A Grécia de Sophia de Mello Breyner Andresen: aspectos

A Grécia de Sophia de Mello Breyner Andresen: aspectos

29 Outubro 2019

Escrito por CONSTANÇA MARCONDES CÉSAR

A Grécia é metáfora, em seus poemas, da beleza imortal, da plenitude e presença do sagrado, recuperada no olhar da poetisa.

No livro da editora Caminho, «Sophia de Mello Breyner Andresen – Uma vida de poeta», organizado por Paula Mourão e Teresa Amado e editado em 2010, a sequência cronológica da publicação das obras da poetisa mostra a permanência da temática do mar e da Grécia em seus escritos. Falecida em 2004, a sua obra poética começa a ser publicada em 1944, pela própria autora, com o livro «Dia do Mar», a que se seguirão, em 1950, «Coral»; em 1954, «No tempo dividido»; em 1958, «Mar Novo»; em 1961, «O Cristo Cigano»; em 1962, «Livro Sexto»; em 1990, «Ilhas»; em 1994, «Mar»; em 1997, «O Búzio de Cós e outros poemas».

Vamos nos ater, em nosso estudo, às obras publicadas em vida da autora, sublinhando alguns aspectos de seus poemas, que mostram a relevância da temática do mar e do recurso a mitos gregos, sem pretender uma abordagem exaustiva do tema.

Em «Dia do Mar», os poemas se referem já a muitas figuras mitológicas ‒ Endimião, Dyonisos, Medéia, Eurídice, e aos deuses do panteão grego; mas também a figuras históricas mitificadas, como expressão da paisagem da Grécia, sem que a Grécia seja mencionada explicitamente. Sophia recorre, por exemplo, a variantes pouco conhecidas dos mitos e expõe a estreita ligação entre o amor, o sono, o sonho e a morte, na tradição grega. O mar, os mitos, a melancolia estão entretecidos na paisagem que a poetisa contempla.

«Coral» evoca Ifigênia e a altivez com que a princesa aceita o próprio sacrifício, transformando assim o desastre – a morte – em vitória; no poema “Penélope”, identificando-se com a personagem mítica, Sophia descreve o tecer e o destecer da tapeçaria, na qual a rainha tece o tempo, o próprio caminho. Sophia torna-se Penélope… É essa apropriação dos mitos que expõe em uma sintética, límpida poesia.

«No tempo dividido», nomeadamente no poema que dá título ao livro, a poetisa lamenta o esquecimento dos deuses, na sua época; e seu próprio caminhar errante, desmemoriado, em um tempo – aquele no qual vivia – que a afasta da vida significativa. Em outro poema do mesmo livro, “Soneto de Eurydice”, o tema – muitas vezes recorrente – de Eurydice que perde Orpheu, de quem perde a memória ou a si mesmo, leva-a a buscar seu rosto “secreto e verdadeiro”, encontrando, porém, apenas a morte e o desvanecer-se na paisagem.

Em «Mar Novo», a poetisa lamenta o tempo em que vive, “tempo/ Da selva mais obscura” […], da “noite / Densa de chacais/ Pesada de amargura”: tempo das ditaduras, da ausência de liberdade, por oposição à Grécia dos mitos, dos sonhos, da liberdade criadora.

No «Livro Sexto», nos poemas “Data” e “Pranto pelo dia de hoje”, Sophia faz a crítica dos tempos sombrios em que viveu: “Tempo de solidão e de incerteza/ Tempo de medo e tempo de traição/ Tempo de injustiça e de vileza […]/ Tempo que mata quem o denuncia /[…] Tempo de silêncio e de mordaça […]/ Tempo de ameaça”; e ainda, no “Pranto pelo dia de hoje”, escreve: “quem ousa lutar é destruído”. Nesse tempo, que lamenta, a poetisa diz ainda: “Sozinha caminhei no labirinto/ Aproximei meu rosto do silêncio e da treva/ Para buscar a luz de um dia limpo”.

E na belíssima alusão à Grécia mítica, presente em Cnossos, acena com a esperança de uma ressurreição, de um novo tempo, no poema que promete, “Ressurgiremos”: “Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta /[…] na aguda luz de Creta […] Na luz limpa de Creta/ Pois convém tornar claro o coração do homem/ E erguer a negra exatidão da cruz/ Na luz branca de Creta”.

