AO ENCONTRO DE VERGÍLIO FERREIRA

Maria Luísa Malato

entrevista

Fernanda Irene Fonseca

fernanda-irene-fonsecaA Fernanda Irene Fonseca se devem alguns dos mais importantes estudos sobre a obra de Vergílio Ferreira, em parte reunidos na obra Vergílio Ferreira: a celebração da Palavra (1992). Foi a organizadora do Colóquio Interdisciplinar de Homenagem a Vergílio Ferreira (Porto, 1993) e das respetivas Actas (1995). Continuou, até hoje, a escrever regularmente artigos sobre Vergílio Ferreira que se encontram ainda, infelizmente, dispersos. Depois de 36 anos como Professora de Linguística na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, aposentou-se para se dedicar quase exclusivamente ao estudo do espólio de Vergílio Ferreira. Fez a edição critico-genética do manuscrito de um diário escrito pelo romancista entre 1944 e 1949, que foi a primeira obra do seu espólio a ser publicada. Co-editou também, em colaboração com Hélder Godinho, o romance Promessa, de 1947, o único romance completo que Vergílio Ferreira deixou inédito.

— Comecemos então pelo começo: ao entrar na universidade, a hesitação da Fernanda Irene entre seguir Filosofia ou Literatura… E afinal, entre as duas, a Linguística.

— Realmente custou-me a decidir entre a Filosofia e a Literatura, mas foi esta que venceu: escolhi o curso de Filologia Românica. Na altura não sabia ainda o que era a Linguística. Mas na cadeira de “Introdução aos Estudos Linguísticos”, logo no 1º ano, tive um professor ─ Herculano de Carvalho, autor de Teoria da linguagem (1967), uma obra de referência ─ que nos suscitava, desde a primeira aula, uma reflexão de cariz teórico complexo a partir de uma interrogação aparentemente simples: “O que é a linguagem?”. Fiquei fascinada por essas aulas onde descobri que o estudo da língua não era só “gramática”, podia ser também algo que me atraía tanto como a Filosofia.

— Era já uma leitora apaixonada da obra de Vergílio Ferreira…

— Sim, li Aparição justamente no ano em que entrei na Faculdade (na altura entrávamos aos 17 anos). Publicado em 1959, Aparição não era ainda, nos anos sessenta, obra de leitura no Liceu, como veio a ser mais tarde. Foi alguém da família que me ofereceu o livro, no dia do meu aniversário, sem imaginar a importância decisiva que isso viria a ter para mim…

— E em que medida a paixão pela obra de Vergílio Ferreira se ia introduzindo nos seus estudos de Linguística?

Isso só aconteceu alguns anos mais tarde, quando era já assistente na Faculdade de Letras do Porto. A primeira cadeira que ensinei (e que continuei a ensinar durante muitos anos) foi justamente a “Introdução à Linguística”, em que seguia a sugestão do meu mestre Herculano começando o curso com a tal pergunta: “O que é a linguagem?”. Com uma variante de ordem pedagógica: eu pedia aos estudantes respostas imediatas para essa pergunta. E depois de uma análise dessas respostas, anunciava: “O programa desta cadeira vai andar todo à volta da resposta a esta questão; e o que eu quero conseguir é que, no fim do ano, se vos voltar a perguntar ‘o que é a linguagem?’, sintam muito mais dificuldade em responder…”.
Comecei a aperceber-me, por esta época, da presença, em Vergílio Ferreira, de uma ampla reflexão teórico-poética sobre a linguagem ─ a Palavra, como gosta mais de a designar. A interrogação “O que é a Palavra?” repercute-se na sua obra em vários momentos e tons. Matéria-prima da sua criação artística, a Palavra torna-se ela própria objeto de reflexão. De reflexão filosófica e, simultaneamente, de celebração poética: “A palavra cria o mundo que a criou a ela. (…) O mundo é uma proposta muda para que falada exista.” (Invocação ao meu corpo). E às vezes vinha a propósito comentar com os alunos textos deste tipo, em que surgem flagrantes intuições sobre a linguagem. Por exemplo, consciencializar que a língua é uma “Rede aérea de sons, a mais frágil produção do homem.” (Para sempre) podia constituir uma excelente motivação e ponto de partida para o estudo do nível fónico da língua.

