Inquérito sobre a inteireza do Ser na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen
29 Outubro 2019
Escrito por CARLOS CEIA
Estamos perante a recuperação de uma antiga controvérsia filosófica que podemos testemunhar desde os primeiros filósofos gregos: retornar ou mudar versus ser ou permanecer (…). No entanto, será quase impossível atribuir a Sophia um caminho lógico, coerente em toda a sua obra (…).
À memória de Alexandre Pinheiro Torres
JR Korpa, “Sin City”
Penso poder demonstrar o perigo que um autor corre quando se precipita em artes poéticas ou estéticas construídas sem estudo prévio, como no caso de Sophia de Mello Breyner Andresen, cuja poesia encerra aporias suficientes para pôr em questão a pureza que geralmente lhe é atribuída sem nenhuma demonstração crítica.1 A verdade é que se dispensava qualquer das artes poéticas que o Poeta escreveu sem convicção.
Em quase todas as grandes entrevistas dadas, Sophia esforçou-se, justiça lhe seja feita, por declarar que esse tipo de exercício não representaria o lado maior da sua escrita, porque todos esses pequenos textos foram produzidos com algum esforço e sem nenhum estudo ou investigação. Acredito que um exercício de hermenêutica dialéctica nos poderá ajudar a descobrir na obra poética de Sophia algo muito diferente daquilo que o próprio Autor diz de si e para si próprio:A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. […] Pede-me que viva atenta como uma antena […].2
Curiosamente, este texto que rejeita a ciência, a estética e a teoria, apresenta-se como “Arte Poética”, isto é, como estética e como teoria. Quer dizer, na perspectiva de Sophia, se se repudiar a teoria, conquista-se a “inteireza do ser”. Resta saber se a obra poética de Sophia confirma esta “inteireza”, ou seja, resta saber se o texto confirma a intenção original do autor. Não vamos procurar essa intenção, porque ela já está dada neste excerto da “Arte Poética II”. Para um crítico intencionalista, a leitura da obra poética de Sophia acabava logo ali com aquela declaração, pois tudo aquilo que viesse a dizer teria que ser unicamente uma confirmação das palavras do Autor e muitos leitores de Sophia têm ido por aí, incluindo uma pobre didáctica da sua poesia que se tem publicado sem outra intenção que não seja a de sistematizar facilmente o que exige estudo mais demorado. O que nos interessa é, por um lado bem diferente, investigar a legitimidade teórica dessa intenção. Segundo as lições platónica e aristotélica, as actividades de ordem prática têm um valor inferior em relação às actividades puramente teoréticas. A teoria literária pode ser uma dessas actividades superiores se se apresentar não só como dialéctica mas também portadora de virtudes dianoéticas, isto é, capaz de se concentrar no exercício de uma actividade essencialmente cognoscitiva que opera segundo as duas virtudes aristotélicas da prudência e da sabedoria: a primeira para julgar rectamente a qualidade de uma obra de arte; a segunda, virtude dianoética suprema, para contemplar a verdade que a obra pretende insinuar. Como Sophia se serve de uma teoria para rejeitar qualquer teoria, servir-nos-emos também de uma teoria para descobrirmos a saída do beco sem saída dessa crença niilista na teoria.
A crítica de Sophia é unânime na sua apreciação como um dos melhores autores da literatura portuguesa contemporânea, acima de tudo pelo seu elevado esmero de linguagem e por nela estar representada a verdadeira essência da poesia: a parousia, a absoluta presença do Ser3 Heidegger diz o mesmo em relação a Hölderlin, “o poeta dos poetas”, porque nele viu representada a mesma essência (Wesen) da poesia. Podemos validar esta comparação? A definição do Ser que emerge de Sophia surge-nos apenas por uma única via: a do texto poético. Toda a teoria de Sophia sobre o Ser resume-se àquele testemunho inicial em “Arte Poética II”, que é, na verdade, uma contra-teoria da textualidade para garantir a “inteireza” do Ser, se tal fizer sentido.4
Há três formas hipotéticas de reconhecer a poesia alegadamente ontológica de Sophia: a dança do Ser, a imanência (ou a noção heideggeriana de Ser-no-mundo) e a questão da face original. A dança do ser é necessariamente a dança do Ser, porque, ensina-nos Heidegger, não há ser sem Ser. Aqueles cujo Ser (“daqueles cujo ser”, no poema “O Minotauro” (Dual, p. 629) onde “ser” se deve ler ontologicamente como Ser) “Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne” (p. 629) são aqueles cujo ser questiona o Ser, questionando em primeiro lugar a sua própria existência (Sein). É por aqui que nos aproximamos do que Heidegger chama Dasein (“Ser-aí”) ‒ um ser questionando o Ser. O homem é homem porque é Ser-aí. O Dasein é o elemento humanizável da dança do Ser de Sophia. O procurador (aquele que procura/aquele que tem procuração para) do Ser não pode demandar nenhum caminho de investigação sem ter o poder e a energia para entrar em tal dança. Existem várias formas de energia no caminho mítico que Sophia percorre passo a passo até chegar ao Centro, em Delfos. A dança é uma das formas privilegiadas, por ser um dos modos de actuação ligados ao mundo socializado. Dasein é em si mesmo uma consciência socializante que existe na condição de ser-com (em regra, dançamos com outros, um tipo de regência mais do que verbal comprovada na dança com Dioniso, o Outro privilegiado, mas tão imaginativo como a possibilidade de o encontrar à venda no mercado negro). O mundo onde a dança ontológica tem lugar exige a existência de outros e tal é condição necessária para a concretização do Dasein como Ser-aí total. A “dança do Ser” é a dança do ser com o Ser, com todas as possibilidades de encontrarmos a nossa via mais íntima. Contudo, haverá, nesse caminho interior supremo, uma possibilidade de não-concretitude: dançar com Dioniso significa negar-lhe a exclusividade de podermos ser apenas nós próprios, ou seja, através da dança do Ser, não nos tornamos nós próprios, não existimos segundo as nossas próprias regras, mas sempre em referência aos outros que nos completam. O lado dionisíaco da dança impede qualquer individualismo de triunfar. Heidegger diz exemplarmente que o eu se aliena de si próprio e torna-se um Homem (das Man, intraduzível, mas significando ao mesmo tempo o Uno e os Outros). Sophia dança com Dioniso num movimento semelhante de auto-alienação, de afastamento necessário do mundo se quisermos encontrar a profundidade do nosso mar interior (neste caso, a dança do Ser tem como fim último o Homem; em todas as partidas e chegadas, em todas as procuras e em todas coisas perdidas, em todas as coisas separadas e em todas as coisas unidas, há essa fusão essencial entre a unidade e a alteridade).
A palavra grega para ser, on, como substantivo verbal, retém essa original ambiguidade que ao mesmo tempo remete para o ser e para o Ser. O poema “A pura face” ou o poema “Lagos II” ilustram esta ambiguidade:
Como encontrar-te depois de ter perdido
Uma por uma as tardes que encontrei
Ó ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?
(“A pura face”, Livro Sexto, p. 463)
Lagos lição de lucidez e liso
Onde estar vivo se torna mais completo
– Como pode meu ser ser distraído
De sua luz de prumo e de projecto?
