GERMANO SILVA

Luís Miguel Duarte[1]

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

 

Não me senti capaz de, sozinho, fazer o seu elogio. Tive que pedir ajuda. Não precisava de historiadores, de académicos (para isso estou cá eu e em princípio sou suficiente); queria outro jornalista. Chamei um amigo comum, um infinito amigo, o Manuel António Pina, para escrever este texto comigo. E ele aceitou, aceita sempre. De modo que quando ouvir palavras bonitas e ideias com asas, ingenuamente infantis, inteligentes, são do Manel. As outras são minhas. Muitos outros me poderiam ter ajudado: o Fernando Mendes, o Nuno Teixeira Neves, o José Saraiva, o Frederico Martins Mendes (valha-me Deus, até o velho António Martins Mendes, o pai do clã, que na tarde do dia em que enterrou a companheira da sua vida, se dirigiu ao JN para fazer a agenda de modalidades como o andebol de 11 ou o hóquei em campo, que hoje nós nem sabemos que existiram, mas que ele sabia que muitos leitores do JN sabiam e esperavam pelas suas informações). Foi sobretudo nesta escola que se fez o nosso laureado de hoje; podia também ter pedido ao António Matos, ou a tantos outros que estão tão ou mais presentes neste Salão Nobre do que o Germano ou eu.

Como se faz o elogio de uma vida humana (enfim, de uma vida que, pelos meus cálculos e pelo aspecto e vitalidade do homenageado, irá mais ou menos a meio), em alguns minutos – com um número limitado de caracteres? Como se faz a história de uma vida tão cheia de histórias, tão variada, tão rica? Bem sei, a ideia é apenas chamarmos a atenção para o essencial. Mas – aqui entra o Manel Pina – o que é realmente essencial naquilo a que chamamos por assim dizer a nossa vida? A sua filha? Os muitos livros que escreveu? As crónicas que redigiu? Os passeios que conduziu? Os documentos que deixou à cidade? As reportagens sem número, e sem assinatura, que fez? Os amigos que soube cultivar? As pessoas, sem conta, que ajudou? Ou, como diria Eduardo Prado Coelho, “tudo o que não escreveu”? Sobretudo quem sou eu para saber quem é o Germano? Será uma apreciação simples de dois jornalistas a outro jornalista, de um historiador a outro historiador.

Recapitulemos os marcos mais importantes da sua vida até agora: nasceu a 13 de Outubro de 1931, em S. Martinho de Recezinhos, Penafiel. O local não tem significado de maior; foi onde estava a sua Mãe quando o deu à luz. Mas o Germano – esta também é do Manel – nasceu-se a si mesmo no Porto, onde chegou, para ficar, com menos de um ano. E continuou a nascer-se e a converter-se ao Porto até hoje; e continuará nos dias que vierem. Anos 30, anos duríssimos: a Crise nos Estados Unidos, a Guerra Civil de Espanha, depois a segunda Guerra Mundial, o salazarismo entre nós…

Em casa do Germano as dificuldades eram quase quotidianas; o pai, guarda-freio da Carris, às vezes tinha trabalho (e então tinha de sair de casa às 2 ou 3 da manhã), outras vezes não – e então só se fazia uma refeição principal. Vou citá-lo: “Eu, com seis ou sete anos, levantava-me às quatro da manhã para ir para a padaria guardar a vez, para depois a minha mãe, Maria Helena, ir buscar pão, porque eles não vendiam a crianças. Isto no verão. No Inverno, com chuva, frio…[…] Eu ia para a fila do sabão, ali no Bonjardim. Às vezes passo lá e lembro-me. Ia para o Mercado do Anjo, quando ainda existia, buscar batatas”. Começou a ler Emílio Salgari, mas esclarece: “a minha principal preocupação não eram os livros, era sobreviver”. Livros que alugava, a 5 tostões por dia, a um colega cujo pai estivera na guerra civil de Espanha e regressara de lá com muitas dificuldades.