— Havia até, creio, um excerto de Aparição que colocava de tempos a tempos no enunciado de exames…

— Exatamente: era o excerto em que o Bexiguinha conta a Alberto, seu professor de Português, a experiência de “mastigar as palavras”: “a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois pedra já não quer dizer nada” (Aparição). Irrompe, nesta experiência do Carolino, a tomada de consciência da materialidade do significante e a evidência, algo angustiante, da “arbitrariedade” da sua relação com o significado. E eu pedia aos alunos uma explicação desta “experiência” no intuito de suscitar os conhecimentos que tinham adquirido sobre as conhecidas noções postas em relevo por Saussure. Comecei também a usar citações de Vergílio Ferreira como epígrafe dos meus artigos de Linguística. Formulações inspiradas que, na sua concisão, rigor e evidência, têm o poder de condensar toda uma teoria. Por exemplo, a afirmação “O tempo não passa por mim: é de mim que ele parte” (Aparição) que, na sua poderosa concisão poética, define o cerne de uma teoria linguístico-enunciativa do tempo e perspetiva as suas repercussões na construção narrativa.

— Teria sido nessa altura que escreveu a Vergílio Ferreira…

— Foi na sequência disso. E também porque a leitura assídua de Conta-corrente me tinha tornado muito próxima do dia-a-dia de Vergílio Ferreira. Parecia-me que o conhecia já há muito: a ele, e não apenas às suas obras. E ao ler uma afirmação que faz no diário“O estruturalismo pôs-me o problema grave (o único) da significação da ‘linguagem’. Como é que os romancistas se não preocupam com esta coisa tremenda que é o alcance da ‘palavra’ com que escrevem?” (Conta-corrente I) ─ , senti a vontade (e o à-vontade) de lhe dizer que esse “problema grave (o único)” já o preocupava muito antes do embate com o estruturalismo. Tentei demonstrar-lhe, com vários exemplos, a presença constante e antiga da reflexão sobre a linguagem na sua obra; juntei uma cópia do enunciado de exame de Introdução à Linguística com o excerto de Aparição, referi as citações escolhidas como epígrafe para os meus artigos de Linguística… E fiquei admirada quando, poucos dias depois, recebi uma carta de Vergílio Ferreira (na sua letrinha minúscula…) em que se mostrava agradavelmente surpreso com a minha interpretação da sua obra como pesquisa poético-filosófica sobre a linguagem e também com o facto de eu comentar textos seus com os alunos, nas aulas de Linguística. Foi o início de uma correspondência frequente e de uma amizade que foi crescendo.

— O facto de trabalhar numa dissertação de doutoramento sobre os tempos verbais era certamente uma causa ou um efeito dessa paixão pela Literatura: o “Era uma vez” talvez seja a fórmula mágica que melhor traduz esse fator encantatório por um tempo que se prolonga, ou repete, afirmando a sua singularidade.

— Tem toda a razão. Esse uso do imperfeito do indicativo como abertura para a ficção, juntamente com um outro, homólogo, que dele fazem as crianças ─ “Agora eu era a mãe e tu eras o pai”, “Agora eu era o herói…” ─ foi um dos aspetos que mais me motivaram para a descrição e análise teórica dos tempos verbais. O imperfeito é um tempo do passado, mas é também um tempo da narração e da ficção. Mais uma vez posso citar Vergílio Ferreira: ao escrever “O que me seduz no passado não é o presente que foi. É o presente que não é nunca” (Aparição), faz uma síntese poética do duplo valor do imperfeito como “presente no passado” ─ “O presente que foi” ─ e como índice da ficção ─ “o presente que não é nunca”.