(“Lagos II”, O Nome das Coisas, p. 683)
A dança do Ser é então a dança do significado com ser. Para recuperar a ambiguidade da palavra grega (preservada nas línguas ocidentais, onde se inclui o Português ser), Heidegger estabelece a diferença ontológica, uma distinção fundamental entre Ser e coisa. Na poesia de Sophia, podemos ler Ser como um processo, uma espécie de vir-a-Ser, o que se pode deduzir nos nossos actos, algo visível na expressão muita citada pelos leitores de Sophia: o “estar-ser-inteiro inicial das coisas” (“Os Gregos”, Dual), que em breve discutiremos. Ser é a energia que retiramos dos fenómenos, um movimento em direcção ao derradeiro Ser que não se pode realizar no espaço ou no tempo. Sophia tenta compreender e absorver a plenitude do real (o “estar-ser-inteiro”) através da sua imaginação poética, porque quando usa terminologia física e filosófica como “espaço” e “tempo” julga poder convencer-nos de que o discernimento do filósofo ou do físico nunca pode percorrer esse caminho de liberdade que nos permite sentir o Ser (Fernando Pessoa diria que só o Poeta “deveras sente”, o que se ajusta a esta posição):
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
(“Liberdade”, Mar Novo, p. 372)
A poesia, como uma protuberância de sentir, torna-se o meio de unir o Ser à vida física que nos conduz à “lúcida unidade”.
Na dança ontológica, a música desempenha o papel criativo:
A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia
Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra
A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada
(…)
(“Bach Segóvia guitarra”, Geografia, p. 516)
A música é a harmonia que nasce do caos para fornecer ao Ser o conhecimento para a Via do Ser. Estes versos estão muito próximos do tipo de criação provocada pelas deusas pré-helenísticas através da harpa (“harpas de areia”, que não podem ser tocadas pelo arquétipo Harpista, símbolo dos desejos de morte). A música do Ser é a celebração da auto-descoberta quando o sujeito individual descobre o seu próprio caminho de acesso à harmonia universal (“Cria seu próprio tempo / Que me dá morada”). Por outro lado, devemos notar que a metáfora do Ser, pela sua própria natureza, recoloca o Poeta no mundo físico e torna-se cada vez menos eficaz quanto maior for a sua dependência de exercícios de consciência evolutiva. A imagem poética como forma de representação artística só pode re-presentar o que já é sabido. Se o Ser emergir da sua casa (“A música do ser / (…) / Que me dá morada”), na natureza e na linguagem, Sophia precisará de uma forma pessoal para tal declaração, sem recorrer a limites terrestres. O poema “Ali então” (Geografia, p. 543) introduz este estado de graça inicial que a música do Ser sugere para nos transportar ao momento original da criação:
Ali então em pleno mundo antigo
(…)
A sombra da videira há-de poisar
Em nossas mãos e havemos de habitar
O silêncio das luas e do trigo
No instante ameaçado e prometido
E os poemas serão o próprio ar
– Canto do ser inteiro e reunido –
Tudo será tão próximo do mar
Como o primeiro dia conhecido
O “canto do ser inteiro e reunido” funciona bem como a melhor imagem definidora de toda a poesia de Sophia, apesar das suas fragilidades de rigor ontológico. O seu desejo (legítimo) de ir mais longe na construção de metáforas convencionais, de representações naturais ou de ilustrações da linguagem não é totalmente conseguido na tentativa de elaboração de um mistério do Ser.
O Caminho de Delphos começou num bosque – o cenário ancestral dos ritos de fertilização, onde ocorrem casamentos e nascimentos exemplares, de uma ordem que quase sempre supera o poder humano na Terra e que, por isso mesmo, se ajusta à dança do Ser:
Desde a sombra do bosque
Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite
E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla
(…)
Caminhei para Delphos
(“Delphica”, IV, Dual, p. 592)
Sophia introduz um novo conceito dentro da dança do Ser: a “consciência múltipla”, que, a rigor, se tem de opor ao “canto do ser inteiro e reunido”, o que contradiz a tentativa que faz de orientar toda a sua poesia para um desígnio maior de unidade. No estudo que fiz sobre o apolíneo e o dionisíaco na poesia de Sophia5, já demonstrei como os binómios conceptuais não funcionam bem na sua obra. O conceito de “consciência múltipla” é mais desconcertante, nunca verdadeiramente explicado, parecendo surgir de uma intuição simples.6 Primeiro, nega o princípio da unidade mítica que devia iluminar todo o Caminho de Delfos; segundo, o ponto de partida nunca é o sujeito consciente: na “dança da consciência múltipla”, o sujeito aceita-a, porque não lhe pertencia antes; na apologia de Dioniso onde aparece pela primeira vez (“Evohé Bakkhos”, Poesia I, na versão original antes da versão revista e compactada publicada na Obra Poética, 2015),7 refere-se ao exemplo do deus:
Evohé Bakkhos os teus fiéis conhecem
Os teus dois sinais sagrados
A folha de vide e a pinha
Que dizem os grandes delírios
Em que o sol faz vergar e agonizar
O pinhal e a vinha
Evohé deus que deste
O vinho
E neles os homens encontraram
O sabor do sol e da resina
E uma consciência múltipla e divina
Em termos de lógica de pensamento, como podemos desejar, numa só instância, sermos unos e possuirmos uma “consciência múltipla”? Como se pode epilogar numa consciência dionisíaca (divina, transcendental) e ao mesmo tempo tornar-se uno com o deus? É possível ser ao mesmo tempo uno e múltiplo? Um poeta pode jogar com essa dupla personalidade, como o faz Fernando Pessoa melhor do que ninguém na poesia portuguesa, mas assume isso, constrói todas as personalidades poéticas necessárias para poder mudar de máscara ao sabor da sua criatividade e sensibilidade. O que não pode, por respeito à coerência de pensamento, é, numa mesma obra, assumir que é e que não é ao mesmo tempo, que é vários umas vezes e uno outras vezes, sem conseguirmos compreender a mudança, mesmo que fugidia, sem que exista uma estratégia artística que defenda a mudança. Uma “consciência múltipla” não implica uma multiplicação de personalidade fabricada para fins artísticos, como nos casos bem conhecidos de heteronímias. Também não fará sentido falar aqui de qualquer patologia do eu dissociado.8
Na dança da “consciência múltipla”, numa última tentativa para compreender as possibilidades significativas do conceito, não falamos de um sujeito que tende a transformar-se (ou a fingir transformar-se) em outro(s) sujeito(s); falaremos antes de uma ideia básica da natureza humana: para cada corpo, para cada indivíduo, existe apenas uma pessoalização possível que isolamos de todos os outros factos da natureza. A ideia possível é a de hiperbolizar (ou phantasiar9) o facto de que cada um de nós, apesar da passagem do tempo e das mudanças de disposição mental, não devemos permanecer a mesma pessoa alienada da magnificência dos fenómenos naturais, sujeita a (e sujeito de) uma única e indiferenciada biografia. Se o Poeta não começa por definir este arrebatamento da sua própria individualidade é porque está a salvaguardar a consciência de que não pode fugir à realidade. A dança da “consciência múltipla” pode executar-se de forma (espi)ritual e funcionar como uma utopia existencial, porque é sobretudo uma dança das possibilidades de Ser, muito mais do que uma sugestão de dissociação de personalidade sob a inspiração divina da loucura dionisíaca. De resto, as premissas de Sophia para fundar tal teoria são limitadas e exigem que nos concentramos apenas na dança do Ser.
