VERGÍLIO FERREIRA – A ALEGRIA DE EXISTIR: BREVE, DENSA, VALIDADA

José Gama

A leitura de Alegria breve constitui um momento ímpar de reflexão e de interrogação sobre a existência humana, guiado pela mão hábil e invasiva de Vergílio Ferreira, naquele modo solene e insatisfeito que ele consegue imprimir à sua escrita como ninguém. A releitura adquire ainda uma dimensão mais forte, se for guiada, logo à partida, por aquele sentido de reavaliação de tudo o que acompanha a despedida da vida de toda uma aldeia, em que a grandeza e a incapacidade do homem parecem atingir os seus limites…

Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchando – sou o Homem!

Mas de súbito ergo-me, (…) são os passos do primeiro homem do mundo. Uma alegria terrível inunda-me. É uma alegria absoluta, imperiosa e todavia calma como a lentidão da terra (FERREIRA 1986: 15, 17).

Ressoam na obra do autor os ecos da vitória do homem sobre a terra, como um deus, quase uma divindade… – mas sentindo bem fundo o peso e o mistério da solidão, do silêncio ensurdecedor da noite e da natureza. É uma solidão acompanhada, que não consegue libertar-se da memória, e que se alimenta de interrogações e de esperança na vida e no futuro – um filho desconhecido que há de chegar, como lembra com insistência, alimentando a esperança da vida que tem de continuar.

O balanço da vida transcorre no interior profundo do país, numa ruralidade pacata e arcaica, que é repentinamente assolada pelas máquinas do progresso. A exploração mineira vem perturbar o ritmo e os valores tradicionais que conduziam as pessoas e regulavam a trama das relações sociais.

Aí emerge a densidade e profundidade da revelação do Homem, do “sentido do homem” – “sentido misterioso de tragédia, aberração, delicada ternura e verdade” (idem: 46). Por mais que se reconheça “perfeito, uno, denso, convergente a uma direcção” (idem: 60), a insatisfação do narrador e a incomodidade perante a vida e o universo adensam a descoberta de que “a vida é excessiva e não é justa ou injusta” (idem: 112). Nesse estar aí, em contínua exposição e convivência, vai sendo maturado o desafio que lhe invade tudo, as entranhas e o pensamento. O olhar da evidência também o incomoda, também o seduz, com um silêncio que é “opaco” e que “brilha” intensamente.

“A terra é grande, o céu é imenso. Céu vazio. Eu só” (idem: 52).

Chega a um ponto em que as questões puramente humanas se esgotam, nas relações com os outros e até mesmo na vivência do amor…

Não tenho problema nenhum. Estou é cansado. Todas as questões se me esgotaram, mas fiquei ainda vivo. De uma a uma esgotaram-se e agora estou só em face do universo. Reconstruir tudo desde as origens, desde a primeira palavra. Tudo o quê? É necessário que tudo seja novo, inteiramente novo e imprevisível (idem: 115).

E uma questão de fundo, indecifrável mas persistente, reaparece como tema frequente de conversa e de reflexão – um esquema invisível orienta o seu deambular, verdade antiquíssima e intocável – “Deus não tem nome, Deus é o que é. É preciso recriá-lo a cada hora, achá-lo antes de o reconhecer” (idem: 117). Mas só raramente a evidência aparece. “Todas as religiões estarão em crise. Mas não o sagrado que as justifica” (idem: 160).

A questão de Deus insinua-se das mais variadas formas, nas interrogações que o quotidiano da vida provoca, comandada pelas práticas religiosas e até mesmo pelo som do sino da torre da igreja. As pessoas constroem de um certo modo infantil as fabulações sobre Deus e a religião. Mas “Deus está a mais na verdade de um corpo. Está sempre a mais na verdade de um homem” (idem: 168). É que “um deus assusta, mesmo que esse deus sejamos nós” (idem: 172).

E, no fim de tudo, no cansaço do corpo velho, mesmo que por dentro não tenha idade nenhuma, a sabedoria de Agostinho vem à memória, com uma anuência implícita – “Et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te. – Amen” (idem: 179).

A alegria breve insinua-se de todos os modos, ainda que breves, na teimosia da esperança. Primeiro, a passagem do testemunho na continuação da vida, a cada passo significada no filho que há-de vir, e a quem tem de transmitir tudo o que de bom a existência lhe proporcionou. A esperança é fundamental, mas também com a novidade da criação, até mesmo de uma religião nova, que responda ao grito de desespero que lhe sai da alma, no isolamento humano a que vai ficando reduzido na aldeia deserta: “Sou o deus único, o deus final, a terra não pode morrer” (idem: 214). Depois, “há perguntas sem resposta”, as respostas nunca se conquistam, a vida é o que é, e na avaliação final, na passagem do testemunho, pode confessar serenamente: “Foi bom ter nascido, para ver como isto era, para matar a curiosidade. Fugidia alegria, luz breve. Foi a que me coube, em paz a aceito. E em cansaço. Em paz” (idem: 221).

Eis o Homem, Vergílio Ferreira, que se nos desvenda, com a grandeza nua da sua mensagem, que ele procurou situar no mundo dos homens e na imensidão do universo:

É no silêncio que eu vivo, aprenderei outra linguagem? Não há palavras ainda para inventar o mundo novo. Como estou cansado. Paro de cavar, olho a montanha. Os dois picos erguem-se ao longe, hieráticos, com a solenidade de um universo vazio. Foi a voz que aprendi, essa, da grandeza e do silêncio, de um mundo primitivo. Depois a voz deu a volta pelo labirinto da vida – eis que regressa ao ponto original. (…) Acaso o meu início, o que transmitirei ao meu filho (idem: 219-20).

E conclui a obra: “Recomeça tudo de novo. A terra não pode morrer. (…) Amanhã é um dia novo” (idem: 222).

Bibliografia

FERREIRA, Vergílio (1986), Alegria breve, Lisboa, Bertrand / Amigos do Livro, TV-Guia.