— A comunicação “Vergílio Ferreira: a Palavra, sempre e para sempre”, publicada em 1986, foi um marco, num processo iniciático: talvez até por isso seja o seu “preferido”…

— Não sei se é o meu preferido, mas foi muito marcante: eu sentia um desejo enorme de escrever sobre a obra de Vergílio Ferreira, um desejo que estava bloqueado pelas exigências da carreira universitária, nomeadamente, nessa fase, pela urgência de terminar a tese de doutoramento em Linguística. Mas recebi um convite para participar num Colóquio, em Évora, que tinha como tema “Teoria da Linguagem e Teoria da Literatura”. Era irrecusável: um tema destes e em Évora, a cidade vergiliana por excelência! Aceitei o convite para fazer uma comunicação. E foi a única vez na vida em que consegui escrever um texto em pouco tempo: era como se ele estivesse há muito à espera de poder saltar para o papel…

— … e a tese acabou por crescer com dois capítulos sobre Vergílio Ferreira.

— É verdade. Retomei com renovado impulso a tese de doutoramento sobre o tempo na língua, alargando a sua temática à consideração da narração e da ficção num quadro inter­dis­ciplinar em que a Linguís­tica se embrenhava por domínios de reflexão comuns com a Litera­tura e com a Filoso­fia. Foi sobretudo a leitura das obras de Paul Ricoeur que fundamentou esse alargamento. Mas o efeito catalisador veio também da leitura e (re)leitura de Para sempre (1983), um romance admirável sobre o Tempo e a Palavra em que encontrei um poderoso e belíssimo eco poético-filosófico dos temas tratados na minha tese. Acabei por acrescentar à tese uma última parte, intitulada “O romance como pesquisa sobre o tempo e a narração”, com dois capítulos sobre o Tempo nos romances vergilianos. Destaquei sobretudo Para sempre, um Zeitroman que tive vontade de tratar na perspetiva aberta por Paul Ricoeur em Temps et Récit III (1985). Mais uma vez, a interação entre Linguística, Literatura e Filosofia na procura de uma compreensão da natureza e poder da Linguagem. Consegui, alguns anos mais tarde, concretizar esta interseção numa conferência que fiz em Paris com o título “Le Temps chez Vergílio Ferreira: un romancier en dialogue avec la Linguistique et la Philosophie” em que encenei uma conversa, através de uma montagem de citações de quatro autores que muito me influenciaram: um criador literário ─ Vergílio Ferreira ─, dois linguistas ─ Émile Benveniste e Bernard Pottier ─ e um filósofo ─ Paul Ricoeur. E dessa “encenação” resultou realmente um diálogo coerente e profundo em que se entendiam bem, falavam dos mesmos temas, usando por vezes quase as mesmas palavras…

— Já depois do doutoramento, organizou no Porto um Colóquio de Homenagem a Vergílio Ferreira em 1993.  

— Tomei a iniciativa de organizar esse Colóquio Interdisciplinar, em nome da Faculdade de Letras do Porto, para celebrar os 50 anos de vida literária de Vergílio Ferreira. Teve início no dia 28 de Janeiro de 1993, dia do aniversário de homenageado, que completava setenta e sete anos. Ficou para sempre guardada na minha memória a presença interessada e participante de Vergílio Ferreira ao longo dos três dias do Colóquio. Muito animado, feliz, atento a tudo e a todos.

— Há um momento inesquecível nesse Colóquio do Porto, quando Vergílio Ferreira leu um texto belíssimo: “Do impossível repouso”…

É um texto muito denso em que uma reflexão global sobre a Arte enquadra um testemunho do autor sobre a sua própria relação com a obra escrita ao longo de cinquenta anos. Manifestação, repetida, de um fascínio que não se deixa esgotar (“como renunciar ao que me fascinou, se a fascinação me perdura ainda?”), a escrita persegue sempre o que está para além do limiar atingido, o excesso que só como inatingível pode estar presente (“só esse excesso é para o artista bastante, no seu modo de o não ser”). Sendo alusivo à comemoração de cinquenta anos de escrita, este texto está longe de constituir um balanço, antes se tece no prolongamento e reafirmação das perplexidades e inquietações que, ao fim de cinquenta anos, não tinham perdido a sua força e intensidade, o seu poder de motor vigoroso da escrita. Reconhecem-se, nas vertentes que Vergílio Ferreira analisa neste texto, algumas das principais constantes da sua obra: a inquietação filosófica, a aventura da arte, a vivência emocionada da criação poético-filosófica, o desafio de todos os limites inerentes à finitude do Homem.