Viveu em ilhas (a primeira no Carvalhido, a segunda na Rua Oliveira Monteiro, na Quinta Amarela, onde se instalou a minha primeira Faculdade de Letras). A sua terceira morada foi também perto da Fac. de Letras, a actual, no Campo Alegre, o Bairro do Cruzinho, onde ainda reside uma irmã, Maria. Por isso mudou de uma escola primária em Cedofeita para outra em frente ao Palácio de Cristal. Que Porto era este? O Germano conta: “Era uma cidade intimista, pacata. Uma cidade que acordava de manhã com as sirenes das fábricas a chamarem os trabalhadores. Eu vivia perto da fábrica de passamanarias do pai do Manoel de Oliveira, aquelas sirenes eram o nosso relógio. Isso e os pregões das vendedeiras; as leiteiras eram as primeiras a chegar, já conheciam as pessoas, falavam. Eu passava na rua a caminho da escola e ouvia o tinir das porcelanas de pequeno-almoço de dentro das casas.”

No fim da primária, e gorada a hipótese de seguir pelo seminário, teve de ir trabalhar, que numa casa de quatro filhos (dos quais o Germano era o mais velho) todos tinham de ajudar, mesmo as crianças. Com 11 anos, foi para uma loja de retrosaria, em Santa Catarina, como marçano: tomava conta do estabelecimento (e deitava um olho ao atelier que funcionava atrás), limpava a loja, os vidros, varria o passeio. E os 80 escudos mensais que ganhava, entregava-os directamente, sem passarem pelas mãos de mais ninguém, ao senhorio da casa em que vivia a família; criança ainda, pagava a renda da casa. Alguns dos presentes – poucos, felizmente – compreenderão o alívio que isso significava para o seu pai e para todos os seus.

Resumindo em escassos minutos anos e anos decisivos na sua vida, anos de formar o carácter, de forjar amigos, de descobrir o mundo à sua volta, anos de muito trabalho, muita privação, muito sacrifício, muito sofrimento, lembrarei apenas que após essa passagem, como marçano, pelo balcão da retrosaria (e porque não tinha possibilidade de renovar o vestir e o calçado, que se estragava naturalmente e o envergonhava perante as clientes), o Germano mudou para uma Fábrica de Fósforos, onde trabalhou entre os 14 e os 20 anos, ganhando menos de metade. Dessa fábrica passou para os serviços administrativos do Hospital da Misericórdia do Porto (o Hospital de Santo António), onde às vezes lhe tocava, como aos médicos e aos enfermeiros, ‘fazer as urgências’, como administrativo, e assim receber mais qualquer coisa.

Eram tempos em que os jornalistas, em vez de darem a volta à Internet, em busca de notícias, davam a volta ao mundo: enfim, a este pequeno mundo que era o Porto dos anos 50. Isso significava passar pelos bombeiros, pela Polícia (sobretudo a Judiciária) e pelos hospitais, em busca dos chamados, e muito lidos, “Casos do Dia”.

Aconteceu que o Germano criou um relacionamento mais próximo com o jornalista do “Jornal de Notícias”, dando-lhe a ele as “caixas” e os casos mais sumarentos. E foi por isso com naturalidade que um dia foi convidado para se apresentar nesse jornal, o “Notícias”, para trabalhar à experiência como colaborador desportivo.

Permitam-me um parêntesis para fazer o elogio do colaborador desportivo, que pode parecer algo desajustado aqui, mas perceberão que não é, porque foi uma escola magnífica (para ele como para mim), mal paga, pouco considerada e ingrata. Ia-se com frequência ao fim do mundo cobrir a desinteressante assembleia de uma minúscula colectividade, apanhava-se chuva, vento, frio e lama (e corria-se o risco de se ser insultado e agredido) para fazer o relato de um mísero jogo dos campeonatos distritais, que sairia (se saísse) na 2ª feira seguinte, a uma coluna, uma dúzia de linhas perdidas no espaço menos nobre das páginas menos nobres do Desporto, sem título a não ser o resultado.