Dasein significa, numa tradução possível para Português, ser/estar-aí10, e “aí” significa o mundo, o mundo real que habitamos diariamente. A demanda do Dasein na dança do Ser é a observação (crítica) do mundo, algo que está muito próximo da demanda do real que Sophia diz perseguir desde o início da sua poesia. Nos seus próprios termos, muito longe destas especulações filosóficas, Sophia verseja sobre a questão essencial de Heidegger – Seinfrage, “O que é o Ser?” – não no pressuposto de que o Ser fosse apenas a relação fundamental entre fenómeno e númeno mas, como o filósofo alemão defende logo no prefácio de Ser e Tempo (Sein und Zeit, 1927), na convicção do que seja o verdadeiro significado de Ser (Sinn von Sein). Não se trata de estarmos focados na definição do termo Ser, como se fosse um problema resolúvel através da linguagem; não estamos também focados na melhor enunciação do conceito, porque não é um problema de lógica. Uma resposta provisória à Seinfrage é dada na dança do Ser: quanto mais consciente estivermos da condição de ser – idêntico patamar onde situamos o Outro (Dioniso)11 – mais nos enterramos, isto é, mais imergimos na essência do mundo terreno. O maior medo do Poeta descobre-se quando pensa que nunca mais encontrará o seu suplemento espiritual e se torna um Ser “disperso” no mundo para sempre:
Que o Teu gládio me fira mortalmente.
Eu sou de alma dispersa e vagabunda,
Tudo me destrói e cada ser me inunda
E posso assim rolar eternamente.
(“Que o teu gládio”, Poesia I, p. 119)
O Ser “disperso” (“Eu sou de alma dispersa e vagabunda / Tudo me destrói…”) opõe-se, no quadro da poesia de Sophia, ao princípio maior do “estar-ser-inteiro inicial das coisas”. É uma oposição difícil de explicar, porque nada mais será dito sobre estes pensamentos contraditórios. Sophia criou uma regra de vida para si própria e a respectiva anti-regra, e vai viajando entre ambas sem que tenhamos a possibilidade lógica e poética de perceber as razões dessa oscilação.
O desejo de dançar pertence ao domínio da autoconsciência do Ser e implica a autocompreensão do que somos no mundo. Este é o segundo caminho possível de indagação da poesia tendencialmente ontológica de Sophia. A palavra mais importante para acedermos à intelecção destas circunstâncias é imanência. Heidegger reelaborou o conceito numa justaposição bem conhecida: In-der-Welt-sein (ser-no-mundo), sinónimo geral da existência do Dasein. Este é caminho primordial da Via do Ser em Sophia, representado no “canto do ser inteiro e reunido”, pilar da maior parte da sua poesia de inspiração mediterrânica. Literalmente, a imanência surge num texto paradigmático: o poema imanente, onde se define a essencialidade do Ser. É constituído por tudo o que se incorpora nesse Ser como vocação revelada:
Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir. (“Arte Poética IV”, p. 895)
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização. («Arte Poética V”, p. 898)
Estes dois textos programáticos sobre o nascimento da poesia explicam a mesma coisa: não há um “poema imanente”, tal só pode existir como um sonho diurno, um estado da consciência, um processo de auto-apaziguamento que prepara o escritor para o acto da escrita.12 Desde que o “poema imanente” esteja presente como algo absoluto, desde que repudie ideias e paixões, que podiam danificar os efeitos poéticos pretendidos, desde que difira do intelecto e do juízo moral e desde que se apresente como o grau mais provável de concretitude e objectividade, é possível aproximar esse poema singular do que entendemos na tradição lírica ocidental como poesia pura – exceptuando o contexto conceptual tratado primeiro por Edgar Allan Poe e depois pelos simbolistas franceses; exceptuando também a discussão entre António Sérgio e João Gaspar Simões, durante a década de 1930, sobre o tema. Podemos validar, sim, o objectivo de obtenção de total concretitude. E também podemos aproximar-nos do imagismo, até certo ponto uma instância suplementar da poesia pura, salvaguardando o facto de que o imagismo não utiliza o termo e tem objectivos diferentes no contexto do simbolismo, porque concentra a essência da poesia numa única característica, a imagem concreta, tal como o faz Sophia.
Ontologicamente, a imanência é a profundeza do Ser. A metafísica do Ser é a metafísica de nós somos como oposta a eu penso, o que significa que a imanência só pode ser desenvolvida a partir de uma premissa intersubjectiva, como neste breve poema:
Chamei por mim quando cantava o mar
Chamei por mim quando corriam as fontes
Chamei por mim quando os heróis morriam
E cada ser me deu sinal de mim.
(“Chamei por mim”, Coral, p. 232)
Ou, para além de cada Ser, ser tudo:
As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?
(“As imagens transbordam”, Dia do Mar, p. 173)
Os seres são imanentes uns aos outros porque se infiltram na intimidade da sua união. Quando dois seres cessam tal união e se tornam seres-isolados-no-mundo, não mais podem ser imanentes por se terem esgotado as relações intersubjectivas. Tornam-se nada. A questão do nada é relevante na poesia de Sophia13; está relacionada com a noção de não-ser ou da possibilidade de anulação de ser: “… perdi o meu ser em tantos seres” (“Sinto os mortos”, Poesia I, p. 111). Estamos perante a anulação de um dos princípios fundamentais que Sophia fixou para a sua própria poesia: a aliança com os outros e com a outridade revelada no mundo, que inclui esses “tantos seres” responsáveis pela morte subjectiva: “Tantas vezes morri a minha vida” e que nem têm consciência dos seus actos: “Tantas vezes não soube dos meus actos” (idem). Esta contradição do princípio de “estar-ser-inteiro inicial das coisas” não é esporádica na poesia de Sophia. Para emaranhar ainda mais essa contradição, há confissões como esta: “eu pertenço a uma geração que de certa forma não aceita essa… teologia do nada e há uma tentativa de um certo regresso à inteireza.”14 Apesar desta rejeição do nada (teológico e metafísico), há traços fortes na poesia de Sophia que apontam nessa direcção, como demonstro no ensaio sobre o tema a que me referi atrás.15
Sophia aplica o princípio da imanência ao mundo inteiro das coisas que o formam. Esta é uma posição fundamental na sua poesia, o que significa que o Ser é parte do universo das coisas existentes, é a sua confirmação de existência, de acordo com esta lei primordial: nada poderá viver dividido; tudo possui todas as coisas em si mesmas, porque o imanentismo nega qualquer possibilidade de transcendência em relação ao real. Esse princípio é sinónimo da aliança intrínseca com todas as coisas. O mundo é-nos dado a compreender em forma de coisas. Este é um conhecido ensinamento de Heidegger que vemos confirmado na frase-chave de Sophia: “vamos de coisa em coisa” ou “Ela [a ânfora] é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas.” que encontramos em “Arte Poética I” (Geografia, p. 890). E que coisas em concreto encontramos no mundo de Sophia? Não quaisquer coisas, mas aquelas que constituem o Ser-no-mundo. Os Gregos antigos chamavam-lhe pragmata, “that is to say, that which one has to do with in one’s concernful dealings”.16 A diferença entre “qualquer coisa” e Zeug é fundamental na filosofia de Heidegger e podemos transferi-la para a poesia de Sophia: Zeug não tem tradução directa absoluta, pode ser coisa, utensílio, instrumento – algo que funciona como equipamento, o que se pode retraduzir poeticamente em termos mais simples como na sua “Arte Poética III” (p. 893) (os itálicos são meus):
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. […] Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno.