— Firmemente creio também que aqueles escritores que acham impossível deixar de escrever são os que mais merecem ser lidos. Há neles uma maior indiferença ao que os outros querem que eles escrevam. Escrevem porque têm de escrever o que escrevem. Por urgência, emergência ou imergência.

— Sem dúvida. A relação de Vergílio Ferreira com a escrita é compulsiva, torrencial, excessiva, marcada por um caráter agónico. A sua vivência da escrita é sentida como uma respiração do pensamento, como um gesto em que se gera o pensamento. Está bem patente no texto “Do impossível repouso” essa relação vivencial com a Palavra que não permite a interrupção, incompatível com a constância de uma necessidade tão vital como respirar. Uma “escrita excessiva”, como por vezes diz.

— Voltamos à intersecção da Literatura e da Filosofia quando nos proporcionam uma experiência-limite do conhecimento: “Um livro não pode simplesmente distrair-nos. É necessário um saldo final que nos comprometa com a vida. Que nos perturbe”, escreve ele no Conta-corrente I.

— Essa experiência-limite do conhecimento está descrita numa das obras de Vergílio Ferreira de que mais gosto e de que mais me tenho ocupado ─ Invocação ao meu corpo (1969) ─ em que a Filosofia é encarada como aventura: “A aventura da Filosofia é uma aventura perene como a da Arte” (Invocação ao meu corpo). Uma aventura vivida e narrada ao longo das 350 páginas desse ensaio contaminado pela ficção que põe em cena um “herói” que pensa / escreve compulsivamente ao longo da noite, enfrentando de peito aberto todas as interrogações do Homem sobre o seu destino trágico. O relativo esquecimento em que caiu a obra (facto de que o autor várias vezes se queixava…) resulta, a meu ver, do seu caráter híbrido, a meio caminho entre a filosofia e a literatura: terá sido considerada demasiado filosófica para motivar a crítica literária e demasiado literária para motivar a crítica filosófica… Mas é justamente no cruzamento destes dois excessos que se situa a força deste livro em que ressurge o caráter originário do ensaio como expansão da reflexão filosófica intensificada pela realização estética e pela intensidade emotiva.

— Gosto também muito de Invocação ao meu corpo, que uso por vezes nas aulas de Retórica da Sensibilidade…

— A força da interrogação fenomenológica traça, neste livro, o trajeto da reflexão, um trajeto analisado ao mesmo tempo que é vivido. Está subjacente aos diversos temas filosóficos que são tratados na obra o da própria natureza da Filosofia, encarada não apenas como um saber, uma reflexão, mas como odisseia intelectual e emotiva com as componentes de peripécia e risco. Trata-se da narração de uma aventura filosófica em que a ação de pensar / sentir / escrever tem os contornos de uma experiência-limite do tipo das que são vividas pelos heróis dos romances vergilianos (Alberto de Aparição, Jaime de Alegria breve, Paulo de Para sempre, João de Em nome da terra, etc). O “herói” de Invocação ao meu corpo chama-se por vezes Vergílio, um escritor que fala dos romances que escreveu, que menciona e cita os filósofos que leu, que evoca alguns lugares em que viveu. Mas na maior parte do livro não tem nome, é apenas um homem, todos os homens…

— Como entender essa voz da inquietação com o apego de Vergílio Ferreira ao género do “romance de ideias”, avesso a complexidades da intriga?

Considero que a designação dos romances vergilianos como “romances de ideias” (cunhada pelo próprio escritor) é muito limitadora. É um facto que há sempre temas (ou problemas) filosóficos que lhes subjazem: o Eu, o Eu-Tu, a Palavra, o Tempo, a Finitude, a Memória, o Corpo, entre outros. Mas esses temas filosóficos não surgem nos romances a nu, como meras construções teóricas: humanizam-se, são envolvidos por uma onda de emoção poética e intensificados pela realização estética.
A escrita de Vergílio Ferreira é poderosa, profunda e lírica, é uma prosa cheia de ritmo em que o vigor poético se expande. É uma experiência radical da descoberta do poder da Palavra, frágil objeto sonoro, fónico, que ganha vida porque significa, tem um conteúdo intelectual e emotivo. Mas que, como objeto sonoro, pode ser explorada na arte como matéria musical, rítmica. O tom, a toada, o ritmo são traços poéticos marcantes na prosa vergiliana.