Ou então passava-se a noite de domingo sentado a uma secretária com um telefone na mão, numa redacção semivazia e pouco iluminada, a ligar para modestos campos de futebol, para cafés, para onde calhasse, e tentar saber como tinha acabado o palpitante Aljustrelense – Pinhalnovense ou o trepidante Gafanha – Pampilhosa. E depois de cerca de 60 telefonemas (às vezes muitos mais) tínhamos de fazer – à mão – as classificações das seis séries da 3ª Divisão Nacional: nome do clube, total de jogos disputados, quantas vitórias, quantos empates, quantas derrotas, quantos golos marcados e quantos sofridos, quantos pontos, que lugar na tabela classificativa.

Não levem isto com ligeireza. Os leitores nunca levaram. E se detectavam um erro, fosse ele o mais insignificante, nas contas do seu clube, ligavam directamente à redacção do jornal (o acesso era fácil), a queixa subia às chefias – e as chefias desciam rapidamente até nós. O diálogo que se seguia nem era agradável nem susceptível de ser reproduzido aqui. Por ‘fazer a 3ª divisão’ (dizia-se assim), ou seja, por gastar, num trabalho cansativo e sem ponta de compensação, os fins de tarde e as noites de domingo (bem entradas pela madrugadas dentro), ganhava eu, há cerca de 40 anos, 80 escudos por mês.

Rapidamente, graças ao seu empenho e à sua criatividade, o Germano percorreu todos os degraus do cursus honorum de um jornal como o “Notícias” do início dos anos 60. Porque o Germano – e lá estamos nós no essencial – foi, é e será sempre um jornalista, na dimensão mais nobre desta profissão. Nunca se preocupou em assinar as notícias (muito menos as legendas, como vi tantos fazer), nunca quis ser opinion-maker. Preocupava-se (preocupa-se) sempre em procurar a informação, recolhê-la, tratá-la e relatá-la da forma mais sóbria e mais simples que soubesse. E de cada vez que tinha uma história entre mãos, em contá-la bem contada – em tudo isto se aproxima dos historiadores, ou nós dele. Há meia dúzia de casos contemporâneos em que a fronteira entre a história do presente e o melhor jornalismo são estimulantemente porosas.

Completando a minha sumária caracterização, além de um jornalista de primeira água, o Germano Silva é um excepcional contador de histórias. Quem teve e tem o privilégio de conviver com ele só precisa de estar calado, de saber ouvir e de lhe dar oportunidade de começar. E então ele começa. Quando ouvirmos as duas palavras mágicas…”Uma ocasião…” podemos ter a certeza: vem aí história, e da boa (tema: qualquer um do Porto e arredores; cronologia: qualquer uma, dos anos 40 até hoje).

Para sermos justos – o Germano seria o primeiro a ficar desgostado se o não fôssemos – a sua carreira deve muito a inúmeros jornais e revistas em que trabalhou (o Expresso, o Jornal, o Jornal Novo, a Flama, a Visão) e a muitos jornalistas desses e de outros media, alguns da concorrência, com quem se foi cruzando. Mas deve sobretudo a essa formidável escola de humanidade, de solidariedade e de bom jornalismo que foi o “JN” (desde 1956, quando lá começou, até 1996, quando se reformou, já que não faria sentido falar de outros tempos nem eu tenho quaisquer elementos que me permitam fazê-lo com seriedade. Algumas características dessa ‘escola’:

  1. Uma profunda, umbilical ligação à cidade do Porto e ao Norte do país; o “JN” era mesmo o jornal do povo, e o ‘povo’ entrava facilmente pelas suas instalações dentro e chegava à fala com os jornalistas.
  2. Uma extensa e exaustiva rede de correspondentes locais que, porque bem arreigados e respeitados nas suas terras, sabiam quais as notícias que interessavam de verdade às suas gentes; uma igualmente exaustiva rede de colaboradores desportivos que cobriam as modalidades mais minoritárias (o andebol de onze, o campeonato de futebol de veteranos com o extraordinário nome “As Árvores morrem de pé!”), as colectividades mais insignificantes e humildes (uma qualquer sociedade columbófila de uma vilória perdida). Atenção que não estou a falar de agremiações nobres e muito prestigiadas na nossa cidade, como por exemplo “Os Passarinhos da Ribeira”, onde aliás me coube fazer a notícia de uma palestra que lá deu o saudoso José Maria Pedroto (palestra que ainda recordo quase integralmente e que me ensinou regras muito úteis para a minha actual profissão de professor e de historiador).
  3. Essa humildade, essa sensibilidade para avaliar o que é verdadeiramente importante para o quotidiano dos mais humildes, traduzia-se, e ainda se traduz, na atracção sistemática do chamado “pequeno anúncio”, do emprego ou do aluguer da casa, que os jornais que se auto-classificam como “de referência” olimpicamente desprezam, trocando-os de bom grado por um reclame de página inteira ao mais recente modelo do BMW Série 5 ou dos relógios Rolex. Nunca, mas nunca mesmo, o “JN” me informou erradamente sobre uma farmácia de serviço ou o horário de um cinema, ao contrário do que me acontece regularmente nos citados jornais ‘de referência’. Isso pura e simplesmente não era concebível nem admissível. A “Agenda” era levada muito a sério.
  4. Contavam, naturalmente, as elevadas qualidade média e experiência dos jornalistas e dos chefes de secção – tudo gente ‘da tarimba’, como então se dizia. O meu chefe na Secção do Deporto, o António Matos, começou a trabalhar, em criança, subindo descalço a postes de alta tensão. Depois de iniciar a colaboração no “JN”, foi-lhe ‘facultado’, por assim dizer, um atabalhoado diploma da 4ª classe para poder trabalhar legalmente no jornal. Acumulava um feitio colérico com um verdadeiro condão para antecipar as notícias realmente interessantes e para as servir ao leitor sob o ângulo mais fascinante. Quando um grande jogador, o António Oliveira, quase em fim de carreira, voltou à sua terra (e à do Germano), a Penafiel, como jogador-treinador, o Matos mandou-me lá fazer a reportagem, mas antes instruiu-me devidamente sobre o ângulo a explorar: “Luís Miguel, imagine a Maria Callas a cantar num teatro decadente de província…. É isso que deve tentar ver”. E eu fui e vi e contei.
  5. Mas o melhor do “JN” como escola (para mim, pelo menos, foi-o) era a chefia – ou as chefias. Num ‘aquário’ situado num local estratégico da enorme redacção, por onde as notícias tinham obrigatoriamente de passar a caminho da fotocomposição, sentavam-se em meia dúzia de secretárias outros tantos jornalistas com carreira feita na casa e respeitadíssimos entre os seus pares: no meu tempo era o Manuel Ramos (duríssimo, excepcional mentor), o Pinto Garcia, o José Luís Nunes, o Sérgio Andrade e o Frederico Martins Mendes. Quando alguma coisa na peça que nós tínhamos escrito não estava bem – e havia tantas, tantas, que podiam não estar bem, Germano: o título, o subtítulo, o lied, um desenvolvimento infeliz, um juízo de mau gosto, uma apreciação descabida, uma informação essencial em falta, alguém que devia ter sido ouvido e não foi, um erro de ortografia, de sintaxe, de semântica – raríssimos – eles, na chefia, mandavam chamar: “Luís Miguel, à chefia…”. Tenho a certeza que a si isso quase nunca lhe aconteceu e, se aconteceu, não o deve ter preocupado em excesso. A mim aconteceu-me muitas vezes e eu ia sempre cheio de medo. Só havia uma circunstância mais assustadora do que eu ser chamado à chefia; era quando a chefia vinha em pessoa à minha secretária, com o meu arremedo de notícia na mão, para se espantar como podia alguém ser tão inepto. Lembro-me da dureza exigente do Manuel Ramos, da gentileza do Pinto Garcia; mas lembro-me sobretudo, agora com redobrada saudade, do Frederico Martins Mendes, que chegava à minha beira, ralhava sem contemplações com a sua voz rouca para, logo a seguir, explicar como é que eu devia fazer. E como eu aprendi! Aprendi tanto, com o Frederico, tanto do que hoje sei e aplico como historiador e na minha escrita! É que, como uma vez eu tive oportunidade de lembrar no lançamento de um dos seus livros, para chegarem à chefia estes homens tinham feito de tudo, no jornal, e eram perfeitamente capazes de voltar a fazer fosse o que fosse em qualquer momento. Tinham começado como humildes colaboradores, depois tinham subido a pulso todos os degraus da carreira de jornalismo, sabiam inventar, em segundos, títulos prodigiosos (recordo tantos! Já copiei mais de um nos meus trabalhos…), entravam com à vontade na sala de maquetagem e compunham rapidamente uma primeira página daquelas que ficam na História! Estou a ver o Frederico, em mangas de camisa e gravata desalinhada, no cubículo da maquetagem, poucos minutos de saber da morte do Pedroto: escolheu uma fotografia enorme, de página inteira, do José Maria Pedroto, com o seu boné, os óculos de lentes grossas e um braço estendido a apontar para o infinito, e introduziu por baixo uma única legenda, em letras garrafais que acabaram de preencher essa 1ª página: “Chora, futebol! O mister morreu!”. Com igual à vontade, estes homens entravam na fotocomposição para afinar um pormenor, na tipografia, nas oficinas, nas rotativas. Tratavam os tipógrafos como irmãos e eram-no de verdade. Todos eles tinham, mais do que uma vez, saído de madrugada nas carrinhas brancas da distribuição (com os assentos pretos e sujos da tinta dos jornais recém-impressos) e seriam capazes de guiá-las pelos vários itinerários da zona Norte. Todos eles conduziam com frequência os velhos Toyotas da redacção quando faltavam motoristas – também o fizemos os dois. Eles conheciam os pontos de venda, os tempos e os gostos dos leitores. E explicavam: “Se o “JN” chegar amanhã à estação de S. Bento com um quarto de hora de atraso, alguns milhares de pessoas que desaguam no Porto de madrugada, para trabalhar, e cheias de pressa, não encontrando o jornal, levam o “Janeiro” ou o “Comércio” e, quem sabe?, podem trocar de jornal para sempre”.