Descrição de seu tempo, em Sophia; mas também do nosso: tempo de guerras, de opressão e de angústia, perpassando o mundo.

No livro «Ilhas», a menção à Grécia e seus mitos aparece em diversos poemas, como por exemplo no “Kouros do Egeu”, no qual menciona a deusa Niké e a juventude eternizada na pedra da estátua do Kouros; em “Olympia”, refere-se ao encontro com um jovem, que surge “ como se fosse um deus” e em Patras toma outro barco, continuando a viagem em outra direção: “sob a […] indiferença[…] dos deuses. Outro poema é dedicado “A Koré”: a jovem, filha de Demeter, esposada por Hades. O poema descreve o Partenon em Atenas, evocando o sentido sagrado do mito, solene e luminoso, inscrito na pedra que a representa. E, como característica recorrente nos versos de Sophia, os versos testemunham a luz, que a poetisa contempla, sentada em uma mesa junto ao Partenon e a jovem que ela vê e descreve: “Na mesa ao lado a Koré de nariz direito […]/ Brinda com os comerciantes tedescos que saquearam a Grécia e a Europa quase toda/ Mas que após a derrota de seus generais/ Ganharam a guerra” – diz ironicamente a poetisa. Apesar do absurdo da situação, algo permanece em Atenas, no Partenon: “[…] no vinho resinado o frescor da vinha/ Na fina suave brisa nos pálidos dias/ Algo dos deuses súbito visita/ A luz do instante”: a Grécia imortal, na qual experimenta novamente a presença do sagrado, a proximidade com os deuses.

Os temas da Grécia antiga perpassam também o livro «Mar». Em versos como os do poema “No Golfo de Corinto”, a descrição da paisagem está impregnada pela presença do sagrado: no mar, no cais, no cheiro de resina e mel, na luz vermelha do poente através da qual os deuses se unem ao sangue dos mortais; nos versos intitulados “Sunion”, é na luz, no mar, no vento que o significado do cabo se mostra; “Crepúsculo dos deuses” fala das ilhas do Mar Egeu, de Homero, do Kouros e de Athena; e lamenta, no mundo contemporâneo, a perda do sentido da vida, porque em nosso tempo, os deuses – “sol interior das coisas” – se ausentaram. “Ítaca” fala da navegação noturna que a poetisa fez, a partir de Bríndisi e da experiência de acordar diante de um mar intensamente azul – como se renascesse, após a noite escura passada no mar. “Delphica IV”, longo poema escrito em Delphos, em Maio de 1970, traz os esplêndidos versos: “Caminhei por Dephos/ Porque acreditei que o mundo era sagrado e tinha um centro”. Mas ao chegar percebe tudo destruído: o templo em ruínas, “a língua torceu-se na boca da Sibila”; os deuses estão ausentes do mundo em que vivemos hoje. No poema “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”, a poetisa dialoga com Pessoa, identificado por ela com Odysseus. Percorrendo as ilhas, o poeta percorre a si mesmo, e a poetisa imagina que ele viaja no barco em que ela está, “Atento à rápida alegria dos golfinhos/ Por entre o desdobrado azul dos arquipélagos […]/ Nas ruínas de Epheso , na avenida que desce até o mar […]/ Disse-me que tinha conhecido todos os deuses”. E a poetisa afirma ainda: “Há na manhã de Hydra uma claridade que é tua/ Há nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tua/ Há nas coisas de Hydra a nitidez que percebe aquilo que é olhado por um deus […]/ O teu destino deve ter passado neste ponto/ Onde tudo se torna impessoal e livre/ Onde tudo é divino como convém ao real”. O poema foi escrito por Sophia em Hydra em 1970. O entretecido do mito e da vivência da poetisa aparece ainda de forma exponencial no poema “Minotauro”. Nele, ela diz que “Em Creta/ Onde o Minotauro reina/ banhei-me no mar”; bebeu retsina, cuidando de antes derramar “a parte que pertence aos deuses”, beijou o chão como Ulisses, entrou no mar de olhos abertos e conheceu o abismo. Aí encontra um mar “todo azul/ Oferenda […] de primordial alegria”; visita o palácio onde se acha a pintura do Príncipe dos Lírios e dança com Dionysos a dança que surge do ser que “Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne/ E esta é a dança do ser”, diz recordado o mito de Dyonisos despedaçado. Em Creta, a poetisa atravessa o mar acordada, “Porque pertence à raça daqueles que percorrem o labirinto/ Sem jamais perderem o fio de linho da palavra”. O poema foi escrito em Outubro de 1970. A viagem pela Grécia a leva a entretecer na sua vida a vivência dos mitos e a pisar o solo da Grécia como quem entra em um santuário. A memória arcaica e o presente se fundem; a paisagem é encontro com o mito, com o sagrado e o esplendor que ainda reverbera na terra dos deuses. Outro poema, “Cíclades”, invoca uma vez mais Fernando Pessoa e a presença do poeta, porque o que constata do mundo, onde os deuses estiveram presentes, são apenas destroços e ruínas. E invoca Pessoa, como se o poeta pudesse fazer surgir a possibilidade de Sophia reencontrar Thassos e Penélope, recuperando no esplendor do mito, a presença dos deuses. Escrito pela primeira vez em 1995, o poema “O Búzio de Cós”, como o poema “Foi no mar que aprendi”, reiteradamente mostra o laço entre o sagrado arcaico e a vida plena que a poetisa busca. O búzio de Cós foi comprado no cais de Cós, de modo que a poetisa pudesse trazer consigo “o ressoar dos temporais” – porque não é o mar de Cós nem de Égina que nele ela ouve, “Mas sim o cântico da longe, vasta praia/ A Atlântica e sagrada/ Onde sempre minha minha alma foi criada”. Sophia afirma que, contemplando a praia de seu país, aprendeu “o gosto da forma bela”, como se estivesse no sucessivo “Inchar e desinchar da vaga/ A bela curva luzidia do seu dorso/ O longo espraiar das mãos de espuma”. Por causa dessa experiência, sente-se mais viva “como se estivesse na praia” de seu país.