No estudo sobre as fracturas do tempo délfico,17 identifiquei “todo o fenómeno” como o fenómeno total, resultado do mundo-de-todo-o-fenómeno que ilustra o edifício poético de Sophia.18 Neste contexto, o termo fenómeno contém a sua própria raiz significante como “aparição” ou surgimento das coisas. A poesia de Sophia – e até mesmo toda a poesia – só pode iniciar-se no conhecimento que temos das coisas. Contudo, já como Heráclito advertia, porque a natureza adora esconder-se, esse conhecimento das coisas depende de elas nos surgirem ou não. Segundo Heidegger, há uma presençaaoalcancedamão (Zuhandenheit) que se distingue da prontidãoaoalcancedamão (Vorhandenheit) e há ainda um terceiro tipo de ente (Dasein), que é uma forma de consciência diferente dos dois primeiros. Estes três pilares existenciais ajudar-nos-ão a compreender o conceito ontológico de tempo. A natureza é vorhanden para o físico e as pedras são também vorhanden para o geólogo, mas um artista, um escultor, por exemplo, contemplará a natureza e as pedras da mesma forma. A relação do escultor com a natureza (com as pedras), isto é, a relação estabelecida com o seu Dasein, é a das coisas presentes-aoalcancedamão (Zuhandenheit). Assim, todoofenómeno não pode ser um encontro ocasional, mas tem de estabelecer um contacto directo com as coisas aoalcancedamão. O que pode ser zuhanden são as rosas do jardim, as árvores protectoras da casa, as anémonas-do-mar, a areia da praia, os peixes do mercado de Lagos, as ruínas de um velho templo grego, a ânfora do mercado, etc. – coisas que estão aoalcancedamão e que permitem ao Poeta evitar a coisificação do mundo presentificado. Quando Sophia se relaciona com as coisas com que se preocupa ou com as quais está directamente envolvida, tais coisas não são apreendidas individualmente mas dentro de um quadro maior a que Heidegger chamou Zeugganzheit (uma “totalidade instrumental”)19. Nesta ligação profunda com as coisas imediatamente visíveis, prontas para a fruição livre, o Poeta projecta um elemento dessa totalidade (por exemplo, as rosas do jardim) num contexto maior simbólico (o jardim). Em suma, o que está ao-alcance-da-mão revela-se ao Dasein de tal forma positiva que aquilo que determina a nossa existência pelo que alcançamos determinará também o que somos.
No mundo-de-todo-o-fenómeno, a imanência define-se como presença no mundo, o que o panteísmo explica como um sinal da conformidade de Deus com a natureza, onde se presentifica de forma pessoal e impessoal, quer no bem quer no mal. Mais uma vez, é a Grécia que serve de arquétipo ao princípio de imanência que Sophia tenta construir:
De novo os Persas recuarão para os confins do seu império
Afundados em distância confundidos com o vento
De novo o dia será liso sobre a orla do mar
Nada encobrirá a pura manhã da imanência
(“Grécia – 72”, O Nome das Coisas, p. 657)
E depois vira-se para nomes fundamentais da poesia portuguesa que exemplificam o que entendemos por Ser-no-mundo e ser imanente com a natureza que nos forma: Camões – “… quem ousou seu ser inteiramente” (“Camões e a tença”, Dual, p. 642); Teixeira de Pascoaes: “O ser um com a luz a flor o monte” (“Pascoaes”, Ilhas, p. 773); e João Cabral de Melo Neto: “Poeta que desoculta / A voz do poema imanente” (“Dedicatória da terceira edição do Cristo Cigano a João Cabral de Melo Neto”, Ilhas, p. 809). Estamos a perseguir o mesmo conceito antigo de imanência que conhecemos desde os Gregos da Antiguidade.20 Sophia tenta afastar o teísmo da imanência, por isso afirma:
Não darei o Teu nome à minha sede
De possuir os céus sem fim,
(…)
Pois tudo isso é só a minha vida,
(“Sinal de Ti”, Poesia I, p. 116)
Contudo, a imanência não é um termo capaz de expressar por si só a sublimidade de Deus (transcendência é o termo mais usado em todas as religiões), sendo muito mais revelador o termo ubiquidade (ausente nos poemas teístas de Sophia), porque estar em todo o lado aproxima-nos mais de uma propriedade sublime.
Eu em tudo Te vi amanhecer
Mas nenhuma presença Te cumpriu,
Só me ficou o gesto que subiu
Às mais longínquas fontes do meu ser.
(“Gesto”, Dia do Mar, p. 188)
Deus (“Te”) brota em todo o lado, mas não é apreendido por nada presente (imanente), porque Deus transcende tudo o que é presente (o que está-aí). Se Deus está em todo o lado no mundo-de-todo-o-fenómeno, e de certa forma transcende tudo, então está para além dos objectos comuns do desejo humano que estão presentes no nosso pequeno mundo das coisas à mão de ver e de sentir. Sophia evita posições irrealistas da Deidade. A nossa mera contemplação do mundo, a nossa mera presença no estado de Ser-no-mundo, não nos pode transformar em seres imanentes a esse mundo. Sophia deixa-se guiar por um princípio mais realista: é a consciência que o Ser tem de Deus (e não o inverso) que constitui a presença divina no universo. Este é o único caminho para aceder ao Ser Supremo, na sua infinita contemplação.
JR Korpa, “Under the sky” (imagem de capa)
Estamos perante a recuperação de uma antiga controvérsia filosófica que podemos testemunhar desde os primeiros filósofos gregos: retornar ou mudar versus ser ou permanecer (e tornar-se imanente, porque é em rigor o que é permanente num sujeito). No entanto, será quase impossível atribuir a Sophia um caminho lógico, coerente em toda a sua obra, facilmente relacionável com Heráclito (se quisermos defender a mudança das coisas) ou com Parménides (se quisermos defender a inalterabilidade das coisas).
O poema “Os Gregos” (Dual, p. 635), à primeira leitura o mais representativo da poesia dita “imanente” de Sophia, contém alguns ingredientes metafísicos que nos ajudarão a tentar encontrar um caminho lógico:
Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante
Consubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luz
Neles o longo friso branco das espumas o tremular da vaga
A verdura sussurrada e secreta do bosque o oiro erecto do trigo
O meandro do rio o fogo solene da montanha
E a grande abóboda do ar sonoro leve e livre
Emergiam em consciência que se vê
Sem que se perdesse o um-boda-e-festa do primeiro dia –
Esta existência desejávamos para nós próprios homens
Por isso repetíamos os gestos rituais que restabelecem
O estar-ser-inteiro inicial das coisas –
Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol conhece
E também à treva interior por que somos habitados
E dentro da qual navega indicível o brilho
O Ser, dado excepcionalmente como o “estar-ser-inteiro inicial das coisas”, isto é, como uma relação essencial entre fenómeno e númeno, espelha a “existência cintilante” dos antigos deuses. Para lidarmos com esta relação complexa, o Ser deverá ser apreendido como uma coisa é apreendida. Se nos lembramos da lição de Kant de que o Ser não é apreendido dentro das formas espaço-tempo da intuição sensível, então, por mais real que seja para que uma coisa seja apreendida, o Ser não é em si mesmo algo apreendido. “O estar-ser-inteiro inicial das coisas” não é algo por si mesmo apreendido. Podemos ver, tocar ou cheirar “o oiro erecto do trigo”, por exemplo, mas não é possível ver, tocar ou cheirar a existência do trigo. O mesmo devemos dizer da “existência cintilante” dos deuses: o que podemos destacar é a sua consubstancialidade para com a natureza, mas a sua existência não pode ser “cintilante”, ou mesmo de forma ainda mais objectável, não pode ser transformada em “consciência que se vê”. O Ser das coisas não é directamente sentido, nem pode ser. Nem a existência dos deuses pode ser vista através de manifestações naturais. Eu posso navegar no mar, mas não na existência do mar. Eu posso ouvir o murmúrio do mar, mas não a existência do mar murmurador. Não é possível ver, sentir, tocar, saborear ou ouvir a existência ou o Ser, mas apenas o existente e os seres. Podemos apenas estar atentos a “todas as formas que a luz do sul conhece”. Tanto quanto as coisas podem aparecer-nos, algo do Ser nos aparece (o mar, as nuvens, as árvores, a luz do Sol, etc.), mas não o Ser na sua completitude, que apenas nos é dado pelas coisas que envolve – neste sentido, o “estar-ser-inteiro inicial das coisas” é apenas uma aparição, algo que nos aparece como uma ilusão de ser. E foi Heráclito quem notou primeiro que às vezes o que aparece é uma dissimulação, por isso o Ser gosta de se esconder na “treva interior por que somos habitados / E dentro da qual navega indicível o brilho”.