O Germano foi treinado na pressão dos prazos. Nós, como académicos, tantas vezes nos queixamos, porque a sofremos de facto no corpo e na alma, dos prazos de entrega de uma tese, de um artigo, de um relatório, da documentação para um concurso…Não imaginamos como a nossa vida, ainda assim, pode ter momentos imensamente mais relaxados do que eu tinha quando quase saltava da cadeira, com um berro de ensurdecer: “Ó Luís Miguel, esse artigo é para o semanário de amanhã?!”

Depois, aprendia-se outra coisa: o exemplo extremo da humildade que o Germano tem sido durante toda a sua vida também vem de certeza, pelo menos em parte, daí. Porque nos repetiam sem cessar: “Um jornal nasce e morre todos os dias” – esta era a versão nobre, significando que a reportagem que tanto nos consumiu mas que hoje nos enche de orgulho, por ter sido publicada com destaque, a várias colunas, com foto e chamada à 1ª página, essa reportagem amanhã será completamente esquecida e inútil (e que diríamos nós hoje, quando tudo está infinitamente mais acelerado, e tantas vezes o jornal está desactualizado ainda mal saído das rotativas!). Repito: esta era a versão nobre. Os tipógrafos, menos dados a alegorias metafísicas, despachavam-nos com a versão mais crua: “Meu amigo, com jeitinho, esse jornal amanhã vai servir para embrulhar peixe!” Ao menos isso, Germano: esta derradeira e tão prestimosa missão – embrulhar peixe. Quantas vezes não dei e dou por mim a contemplar melancolicamente os meus trabalhos todos ‘internacionalizados’ segundo as regras imbecis da bibliometria, as minhas orgulhosas separatas que tanto trabalho me deram a criar e a redigir, e a pensar: “Amanhã, ou simplesmente mais logo, ninguém vai querer saber disto; nem sequer as peixeiras. Nem para isso servirão estes textos escritos com tanto custo! Nem para embrulhar peixe!”