— Deveremos a Vergílio Ferreira uma arte musical, da “comoção”?

— Sim, creio que o que há de mais gratificante e íntimo na leitura de Vergílio Ferreira é a comoção que nos provoca. Falo de comoção num sentido forte, presente na etimologia de comover: mover de modo intenso, sacudir, abalar, perturbar. Ao referir esse movimento forte, esse abalo, não tenho em mente apenas a vertente disfórica ligada à tristeza, à angústia, mas também a vertente eufórica, feliz e exaltante, ligada à fruição emotiva e intelectual da criação estética. O que nos estimula, ao ler Vergílio Ferreira, não é apenas a profundidade das ideias, é a sua capacidade de as verter em arte com uma emoção e uma força poética que transmitem às ideias o poder de nos comover. É a plenitude da realização estética que torna jubilosa a leitura dos seus textos, mesmo quando o seu conteúdo é trágico. “Do alarme ao júbilo”, como sintetiza Eduardo Lourenço no título de um dos muitos artigos que escreveu sobre a obra de Vergílio Ferreira. E gosto mais ainda de um outro desses títulos ─ “Desesperadamente, alegria…” ─, título de um artigo sobre Alegria breve que poderia glosar-se como “inesperadamente, alegria” ou “estranhamente, alegria” porque Alegria breve é talvez o mais trágico de todos os romances vergilianos. Mas, na verdade, quando o relembro, surge-me sempre, antes de tudo o mais, a imagem radiosa de uma claridade intensa e brilhante, de uma beleza ímpar: e não é apenas a imagem da neve a brilhar ao sol, emblemática desse romance. É, simultaneamente, o brilho da escrita, o triunfo da palavra na sua plenitude.
O próprio escritor fala da comoção que sente quando escreve: [escrever] “um romance é para mim um modo específico de estar comovido e de descobrir o mundo e a vida dentro dessa comoção.” (Conta-corrente II). Do mesmo modo poderemos dizer que ler Vergílio Ferreira é um modo específico de estar comovido e de descobrir o mundo e a vida dentro dessa comoção.

Não faz sentido, na verdade, opor a comoção à razão.

— Não só não podem opor-se como têm que se aliar: “(…) na ‘palavra’ eu podia aliar a emoção que nos abala à ‘ideia’ que se quer exprimir, o que nos fala aos nervos ao que nos fala ao cérebro, a sensibilidade que se comove à inteligência que se ilumina.” (Espaço do invisível IV). A Palavra constitui, para Vergílio Ferreira, um denominador comum entre a Literatura e a Filosofia.

— Regressamos sempre à inseparabilidade entre a Literatura e a Filosofia…

— Mais uma vez, prefiro dar a palavra a Vergílio Ferreira: “Filosofia e Literatura (…) devem fundir-se e haver arte no pensar como pensamento na arte. (…) Santo Agostinho, Pascal, Nietzsche, mesmo Bergson, até Jaspers e talvez Heidegger, são filósofos do sentir, do pensar atravessado de emoção e que por isso nos tocam do cérebro à sensibilidade.” (Pensar).
Na sua obra, a reflexão filosófica é indissociável da criação literária: vem antes e depois dela, num movimento complexo de fluxo e de refluxo: o (in)fluxo da reflexão filosófica na criação ficcional e o refluxo da força da criação ficcional na criatividade filosófica. No ensaio “Da fenomenologia a Sartre”, Vergílio Ferreira sublinha a convergência entre as filosofias da existência e a criação literária, considerando que a fenomenologia aproximou o pensar do sentir, trouxe a arte para o domínio do conhecer e animou “de sangue quente” a literatura. Mas a sua obra mostra que o reverso também é verdadeiro: o influxo da literatura enriqueceu a filosofia, animando-a de sangue quente e trazendo-a para o domínio da criatividade. Como exprime de modo eloquente nestas duas citações, com que termino:

“A filosofia, como a arte, actua em quem começa como um choque emotivo e mental que funda nesse sentir o arranque e orientação para uma criatividade” (Conta-corrente IV)

A Filosofia não é um meio de descobrir a verdade. É, como a arte, um meio de a criar.” (Pensar)

 

Bibliografia de Fernanda Irene Fonseca sobre Vergílio Ferreira:

Livros

Vergílio Ferreira: a Celebração da Palavra, Coimbra, Almedina. 1992.

