Na incapacidade de selecionar um quadro de Amadeo de Souza-Cardoso que represente a sua identidade artística na totalidade das mais variadas manifestações e correntes artísticas em que se inscreveu, escolhi focar-me numa pintura que disto mesmo parece falar: «Sem título (Clown, Cavalo, Salamandra)».
Um cavalo “vestido” de salamandra protagoniza esta pintura a guache: levanta as patas posteriores, e a sua cauda não cabe completamente no espaço pictórico. A estranheza deste palhaço-cavalo-salamandra, este corte insólito da cauda, os lemos como simbólicos da receção do pintor: também Amadeo de Souza-Cardoso não cabe nunca completamente em nenhuma das correntes artísticas do início de século.
“Ao jornal O Dia referiu numa entrevista: ‘Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos agora a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstraccionista? De tudo um pouco…’, e a outro jornal acrescentará: ‘Eu nem a mim mesmo me sigo… Tudo o que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito.’” (Marques, 1974, p. 32).
Semelhante limitação do espaço da representação, que parece denunciar a vontade de A.S.C. de ir além dos limites em todos os seus possíveis sentidos, desde os figurativos aos teóricos, representando uma recusa de qualquer possível etiqueta, está também patente em outras pinturas, como «Os Galgos».
Todavia, se nas duas pinturas os elementos representados estão confinados a uma bidimensionalidade e simplificação das formas que, privadas também das sombras, não lhes impedem o movimento, a perceção da profundidade perspética é muito diferente de um quadro para o outro. De facto, se em «Os Galgos» é claro que os coelhos se encontram atrás dos cães em primeiro plano e que as montanhas e o sol ficam ao fundo, em «Sem Título (Clown, Cavalo, Salamandra)» há elementos que podem ser localizados de diferentes maneiras, como as flores e o chapéu de clown, a frente, ao lado ou debaixo do cavalo.
A presença das palavras “clown”, “cavalo” e “salamandra”, junto às quais o autor coloca a sua assinatura “ASC”, contribuem para que o espaço da representação não seja de todo um espaço real: a textura do papel deixada visível ganha importância, constituindo um espaço vazio castanho, onde a outra única mancha de cor é uma linha amarela. Esta liga entre si, da esquerda para a direita, a palmeira e o cavalo, curvando-se à frente, ou em baixo, para apanhar o chapéu de clown. À chegada, (ou no início, se quiséssemos fazer uma leitura de baixo para cima), estão as flores, da mesma cor amarela. Esta linha consegue ser, ao mesmo tempo, um plano vertical, na primeira parte retilínea, dobrando porém numa sugerida horizontalidade no seu último trato curvo.
Esta ambiguidade da perspetiva, assim como a da presença-ausência (do clown por exemplo) e da relação entre o signo e o seu significado (as palavras na imagem), são várias as categorias do que parece ser o tema da obra: o hibridismo, simbolizado pelo “cavalo-salamandra”.
Em relação ao uso de palavras em pinturas, parece-me oportuno citar Hélder Macedo, que se refere à obra de João Vieira em ocasião da exposição «Corpos de Letras», que teve lugar no Museu de Serralves em 2002:
“[…] João Vieira não pinta alegorias, pinta formas, cores e texturas. Assim, em vez de por exemplo pintar o Amor como uma narrativa protagonizada por Vénus, Marte e Cupido à maneira dos antigos […], pode em seu lugar pintar formas, cores e texturas que, quando lidas como letras, escrevem a palavra AMOR.” (Macedo, 2007, p. 245)
Não me interessando aqui defender a proximidade entre as obras destes dois autores portugueses, interessa-me a reflexão de Macedo acerca da potencialidade das palavras, no sentido de elas serem, isoladas numa imagem, uma forma extrema de simbolismo, que abre os signos representados para plúrimos significados.
O cavalo é símbolo de virilidade e instinto, confirmado pela força do movimento diagonal que o seu corpo impõe à imagem, como travando depois de uma corrida o forte ímpeto que o levou até aí.
Há depois a salamandra, que abre o diálogo com todas as significações que este animal simboliza desde a antiguidade. Plínio o Velho, no séc. I d.C., falava dos perigos da salamandra e das suas propriedades venenosas em «Naturalis Historia» e Santo Agostinho, no séc. V, em «De Civitate Dei», conta da capacidade da salamandra de sobreviver ao fogo.
O clown, por seu lado, o mais presente e o mais ausente, é uma máscara que faz rir, mas veicula também em si uma certa tristeza pela ridicularização à qual se submete. Não será por isso que muitas vezes ouvimos dizer “tenho medo de palhaços”? Todavia, A.S.C. tira o clown da imagem, deixando presente apenas o seu chapéu, talvez a querer aludir àquela carreira de caricaturista da qual já nesses anos se tinha afastado, mas de que permanece o lado humorístico em muitas das suas obras, presente na exageração de certas formas de corpos e de cabeças comicamente pequenas demais.
A própria assinatura “A.S.C.”, posta ao lado das outras palavras, obriga-nos a questionar a presença do autor na obra. Encontra-se nesta época ainda numa fase de construção, muito próxima do arabesco caligráfico, sugerindo uma caligrafia medieval, mas já tendendo para a abstração, ainda que longe da pochade/ stencil que passaria depois a ser a sua marca.
A estes símbolos junta-se o afastamento de uma representação realística, com o uso quase exclusivo de cores primárias, que deixa ao observador múltiplas possibilidades de interpretação.
Este espaço “outro”, onde um cavalo ganha as cores de uma salamandra, perto de uma palmeira de folhas azuis e verdes que podem lembrar as asas de uma ave, é o lugar onde se insere a obra de Amadeo de SouzaCardoso, livre de qualquer rótulo.
Bibliografia
AA. VV. (2006). Amadeo de Souza Cardoso: Diálogo de Vanguardas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Assírio & Alvim.
Macedo, H. (2007). “Formas de ler” in Trinta leituras. Lisboa: Editorial Presença.
Marques, P. (2008). Amadeo de Souza-Cardoso: Pintor do Modernismo. Lisboa: Parceria A. M. Pereira Livraria Editora, Lda.