Ao relembrar o seu percurso foram várias as comparações que me surgiram, sem eu o pretender, com a carreira académica. O tal ‘aquário’ que abrigava, vigilantes e implacáveis, as chefias, pode ter um certo paralelo com alguns dos júris que integrei ou que me avaliaram durante o meu percurso universitário. Com evidentes diferenças: a atenção e a preocupação pedagógica destas chefias em corrigir o que fazíamos mal eram constantes, diárias e informais; nunca desleais. Nunca pensadas para impressionar a assistência, para exibir erudições inúteis, nunca movidas por pequenas vaidades ou pequenas invejas, nunca desrespeitando o profissional que escrevera a notícia. Porque eles, os chefes de redacção, tinham compreendido antes de nós e melhor do que nós que, em primeiro lugar, o jornal tinha que sair perfeito, profissional, e em segundo lugar, no dia seguinte as peixeiras não fariam grande caso de gralhas ou defeitos de estilo.

É conhecida, e por isso sintetizo, a chegada do Germano à História do Porto. Um incêndio em Santa Catarina; afinal não era nada, alguém deixara um ferro de engomar ligado em cima de uma tábua de passar a ferro, a fumarada vinha daí, uma notícia desconsolada. E, no dia seguinte, uma chamada à redacção – uma das tais: “O meu amigo já leu o artigo da concorrência, do “Janeiro”? Então faz o favor de ler!” O “Janeiro” aproveitara o incidente e fazia uma festa, porque se o incêndio não valia nada, já o prédio valia. Tinha lá morado o Arnaldo Gama. E a partir do Arnaldo Gama… De modo que a lição foi curta e grossa: “Quer ser repórter da cidade? Um repórter da cidade a sério? Então comece imediatamente a estudar e a perguntar e a procurar e a saber e a tentar ver tudo e mais alguma coisa acerca dessa cidade!”.

Assim nasceu o nosso Germano mais conhecido, o curioso do Porto, o colecionador que juntou muitas dezenas de milhares de documentos excepcionais sobre a cidade – jornais, folhetos de todo o tipo, fotos e gravuras antigas, programas de récitas, de festas, cartas e cartazes…Tudo! E neste ponto tenho de enaltecer a sua amizade, muito antiga, com outro portuense de adopção e transmontano de nascimento e de coração, o Sr. Nuno Canavez da ‘nossa’ Livraria Académica, que pela sua profissão de livreiro alfarrabista lhe arranjou talvez a maior parte desses tesouros. Deixem-me contar um episódio que muitos dos presentes desconhecerão: “uma ocasião” o Germano decidiu legar à cidade do Porto uma pequena parte, selecionada, de toda esta riqueza que foi reunindo. Entregou-a a quem devia, o Arquivo Histórico Municipal (a “Casa do Infante”), ao tempo exemplarmente dirigida pelo Dr. Manuel Real, que de imediato organizou uma exposição e publicou um pequeno catálogo intitulado “O legado de Germano Silva”. Numa mesa redonda organizada, por essa altura, sobre mecenato, lembro-me de ter feito uma observação deste tipo: “ Se o Germano tivesse cedido esta colecção à Câmara Municipal do Porto por umas centenas de milhares de euros, eu, e a Câmara, estou certo, considerá-lo-íamos um grande benfeitor e um cidadão exemplar, por não ter vendido tudo para os Estados Unidos por dez vezes mais. Mas o Germano não vendeu. Deu”. E continua a dar, com regularidade, peças avulsas e preciosas.