Há uma clara força emergente na poesia de Sophia: Ser, despido de outra ambição que não seja a de procurar a sua própria e exclusiva identidade. Ser é apenas em si próprio. Ou: Ser é o que é. É a coisa em si mesma. Aproximamo-nos da ontologia fenomenológica de Jean-Paul Sartre, sistematizada em «L’Être et le Néant», que resume assim o significado do Ser: “Il est une immanence qui ne peut pas se reáliser, une affirmation qui ne peut s’affirmer, une activité qui ne peut pas agir, parce qu’il s’est empatê de soi-même.”21 Podemos validar o conceito de imanência tal como é descrito na poesia de Sophia como um sintoma existencialista (na tradição de Husserl, Heidegger ou Sartre)? Parece-me impossível de provar esta validação. Primeiro, Sophia sempre rejeitou filiações literárias ou de outra índole; por outro lado, a sua assumida crença no cristianismo revela-se em termos muito simples e directos, por isso mais próxima do cristianismo existencialista de Kierkegaard do que de uma vertente existencialista ateísta. O poema “A paz sem vencedores nem vencidos” (Dual, p. 641), ilustra esta posição:
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
(…)
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Mais uma vez na obra de Sophia não há provas sólidas de uma ideologia, filosofia ou linha lógica de pensamento capaz de sustentar coerentemente os seus versos. A obra poética de um escritor não tem, obrigatoriamente, que ser sustentada por teorias, mas quando as ideias que fazem parte da tradição do pensamento ocidental (e por vezes oriental) correm nas veias dos versos, tem o leitor a obrigação de indagar sobre a sua fundamentação, mesmo que esse não tenha sido o programa estético do escritor. O Ser está lá, tal como é, mas não é sempre o mesmo Ser, nem o mesmo modo de ser. O Ser de Sophia é frágil, inconstante e não sujeito a demonstração lógico-argumentativa: por uma vez, revela-se na aliança com as coisas; porém, não raro, muda de direcção e anula qualquer possibilidade dessa aliança se constituir com o Ser, que Sophia tende a personalizar, porque o individualizou (embora saibamos que é, por definição ontológica, trans-subjectivo):
Lagos lição de lucidez e liso
Onde estar vivo se torna mais completo
– Como pode meu ser ser distraído
De sua luz de prumo e de projecto?
(“Lagos II”, O Nome das Coisas, p. 683)
O caminho do nada é o destino final da poesia “imanente” de Sophia.
Por todo o caminho de Delfos, a poesia de Sophia procura alcançar um determinado nível de vazio existencial, que dispensa quaisquer condições para ser apreendido. O silêncio é o seu código de vida. Os pensamentos complexos também são dispensados. O caminho de Delfos faz-se caminhando passo a passo, sem obstruções materiais. É assim que sairemos do labirinto das nossas vidas. Este é um ponto sensível na poesia caminhante de Sophia: o caminho certo da libertação do nascimento-morte. Não é um caminho insondável, porque resolver esta equação vivencial equivale à resolução de um grande koan (um problema Zen), no fundo a questão mais profundamente tratada na poesia de Sophia, porque é o fim último e primeiro da vida humana. Sophia não se limita a respirar como os outros seres, não se confina ao Ser-no-mundo. As questões de investigação poética e existencial variam: Como é que as coisas tomaram vida? Para onde vamos depois da morte? O que é a minha aliança com as coisas? O que é a vida? O que é a morte? Qual é o significado da minha vida? – Sem estas questões, não podemos compreender toda a obra poética de Sophia.22 Não são questões originais e o seu tratamento acompanha a história da poesia ocidental (e não só). E se as quisermos reunir numa só, falaremos do “alto enigma familiar dos astros”:
O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem
Como se em tudo aflorasse eternidade
(“Os Dias de Verão”, Dual, p. 620)
A oferta de eternidade é o prémio para quem persegue a grande questão da vida. As seguintes palavras de Amakuki Sessan, comentando a famosa canção de Hakuin, “Song of Meditation”, ajustam-se na perfeição à demanda de Sophia:
The great thing is to solve the problem of life and death by really living and really dying. The one who really lives and really dies, life and death disappear. The life without life-and-death is the eternal life.23
E o mestre Zen recordou um velho poema: “Having decided on this as the place to which I was finally bound, / I am happy to live on and on in this body!“. Em “Carta aos amigos mortos” (Livro Sexto, p. 467), Sophia escreveu em termos místicos semelhantes:
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo.
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza.
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil
A morte real dos amigos de Sophia, pelas décadas de 1950 e 60, ajudaram-na, de certa forma, a encontrar a sua verdadeira consciência, a sua face original. Estamos, neste ponto, mais perto de uma possível ontologia da poesia.
O quadro simbólico da face de Sophia segue um padrão simples de dupla expressão: por um lado, simboliza a Divindade, nos termos em que falei da “face original”, por outro lado, simboliza um ser personificado. Há um certo equilíbrio em ambas as representações, sendo esta última uma expressão do imaginário real, fazendo ponte para o imaginário fantástico representado nas imagens divinas.
O poema que ilustra toda a simbologia da face original é “Nos últimos terraços dos espaços” (Coral, p. 267):
Nos últimos terraços dos espaços
Sobre os ventos imóveis e calados
Dorme.
Nem a Primavera derramada
Nem o terror e o caos que a terra gera
Nem a sombra vermelha dos corpos mutilados
Atravessam
As barreiras de silêncio que o separam.
Tem o rosto voltado ao infinito
Um rosto perfeito de traços imutáveis.
Nem frio, nem calor, nem ar, nem água
O alimentam.
Respiram unicamente o seu segredo
O seu segredo secreto para sempre
E duas fontes correm dos seus olhos fechados.
