o teu sapato: é o preço do mundo” (ibidem).
A opção de Lúcia, orientada para o enriquecimento, conduz ao esquecimento dos outros e a sua ação irá sempre prejudicar os outros. Neste texto, aparentemente algo ingénuo, há, na verdade, um peso ideológico que se deve ler nas camadas mais profundas da sua escrita. As marcas ideológicas do texto mostram que Sophia é crente, embora perfilhe um posicionamento muito peculiar, heterodoxo e bastante interventivo.
Como é conhecido, em 1965, é divulgado o texto “Um testemunho de católicos”, em protesto contra as arbitrariedades da ditadura, de que Sophia também é signatária (está disponível o texto integral na página da Biblioteca Nacional de Portugal dedicado à poetisa); mas, antes desta atitude, é possível observar que, já em 1964, Sophia marcara a sua posicionamento por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído a «Livro Sexto» pela Sociedade Portuguesa de Escritores, aludindo ao Padre Pierre Teilhard de Chardin, teólogo, paleontólogo, pedagogo e filósofo vitalista, na qualidade de pensador de referência, e referindo a sua conceção de progresso. De facto, na obra «L’Avenir de l’Homme», este católico, não muito bem amado pelo Vaticano, afirma:
O Progresso não é o que o homem comum pensa e que se irrita de não ver chegar. O Progresso não é imediatamente a doçura, nem o bem-estar, nem a paz. Também não é o repouso. Nem sequer é diretamente a virtude. Essencialmente o Progresso é uma Força, e a mais perigosa das Forças. Ele é a Consciência de tudo o que existe e de tudo o que se pode. (Chardin, 1959, p. 31)
Esta ideia de consciência do que pode ser feito ganha em Sophia um peso idêntico àquele que a noção de responsabilidade tem para os existencialistas e que Sartre enuncia claramente: “em todo e qualquer modo, eu carrego a responsabilidade de uma escolha que, me comprometendo a mim, compromete a humanidade inteira, mesmo se nenhum valor, a priori, determina a minha escolha” (apud Ferreira, 1978, p. 200).
A certeza de que se pode fazer algo pelos outros e pelo mundo leva a poetisa a destacar a razão da sua preferência por quem não se mascara e por quem não se cala, visível nesse célebre poema “Porque os outros se mascaram mas tu não” (Andresen, 1975, p. 159), no qual o “porque” anafórico marca precisamente o destaque pretendido ‒ a explicação dos motivos e das razões dessa preferência. Na verdade, como salienta Gastão Cruz, em Sophia “a dimensão ética […] não exclui a referência política nem o combate explícito pela justiça” (Cruz, 1999, p. 88).
É ainda a coragem de agir que é admirada no poema “Catarina Eufémia”, onde reaparece um “porque” explicativo: “Porque a tua lição é esta: fazer frente” e não “fica[r] em casa a cozinhar intrigas” (Andresen, 1975, p. 159). Este deixar para trás a inação e o ser capaz de optar pela procura do “porto sempre por achar”, como diz Pessoa, é também a marca distintiva daqueles que “Atrás deixando conluios e conversas / Intrigas surdas de bordéis e paços”, na verdade “Navegavam sem o mapa que faziam”, assim desafiando “Os homens sábios [que] tinham concluído / Que só podia haver o já sabido” (Andresen, 1975, p. 260).
Aprendido nos antigos, mas também na vida enegrecida pela ditadura, emerge em Sophia um peculiar estoicismo que tem como fito a justiça e que a leva a dizer, em 1962:
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza.
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil
Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça.
(Andresen, 1962)
E esta é uma grande e bela lição que Sophia para sempre nos legou.