Estes dois poemas reaparecem no livro «O Búzio de Cós e outros poemas». A eles se junta o poema “Homero” que celebra a vivência poética do mundo presente no grande poeta grego, com o qual ela aprende a simplicidade que faz ver o significado do real. Diz ela no poema: “Escrever o poema como um boi lavra o campo/ Sem que tropece no metro o pensamento/ sem que nada seja reduzido ou exilado/ sem que nada separe o homem do vivido”. Essa lição aprendida pela poetisa, e tornada filtro de leitura do real, reaparece em vários poemas nos quais celebra a vida simples: nos poemas “Alentejo”, “Beira-Mar”, “Alcácer do Sal”, e esplendidamente no “A Hera”, escrito em 1997, no qual descreve “A meticulosa beleza do real/ Onda após onda pétala a pétala/ E através do pano branco do toldo/ A sombra aérea da hera/ Tecedora incessante de grinaldas”. O apuro do olhar, aprendido com a tradição clássica, lapida a linguagem, que resplandece na paixão do dizer poético. Sophia nos traz a Grécia e, a partir dela, celebra Portugal, dos vários mares e do Atlântico.

A Grécia é metáfora, em seus poemas, da beleza imortal, da plenitude e presença do sagrado, recuperada no olhar da poetisa. “Ressurgiremos” (título de outro poema na mesma obra) nos promete Sophia: mas só se formos capazes de recuperar – no presente, na percepção da luz das coisas e dos diversos seres – o olhar que traga de volta o encantamento pela beleza. 

NOTA: A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.


Bibliografia
Andresen, S. M. B. (2003). Coral. Lisboa: Caminho.
— (2003). Dia do mar. Lisboa: Caminho.
— (2004). Ilhas. Lisboa: Caminho.
— (2004). O búzio de Cós e outros poemas. Lisboa: Caminho.
— (2005). Livro sexto. Lisboa: Caminho.
— (2005). Mar Novo. Lisboa: Caminho.
— (2005). No tempo dividido. Lisboa: Caminho.
— (2005). O Cristo cigano. Lisboa: Caminho.
— (2006). Mar.  Lisboa: Caminho.

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