Este poema não tem sujeito, mas essa desubjectivação está ao serviço, estranhamente, da identificação da natureza indecidível do sujeito-sem-nome sobre o qual reflecte. Por outras palavras, o poema disserta sobre as possibilidades do Ser através do não-ser. A realidade etérea deste anti-sujeito – que dorme nos “últimos terraços dos espaços / Sobre os ventos imóveis e calados”, que tem um “rosto voltado ao infinito” e que não está afectado por nenhum dos elementos primordiais – sugere que estamos perante a apreensão de uma face original – uma face sem face, uma face sem a qual seríamos apenas seres comuns, uma face não visível nos espelhos das nossas casas, uma face a roçar a perfeição (“um rosto perfeito”), portanto, numa só palavra, Deus. António Ramos Rosa considera este poema o último exemplo da “poética da presença” de Sophia. É importante citar as palavras completas de Ramos Rosa, que não são fáceis de validar:
No poema “Nos últimos terraços” é evocada uma figura que constitui uma metáfora total da realidade no seu mistério inexplorável. É um poema de algum modo taoísta, como outros de Sophia, pois nele vibra a atracção pelo vazio e por uma indiferença divina absorta no “seu segredo secreto para sempre”. Nesse poema, como nalguns outros, Sophia atinge o limite da sua poética da presença e da plenitude, numa visão vazia que abarca o quadro das aparências reais e visiona a morte, ou a ausência essencial que habita o ser, como o enigmático repouso no seio de uma totalidade inatingível.24
O anti-sujeito do poema não pode ser identificado com “uma metáfora total da realidade”, porque é precisamente o seu oposto: o que é incorpóreo não pode habitar os “últimos terraços dos espaços”, virar a sua face para o infinito ou ser intocado pela realidade primordial (“Nem frio, nem calor, nem ar, nem água / O alimentam”). Tal anti-sujeito é anti-real, ou não-real, e não se pode tornar real se se quer “perfeito”. Esta face original é uma visão phantastica de um espelho sem imagem e assinala uma presença puramente espiritual. Este poema não pode funcionar como uma ilustração da “poética da presença” de Sophia, que, apesar das fragilidades epistemológicas em que por vezes ocorre, está sempre relacionada com o mundo corpóreo. Não é coerente reclamar que o poema é acerca do vazio e ao mesmo tempo um exemplo de “uma metáfora total da realidade no seu mistério inexplorável”. O vazio ou o nada é o que não é, o que não é materialmente presentificável, o que não é real. O tipo de vazio que aqui lemos aponta um caminho diferente e há, de facto, um certo taoísmo nos versos de Sophia, mas que exige outro tipo de explicação.
O sujeito caminhante de quase todos os poemas de Sophia anda sempre em busca de si mesmo, é um discípulo devoto da meditação interior, com os seus olhos semi-abertos, um discípulo de Zen, na posição zazen (sentado na posição lótus em meditação), à espera de poder apreender de alguma forma a face original que criou o mundo. O anti-sujeito está numa posição semelhante: “E duas fontes correm dos seus olhos fechados”. Ele/ela é um caminhante-sem-nome, porém a sua face é eterna. O discípulo em meditação profunda consegue ver o mundo antes de ter sido criado, antes de todas as formas humanas terem sido criadas. A face original do Zen surge nesse estado superior de meditação. A sua voz é o que Sophia chama: a “palavra alada impessoal” (“Arte Poética V”, p. 898) que ouviu em Epidauro. A face original é inominável, o que também define o anti-sujeito. Está com o homem, no homem que não tem nome à nascença, embora depois de nascer lhe possam associar muitos nomes. O não-ter-nome é o “segredo secreto para sempre”.
A intangibilidade da face original está anunciada nesta série de alusões:
É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro.
(“É o teu rosto ainda que eu procuro”, Mar Novo, p. 356)
Senhor…
(…)
E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto
Por muito que eu te chame e te persiga.
(“Senhor se da tua pura justiça”, Mar Novo, p. 357)
Onde os outros puseram a mentira
Ficou o testemunho do teu rosto
Puro e verdadeiro como a morte
Ficou o teu rosto que ninguém conhece
(…)
(“O teu rosto”, Mar Novo, p. 364)
Sophia vê Deus25 como o Uno-sem-face (“deus que nunca tem um rosto”), uma atitude surpreendente agnosticista, porque sabemos pelos textos bíblicos que Deus tem rosto: “E verão o seu rosto, e na testa deles estará o seu nome” (Apocalipse, 22:4); “Quanto a mim, contemplarei a tua face na justiça; satisfazer-me-ei da tua semelhança quando acordar” (Salmos, 17:15); “Faze-nos voltar, ó Deus, e faze resplandecer o teu rosto, e seremos salvos” (Salmos, 80:3)26. Os Judeus, que desenvolveram a Kabbalah Denudata, falam da Grande Face (ou face original) como Macroprosopus, isto é, o divino mostrando-se após reclusão na eternidade, numa expressão singular de exalação. Sophia não vê a face original nem apela ao rosto de Deus, porque a matéria substantiva da sua oração cristã é a invocação de um Deus enclausurado na eternidade, o que, para qualquer não devoto, é uma estranha forma de crença no divino. A partir daqui o projecto de Sophia de construção de “um mundo puro” funciona apenas como utopia individual.
É difícil compreender a divindade que não pode mostrar o seu rosto ao Poeta, mesmo quando se apresenta como Aquele-que-não-tem-rosto. O poema “Eis-me” (Livro Sexto, p. 454) introduz o tema da aleluia nascida da presença do Ser perante a ausência temporária de Deus: o Poeta está sozinho (“Ante o silêncio e o esplendor da tua face”) ante a face original (Deus). A contradição deste verso em relação ao contexto da poética da presença do Ser reside no facto de não ser possível validar o esplendor do rosto de alguém (Deus) quando se afirma em outra instância que esse rosto é inatingível a não ser como desejo utópico de percepção. O silêncio prevalece sempre nestas contradições internas nos versos de Sophia, porque é o que vemos, embora não possamos participar na sua natureza, no Jardim edénico: “E eu não habito os jardins do teu silêncio”, o que repete a impossibilidade de se ser confrontado com a expressão física de Deus. Sophia parece jogar com uma impossibilidade maior: pela sua definição teológica, Deus não pode ser representado em termos físicos. A sua face, porque é a face original, não pode ser representada em termos convencionais ao nosso comum entendimento. A referência poética à sua face só pode ser dada esteticamente, o que pode resolver todas as imperfeições desta estranha teologia.
O melhor poema para tentarmos compreender o ponto em que estamos é “A pura face” (Livro Sexto, p. 463), a que retorno de forma integral:
Como encontrar-te depois de ter perdido
Uma por uma as tardes que encontrei
Ó ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?
Não te busquei no reino prometido
Da terra nem na paixão com que eu a amei
E porque não és tempo não te dei
Meu desejo pelas horas consumido
Apenas imagino que me espera
No infinito silêncio a pura face
Pr’além de vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce
Este poema exigia um ensaio independente. Afinal, não há nada que Deus não possa ser. O Poeta não sabe se Deus pode ser “ao menos pressentido”; Deus está para além do mundo fenomenológico dos seres que o formam (“Não te busquei no reino prometido / Da terra”); Deus não é o tempo; Deus está para além da vida e da morte. Deus é sempre aquilo que não pode ser, em vez de o Poeta tentar dizer o que pode ser, excepto na crença maior de que seja “a pura face”. Esta phantastica, original e pura face pertence, no mesmo processo de criação poética, ao domínio do “poema imanente”. Por isso, não há nada que Deus não possa ser. Mesmo não o reconhecendo, Sophia abre caminho àquela diferença já explicada por Sartre: o Ser é tanto en-soi (uma coisa) como pour-soi (sendo capaz de fazer algo de si mesmo). Se Deus for concebido como imutável (“Um rosto perfeito de traços imutáveis”, como diz em “Nos últimos terraços”, Coral), então é totalmente auto-suficiente para si mesmo, tal como uma coisa (en-soi) não precisa de se tornar ela própria naquilo que já é.27 Ele-Ela (Deus) não pode ter um rosto; Ele-Ela não pode ser uma pessoa nem uma coisa, porque o en-soi já é completo em si mesmo (os adjectivos “puro” e “perfeito” ajustam-se a esta expressão). Não há então nenhuma possibilidade para Deus, porque deriva no infinito, porque não está em nenhum lado. Mas se lhe atribuímos uma essência – Deus é essencialmente silêncio, quer seja reconhecida quer não seja, tornamo-lo infinito, consequentemente, o Ser é engolido por essa infinitude anulando a possibilidade de ser criador do que quer que seja, incluindo ele próprio. Essa forma de Deus silencioso e infinito não é compatível com o Ser-no-mundo.