Deixis, Tempo e Narração, Porto, Fund. Eng. António de Almeida, 1992.

─ (org.ª) Actas do Colóquio Interdisciplinar de Homenagem a Vergílio Ferreira nos Cinquenta Anos de Vida Literária, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1995.

Edições crítico-genéticas

─ Vergílio Ferreira, Diário Inédito 1944-49, col. Espólio de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand, 2008.

Vergílio Ferreira, Promessa (1947), col. Espólio de Vergílio Ferreira Lisboa, Quetzal, 2010 (em colaboração com Helder Godinho). 

Artigos

─ “Vergílio Ferreira: a Palavra, sempre e para sempre. Conhecer poético e teoria da linguagem” in Línguas e Literaturas, Revista da Faculdade de Letras II Série, Vol.III, Porto, 1986, pp. 7-30.

─ “Conta-Corrente: a história de uma aventura romanesca” in Anthropos, Revista de documentación científica de la cultura, nº 101, Barcelona, 1989, pp. III-VII.

─ “Em Nome da Terra, uma última ‘invocação ao meu corpo'”, in Letras e Letras, nº 33, Porto, 1990.

─ “Da subjectividade do corpo à subjectividade da linguagem. Uma leitura de Invocação ao Meu Corpo, de Vergílio Ferreira” in Revista da Faculdade de Letras -Série de Filosofia, nº 7, Porto, 1990, pp. 259-285.

─ “Prefácio” a Vergílio Ferreira, Para Sempre, edição especial ilustrada por Júlio Resende, Porto, Edições ASA, 1992, pp. 11-15.

─ “Vergílio Ferreira: uma escrita que (se) pensa” in Boletim da 63ª Feira do Livro, Porto, 1993.

─ “Subjectividade e intersubjectividade: a invocação/evocação do TU na escrita ficcional de Vergílio Ferreira” in Actas do Colóquio Interdisciplinar de Homenagem a Vergílio Ferreira,Porto, Fundação Eng. António de Almeida , 1995, pp.247-255.

─ “Vergílio Ferreira, Escrever: o título inevitável” in Línguas e Literaturas, Revista da Faculdade de Letras, II Série, vol. XX, 2003, pp. 479-491.

─ “A presença de Sartre num diário inédito de Vergílio Ferreira (anos 40)” in Cassiano Reimão, org, Jean Paul Sartre – Uma cultura da alteridade. Colóquio Filosofia e Literatura Lisboa, Universidade Nova, 2005, pp. 313-328.

“Tempo de Mudança: análise de um diário inédito (1944-1949) de Vergílio Ferreira” in F. Oliveira e I. Duarte, org.ªs, O Fascínio da Linguagem, Porto, Centro de Linguística da Universidade do Porto, 2008, pp.3-28.

─ “De Invocação ao meu Corpo a Conta-Corrente: a ‘escrita excessiva’ de Vergílio Ferreira” in Revista Colóquio-Letras, nº 192, Maio/Agosto 2016, pp.9-19.

─ “Sob o Signo da Emoção” in Reencontro com Vergílio Ferreira, Câmara Municipal do Porto, 2016, pp.91-94.

─ “Espaço do indizível: a Palavra, ainda e sempre” in Rosa Goulart et al., orgs. Vergílio em Évora. Entre o Silêncio e a Palavra Total, Universidade de Évora-Âncora Editora, 2016, pp. 45-60.

─ “Poder e (i)limites da linguagem: manifestações precoces da centralidade da reflexão sobre a Palavra na obra de Vergílio Ferreira” in Actas do Colóquio de Homenagem a Hélder Godinho, Lisboa, FCSH da Universidade Nova, 2014 (no prelo).

─ “Até à hora do fim: o ‘impossível repouso'” in Actas do Colóquio Comemorativo do Centenário do Nascimento de Vergílio Ferreira, Porto-Gouveia, 2016 (no prelo).