Volto ao “JN” e à nossa história: daquele gosto por conhecer a cidade nasceram, a certa altura, as suas crónicas dominicais, baptizadas “À descoberta do Porto”: são elas que alimentam semanalmente o gosto pela história da cidade de dezenas de milhares de pessoas; são elas que minoram as saudades da terra de milhares de portuenses que tiveram de sair de cá. São elas que, regularmente reunidas em belos volumes, com títulos muito simples, esgotam sucessivas edições. Textos curtos, variados, de escrita humilde (de húmus – rente à terra, diria o Eugénio de Andrade), sem erudições que nos nossos trabalhos de historiadores são indispensáveis mas naquelas crónicas seriam descabidas. E sempre ilustradas, ou com as belíssimas fotografias a preto e branco da Lucília Monteiro, ou com fotos ou gravuras antigas da sua colecção pessoal que, domingo após domingo, me arrancam sempre o mesmo resmungo onde pode notar-se – é feio dizê-lo mas é verdade – uma pontinha de inveja: “ Onde é que ele foi desencantar mais esta gravura fantástica?” Livros de crónicas, já ultrapassou uma dezena. Pus-me a contar pacientemente o total de crónicas por livro, o total de fotografias actuais ou antigas…Exercício sem sentido. São muitas, muitas centenas, de textos e de ilustrações. E, já agora, com uma honrosa plêiade de prefaciadores: Pedro Olavo Simões, seu camarada do “JN”, José Viale Moutinho, Amândio Barros, D. Manuel Clemente, Mário Cláudio, Alberto Santos, José Ferrão Afonso, José Hermano Saraiva, Manuel António Pina, Agustina Bessa-luís (e até me foi buscar uma vez a mim, calculo que num ano de aperto de prazos e falta de melhores candidatos).

Além destes volumes que reúnem as suas crónicas e que vão saindo, grosso modo, a uma cadência anual, o Germano escreveu muitos outros: destaco um magnífico livro de arte sobre as Fontes e os Chafarizes do Porto, Guias das freguesias de Cedofeita e da Vitória, uma História do Hospital de Santo António, o texto de uma História da Misericórdia do Porto em BD (3 vols.), um livro sobre os Guindais… A lista completa seria maçadora. Refiro apenas mais um: o “Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX”, que a Porto Editora, na pessoa do Engº Vasco Teixeira, seu presidente, nos convidou para coordenar, a ele e a mim, aquando da “Porto 2001”.

Enfim, o Germano conhece bem a Universidade do Porto, já cá deu várias aulas (a meu convite, uma série delas), tem ajudado generosamente, nas suas investigações, os alunos de pós-graduação que encaminho para ele. Como todos sabemos, conduz quase semanalmente passeios temáticos na cidade (tão bonito o último a que pude ir, sobre “O Porto de Eugénio de Andrade”), integra, ajuda e anima colectividades marcantes a nível local: a Cooperativa Árvore; a Cooperativa de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, o Rancho Folclórico do Porto. Foi dirigente sindical. E não perde uma oportunidade para homenagear os muitos que antes dele e ao mesmo tempo que ele se dedicaram e dedicam à história desta terra que tanto amamos: Magalhães Basto, sem dúvida um dos maiores, Eugénio Andreia da Cunha Freitas, um investigador de enormíssima craveira, Pedro Vitorino, alguns recente e precocemente desaparecidos, como Armindo de Sousa ou Pierre Guichard. E entre os vivos, nomes como Hélder Pacheco, Francisco Ribeiro da Silva, Amândio Barros, José Ferrão Afonso, Gaspar Martins Pereira, Jorge Alves e outros tantos que não citarei pela economia da exposição, mas que todos sabem que conheço, respeito, admiro, estudo e divulgo.

[…] Sei que nada, mesmo nada, vai mudar na sua vida amanhã. Continuará a trabalhar de manhã à noite, a tentar responder à avalanche de solicitações que lhe são feitas, a escrever a sua crónica aos domingos – e diz aqui o Pina, do lado “Às tantas já é a crónica que o escreve a ele”! Sei que vai manter a sua invejável liberdade e a sua exemplar humildade. Se até agora não foi vaidoso, não vai ser agora…

[1] Extraído do Elogio do jornalista Germano Silva, pronunciado pelo Prof. Doutor Luís Miguel Duarte, na cerimónia em que a Universidade do Porto atribuiu a Germano Silva o grau de Doutor honoris causa, a 3 de Novembro de 2016 (no Salão Nobre da Reitoria da Universidade do Porto). Será integralmente publicado, em suporte impresso, pela Fundação Manuel António Mota. Ao Autor e à FMAM, na pessoa do seu presidente Dr. Rui Pedroto, agradecemos a possibilidade de aqui publicarmos este longo excerto.