O caminhante que procura a Via do Ser é também o transeunte que percorre as ruas de uma cidade sufocante ou simplesmente as ruas do mundo. A (re)presentação do Ser como um ser personalizado, em oposição à face original, tem uma explicação imediata: pode ser 1) a face de um ser humano; 2) a face do profano; 3) a face do sagrado; ou 4) a face do Poeta. Há inúmeras alusões aos indivíduos na poesia de Sophia: o anónimo em “O teu rosto” (Mar Novo, p. 364): “… teu rosto / Puro e verdadeiro como a morte”; na “Meditação do duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal” (Mar Novo, p. 374): “Nunca mais / A tua face será pura limpa e viva”; em “O soldado morto” (Mar Novo, p. 378): “E a luz, as horas, as colinas / São como pranto em torno do seu rosto”, de quem é um “Semi-Rimbaud” (Mar Novo, p. 396): “Seu rosto é uma caverna” e “Seu rosto voluntário e inventado / Magro de solidão verde de intensa”. Depois, há as invocações de figuras sagradas como a “Senhora da Saúde” (Ilhas, p. 770): “Seu rosto seria a cintilante claridade / De uma praia”. E as figuras profanas não ficam de fora, como a privilegiada “Eurydice” (Dual, p. 584): “O teu rosto era mais antigo do que todos os navios”. E, por fim, soma de todas interpretações das possibilidades do humano, a face do Poeta emerge, limpa de contradições, porque ligada à mais elementar das realidades do mundo onde vive o Ser: “A terra o sol o vento o mar / São minha biografia e são meu rosto” (“Poema”, Geografia, p. 575).
O trabalho poético de Sophia aponta desde o seu primeiro livro para uma filosofia imprecisa do Ser. O Ser como presença excede a compreensão do Poeta das suas próprias pedras de toque epistemológicas e ontológicas: intuição, autoconsciência, percepção direta do Outro, revelação de significado, lugar do Ser-no-mundo. O leitor comum da poesia de Sophia tende a sobrenomear aquilo que é apenas nomeado, não discutindo como é que é feita a nomeação. Se o Poeta reclama uma “inteireza do ser” para a sua poesia, tal integridade não é questionada mas apenas confirmada pela citação dos versos certos; se o poeta nomeia Apolo e Dioniso, basta-lhe encontrar algumas referências históricas a ambos e contextualizar as citações; se o poeta evoca as Ménades, basta-lhe trazer para a leitura crítica alguma matéria erudita que conte a mesma história, mas quase sempre esquecendo o próprio texto nomeador, que se ocupa de um sublime totalmente fora do menadismo, que se ocupa de um dança que nada tem a ver com as Bacantes, que possui apenas o sentido da nomeação que nada tem a ver com a lógica extática da religião grega. É aqui que Sophia efectivamente vai buscar as raízes da sua “inteireza” do Ser, não em termos textual e conceptualmente perfeitos, mas com insistência suficiente na sua longa vida literária que autoriza a sua celebração poética.
NOTA: O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
NOTAS
A insistência crítica na “pureza”, na “limpidez” ou na “essencialidade” da poesia de Sophia lê-se na sua recepção crítica desde os primeiros leitores e já a denunciei, de alguma forma, no primeiro estudo académico sistemático, em forma de tese de doutoramento, que há 25 anos atrás defendi na Universidade de Cardiff (1993). Sendo muito rara esta posição mais livre de deslumbramentos críticos, 25 anos depois retomo um tema dessa tese, que deixei inédito, com o mesmo sentido crítico, mas construtivo, de leitura de um dos grandes temas de sempre lidos na obra poética de Sophia, porém, sem nenhuma análise para além da superfície fina dos seus versos.
Andresen, S. M. B. (2015). “Arte Poética II”, in Obra Poética. Lisboa / Porto: Assírio & Alvim / Porto Editora, p. 893. Doravante, todas as citações da obra de Sophia remetem para esta edição completa da sua obra poética em um único volume, indicando-se o livro original a que pertencem os poemas e a página desta edição.
Um exemplo de discurso crítico impressionista habitual no universo de leitores de Sophia de todos os tempos: “O esplendor do mundo na poesia de Sophia Andresen – A recorrência e o valor simbólico da luz e da cor”, de Amélia Maria Correia, que escreve: “Veja-se como a luz sempre surge associada a estes espaços que o eu poético sugere imbuídos de magia, de um quase secretismo que nos impele a partilhar de um mesmo anseio, de uma mesma fé de um dia se atingir a plenitude e a inteireza do Ser. Na água das fontes o eu poético procura a inteireza do Ser e a sua realização plena num universo de serenidade oposto ‘à agitação do mundo do irreal’” (Limite, n.º 5, 2011, p. 226).
Deve ser notado que o Ser não é uma essência ou um conceito, nem pode ser legitimamente reduzido a qualquer unidade. Além disto, o Ser não tem sequer qualquer essência. Se tivesse, seria possível definir o Ser e trabalhar com ele através de conceitos e raciocínios lógicos, ou seja, seria possível a Sophia teorizar sobre o Ser através da linguagem objectiva que pretende para a sua arte poética. Deve-se também notar a leitura errónea que Sophia faz do Ser: quando fala da “inteireza do ser” devia falar da inteireza do Ser. A confusão é clássica e Heidegger já se encarregou, em «Ser e Tempo, O Que é a Metafísica?» e «Introdução à Metafísica», de a comentar largamente. Se o Ser é a garantia ontológica de tudo quanto existe; se Sophia reclama para a sua arte tal condição; se a condição humana do Ser (Dasein, na terminologia heideggeriana) é subsidiária do Ser, Sophia devia reescrever os termos em que anunciou a sua demanda da “inteireza do ser”, que, escrito e dito assim, tanto pode ser consequência de uma leitura errónea de Ser como uma restrição da “inteireza” ao ser individual de Sophia, o que é algo substancialmente diferente e profundamente contraditório de uma poesia que não se quer individualista.
V. Ceia, C. (2003). “Apolo que floresce e Dioniso que passa”, in O Estranho Caminho de Delfos: Uma Leitura da Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa: Vega. Edição ne varietur (2018), col. “Obras Completas de Carlos Ceia”, vol. 10. CreateSpace Independent Publishing Platform, ISBN-13: 978-1983578878; ISBN-10: 1983578878.
Numa entrevista a Armanda Passos, Sophia refere-se a esta oposição por uma vez nos seus testemunhos públicos: “A dança é um elemento dionisíaco ligado à despersonalização. No poema sobre Bakkhos também se fala de uma consciência múltipla…” (Jornal de Letras, 16/03/1982). Ora, o deus da despersonalização não pode executar a “dança da consciência múltipla”, porque simplesmente ele, Dioniso, é o anulador maior do ego e do seu desejo de multiplicação, por isso não pode nunca representar-se numa circunstância de multiplicidade.
Este poema, “Evohé Bakkhos”, foi revisto e aumentado na edição publicada pelo Círculo de Leitores (vol.1, 1992), ainda em vida de Sophia, de onde citamos neste passo. Na versão definitiva, «Obra Poética» (2015, p. 69), aparece reduzido a estes versos: “Evohé deus que nos deste/ A vida e o vinho/ E neles os homens encontraram/ O sabor do sol e da resina/ E uma consciência múltipla e divina.”
Recorde-se o que Freud entendeu por dissociação da consciência (tradução não consensual na comunidade da especialidade para o termo Spaltung, que em Inglês se tem traduzido por splitting): “The cases described as splitting of consciousness, like Dr Azam’s, might better be denoted as shifting of consciousness, – that function – or whatever it be – oscilating between two different psychical complexes which become conscious and unconscious in alternation.” (Freud. S. (1991). “A Note in the Unconscious”, in On Metapsychology. Eastbourne: Gardners Books, col. The Penguin Freud Library, vol. 11, pp. 54-5). Se traduzirmos Spaltung por “oscilação”, a dança da “consciência múltipla” de Sophia tem de nos remeter para a oscilação entre o nível da consciência e o nível da inconsciência; não podia, no entanto, desviar-se da esfera psicopatológica. Parece-me pouco provável que Sophia concordasse, poeticamente, que a dança da “consciência múltipla” pudesse ser um sintoma de dupla personalidade ou de perturbação de identidade dissociativa (PID) ou qualquer forma de dissociação da consciência. Para além destas (im)possibilidades do foro da psicanálise, o significado de uma “consciência múltipla” terá de ser inquirido em outros termos.
A explicação para o uso da grafia phantasiar e seus derivados está dada desde o meu estudo: “A scientia sexualis de Cesário Verde” (1995), Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.º 8. O que aí escrevi, mantém-se válido: o termo vulgarmente registado como “fantasia” devia reter a antiga forma phantasia, que adopto invariavelmente. A origem grega (phantasía) mantém-se em alemão (Phantasie), sendo esta a forma que os primeiros grandes teóricos do inconsciente, Freud e Jung, sempre utilizaram. O alemão Phantasie reporta-se a “imaginação”, “aparição”, “imagem mental” e é este, em qualquer caso, o sentido em que se deve tomar e que eu adopto em todos os meus escritos.
As traduções que conheço para Português são: Ser-aí, Ser-aí-no-mundo, Ser-no-mundo, Existência, pre-sença. Facilmente, podemos encontrar estas variantes em toda a literatura que usa o termo de Heidegger. Uma síntese em português que inclui outras variantes pode ser: “Os modos de ser do Dasein a partir da analítica existencial heideggeriana”, de Luciano da Silva Roberto, disponível em: http://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=489, consultado em Janeiro de 2019.
A perseverança de Sophia é sempre em relação ao Outro, apareça este como outro ser humano, como o seu próprio eu ideal, ou como o Deus pessoal que muitas vezes permanece em silêncio, um silêncio ao qual o Poeta dedica alguns dos seus melhores versos.
António Guerreiro considera, correctamente, que “não há um poema imanente, o que há é efeitos de imanência (que se traduzem, por exemplo, numa voz neutra e impessoalizada)” (“A sagração da poesia”, Expresso, 15-07-1989).
Ver o meu estudo “On Nothingness in Sophia de Mello Breyner Andresen’s Poetry” (2006), Revista Camoniana, Série Web, Vol. I, Universidade de São Paulo. [Descontinuada na web, originalmente inédito na minha tese de doutoramento: The Way of Delphi (1993), Cardiff].
Entrevista a Maria Armanda Passos, op. cit.
V. nota 18.
Heidegger, M. (1990). Being and Time. Oxford: Basil Blackwell, p. 96.
Ceia, C. (2003). “As Fracturas do Tempo Délfico”, in O Estranho Caminho de Delfos: Uma Leitura da Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa: Vega. Edição ne varietur (2018), col. “Obras Completas de Carlos Ceia”, vol. 10. CreateSpace Independent Publishing Platform, ISBN-13: 978-1983578878; ISBN-10: 1983578878.
David Wood, lendo o texto de Heidegger “Opening onto the world”, destaca o sentido verdadeiro do termo mundo, que me parece ser aproximável do possível conceito de mundo-de-todo-o-fenómeno: “The ‘world’ ‒ and what is always at issue here is the world in its primary everyday sense ‒ is the world of our significant involvement, a world structured by such relations as ‘towards-which’, ‘for the sake of which’, ‘in order to’, and so on. It is in the sense of the world that Dasein is a Being-in-the-world. And it is such an understanding of the world that proceeds via the Being of things ready to hand, that allows our understanding of Dasein, at this everyday level, to escape reduction to the mere thinghood of the presence-at-hand” (Wood, D. (1989). The Deconstruction of Time. New Jersey: Humanities Press International, p. 164).
Cf. Heidegger: “Taken strictly, there ‘is’ no such thing as an equipment. To the Being of any equipment there always belongs to a totality of equipment, in which it can be this equipment that it is. Equipment is essentially ‘something in-order-to…’. A totality of equipment is constituted by various ways of the ‘in-order-to’, such as serviceability, conduciveness, usability, manipulability.“
(Heidegger, M. (1927). Sein und Zeit / Being and Time. ed. trad. de John Macquarrie e Edward Robinson (1990). Oxford: Basil Blackwell, p. 97).
Sophia disse a Maria Armanda Passos: “A Grécia é um ponto de partida a que justamente é preciso regressar porque então o homem tentou partir da imanência, partir do seu estar na terra: estou na terra, sou mortal mas vou tentar viver a minha mortalidade com o máximo de verdade, com o máximo de transparência, o máximo de…” (Entrevista, op. cit.).
Sartre, JP (1947). L’Être et le Néant: Essai d’Ontologie Phénoménologique. Paris: Gallimard, 16.ª ed., p. 32.
O poema inédito, revelado na última página de Obra Poética (2015, p. 949), contém uma quadra que também pode resumir a demanda primeira e final de Sophia: “Se ainda busco o promontório de Sunion/ É porque nele vejo a minha face despida/ O mitológico mundo interior e exterior/ Da minha própria unidade perseguida”.
Leggett, T. P. (1971) A First Zen Reader. [s.l.]: Charles E. Tuttle; ed. later prt., p. 94.
O Grito Puro de Sophia”, Jornal de Letras, 25/06/1991.
A forma linguística de interacção com Deus que Sophia usa, “Senhor”, que encontramos registada desde os primeiros poemas, pode ser uma influência de Ruy Cinatti, como vemos na obra «Nós não somos deste mundo» (in Obra Poética, 2016, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 58), publicada em 1941, quando Sophia ainda não se tinha iniciado em livro: “Senhor!, a ti é dada a escolha,/ E que os meus sorrisos, e as minhas lágrimas,/ Indiquem os teus caminhos,/ Onde eu e eles nos encontramos,/ Encantados,/ E perdidos…”.
Cito a partir da tradução da «Bíblia Sagrada» do Padre João Ferreira de Almeida, edição revista e corrigida de 1914.
A imagem da face de Deus como perfeita e imutável (“Um rosto perfeito de traços imutáveis”) recorda-nos a filosofia medieval que percepciona Deus como um acto puro (uma “pura face”, também), imutável, que era considerado um sinal de perfeição. Só muito mais tarde, sobretudo depois de Darwin e da teoria da evolução das espécies, da sociologia à teologia, da física à filosofia, um acto puro deixou de ser considerado um sinal de perfeição. Eis o ponto possível de especulação: se viver era mudar, então se Deus não podia mudar, não podia viver – era um Deus sem vida. Assim, atribuir uma “pura face” ou um “rosto perfeito” a Deus é negar a possibilidade de viver como um supremo Ser-no-mundo.